NEGROS PINTORES DO OITOCENTOS

Negros Pintores do Oitocentos

-Artista? Podes lá isso ser se tu és da África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuada de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia!

Cruz e Souza

Emparedado

Algumas palavras...

Este trabalho objetiva dar conhecimento que no século XIX houve no Brasil negros pintores que apesar da qualidade de seus trabalhos estão no limbo dos compêndios de arte. Não fosse Emanoel Araújo e José Roberto Teixeira Leite a produção artística desses negros, mulatos, pardos e embranquecidos pelo caldeamento com o branco seria hoje quase desconhecida. Lembramos do Aleijadinho (Antonio Francisco Lisboa), do Machado de Assis, do Cruz e Souza, mas quem ouviu falar de Miguelzinho Dutra, Emmanuel Zamor, Horácio Hora e tantos outros. Poucos ou quase ninguém. Talvez um extrato preconceituoso se pronuncie, visto que o negro era propriedade do senhor branco, capturado em suas terras de África para servir como sujeito inferior aos desejos e mandos de seu dono. Viajantes estrangeiros que por aqui passaram, revelam em seus relatos a capacidade artesanal do negro em ourivesaria, entalhamento, escultura em madeira, pintura, decoração e tudo mais que fosse para o bem estar do patrão. Tal aptidão lapidada pelo Catolicismo se revela no período Barroco, muito rico em imagens e estatuária sacras. Contudo, o que me proponho é dar voz, presença, àqueles pintores do Oitocentos que com muito sacrifício pessoal, marginalizados por uma sociedade escravocrata, cheia de ódio e desprezo, através da arte se sublimaram no seu fazer humano.

Dos episódios históricos

Antes de mais nada é conveniente registrar que o século XIX foi cenário de importantes e definitivos acontecimentos políticos, econômicos, sociais e culturais no Brasil e no mundo. Atenho-me, portanto, às nossas instâncias de interesse.

Assim sendo, tomo a liberdade de reproduzir um recorte híbrido da linha do tempo, preparada para a Exposição de Valentim a Valentim (A Escultura Brasileira – Século XVIII ao XX, de 13 de maio de 2010), do Museu Afro Brasil.

Tal proceder limitará equívocos que possam ser cometidos numa abordagem mais ampla, visto as premissas da época e suas diversas versões, diante de um discurso a principio colonial, depois régio e mais adiante abolicionista e republicano.

Como o propósito não é este e sim de dar convívio aos fatos que à época aconteceram, uma vez que os protagonistas deste trabalho, os negros pintores, direta ou indiretamente foram os que maior punição receberam por serem descendentes de africanos, considerados espécimes de segunda classe que aqui só serviriam para desempenhar funções subalternas. Salvo raras exceções e em determinadas situações, esse ranço preconceituoso ainda subsiste em nossos dias. Mais à frente, veremos exemplos de pura ignomínia.

Posto isto, vamos a linha histórica do tempo que se inicia em:

1804

 Abolição da escravatura no Haiti

1808

 Chegada da família real ao Brasil.

 Abertura dos portos.

1810

 Tratado de Aliança e Amizade, Comércio e Navegação entre Portugal e Inglaterra, que determina a extinção gradual da escravidão, limitando o comércio de escravos às possessões portuguesas na África. Motivada por interesses políticos e econômicos (expansão do mercado consumidor estimulado pelo trabalho assalariado), a Inglaterra passa a reprimir o tráfico negreiro. Porém, demorou décadas para que as pressões inglesas resultassem na extinção definitiva da escravidão, pois o Brasil dependia da mão de obra escrava.

1815

 Elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves.

1816

 Chegada da Missão Artística Francesa que, chefiada por Joachim Lebreton, transformou o panorama das artes.

 Laudelino Freire em seu discurso de 1917, proferido no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, acerca da pintura no Brasil depõe: O Rei, querendo aproveitar a capacidade de artistas franceses, que como ele, foragidos, vieram buscar asilo às nossas plagas, e que lhe buscaram a sua real e graciosa proteção para serem empregados no ensino, criou por decreto de 12 de agosto de 1816, a primeira escola de instrução artística no Brasil. Houve por bem mandar que se lhes pagassem pensões que ainda, por efeito da sua real munificência e paternal zelo pelo bem público, lhes fizera favor para a sua subsistência, determinando-lhes firmassem contrato pelo tempo de seis anos, o que posteriormente foi feito. Os termos do decreto real afastam desde logo a hipótese de terem sido mandados contratar no estrangeiro artistas que aqui vieram ter em virtude dos sucessos políticos ocorridos em sua pátria por ocasião de subir ao trono Luiz XVIII. Com o aproveitar-lhes as habilitações, prestou D. João inolvidável serviço à nossa cultura.

1821

 Retorno da família real a Portugal.

1822

 D. Pedro I proclama a Independência do Brasil.

1823

 Outorgada a primeira Constituição.

 Confederação do Equador. Movimento antimonarquista levado avante por um grupo de habitantes de Pernambuco. Tal oposição originou-se nas constantes crises da economia regional e as cargas tributárias impostas pelo governo. Como se não bastasse sua situação desoladora, os pernambucanos sentiram o peso do autoritarismo real quando D. Pedro I depôs o então governador, Manuel de Carvalho Paes de Andrade, e indicou um substituto para o cargo. A troca do governo seria o último episódio que antecedeu a formação do movimento que ficou conhecido como Confederação do Equador, esse ganhou tal nome devido sua proximidade geográfica com a Linha do Equador

1825 / 1828

 Guerra Cisplatina foi um conflito que ocorreu no período em destaque, envolvendo os países Brasil e Argentina. O motivo desta batalha era pelo domínio da Província de Cisplatina, atual Uruguai, uma região que sempre foi cobiçada pelos portugueses e espanhóis.

1826

 Brasil assina um tratado com a Inglaterra que tornava, dentro de três anos, ilegal o tráfico de escravos. Este documento deveria entrar em vigor em 1830, contudo, nunca foi cumprido; ao contrário, o ritmo do tráfico negreiro aumentou exponencialmente.

 Abertura da Academia Imperial de Belas Artes, visto que foi criada por decreto em 1816. A partir de 1889 a instituição passou a se chamar Escola Nacional de Belas Artes.

1830

 Nasce o poeta abolicionista Luís Gama. Analfabeto até os 17 anos aprendeu a ler e a escrever com um estudante. Vendido como escravo aos 10 anos de idade, conquistou sua liberdade provando seu estatuto de homem livre. Alistou-se no Exército, foi escrivão de Policia, lançou-se na atividade jornalística e tornou-se um eloqüente rábula advogado chegando a libertar mais de quinhentos escravos.

1831

 Abdicação de D. Pedro I.

 Eleição da Regência Trina Permanente. Eleita em julho, visava o equilíbrio político e regional, foram eleitos: Costa Carvalho, moderado, representando o Sul; Bráulio Muniz, exaltado, representando o Norte, enquanto ao centro, era mantido o brigadeiro Francisco de Lima e Silva.

 Promulgada a lei Diogo Feijó (mas não aplicada!), que proibia o tráfico de escravos e declarava livres todos os cativos desembarcados no Brasil. Os poucos juízes que tentaram aplicar essa lei sofreram ameaças de morte. A lei apenas tornou o tráfico ilegal, sem extinguí-lo.

1833

 Paula Brito publica O Homem de Cor, primeiro jornal anti-racista, que mais tarde passou a ser chamado de O Mulato.

1834

 A Regência Trina é substituída pela Regência Una.

 Fim da escravidão nas colônias inglesas e libertação de todos os escravos (homens, mulheres e crianças).

 Renúncia de Feijó.

1835

 Cabanagem, no Pará. Na província do Pará, a péssima condição de vida das camadas mais baixas da população e a insatisfação das elites locais representavam a crise de legitimidade sofrida pelos representantes locais do poder imperial. Além disso, a relação conflituosa entre os paraenses e os comerciantes portugueses acentuava outro aspecto da tensão sócio-econômica da região. Um motim organizado pelo fazendeiro Félix Clemente Malcher e Francisco Vinagre prendeu e executou o governador Bernardo Lobo de Sousa. Os rebelados, também chamados de cabanos, instalaram um novo governo controlado por Malcher. Francisco Vinagre, líder das tropas do novo governo, se desentendeu com o novo governador. Aproveitando de seu controle sobre as forças militares, tentou tomar o governo, mas foi preso pelo governador. Em resposta, Antônio Vinagre, irmão de Francisco, assassinou Félix Clemente Malcher e colocou Francisco Vinagre na liderança do novo governo.

 A revolta dos Malês pode ser compreendida como um conflito que deflagrou oposição contra duas práticas comuns herdadas do sistema colonial português: a escravidão e a intolerância religiosa. Comandada por negros de orientação religiosa islâmica, conhecidos como malês, essa revolta ainda foi resultado do desmando político e da miséria econômica.

1835

 Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul. O estopim para esta rebelião foi as grandes diferenças de ideais entre dois partidos: um que apoiava os republicanos (os Liberais Exaltados) e outro que dava apoio aos conservadores (os Legalistas). Seu término ocorreu em 1845. Teve grande participação de negros, pois defendia a extinção da escravidão e prometia alforriar os escravos que se alistassem em suas fileiras.

1838

 Balaiada. Surgiu de um movimento popular no Maranhão. Este era contrário ao poder e aos aristocratas rurais que, até então, dominavam aquela região.

 Morte de José Bonifácio de Andrade e Silva, o “Patriarca da Independência”. Autor de vários escritos redigidos entre 1821 e 1833, entre os quais, uma representação sobre a escravatura. Neste documento, José Bonifácio propunha algumas normas voltadas ao fim do tráfico negreiro e à abolição gradual da escravidão.

 Nascimento do abolicionista André Rebouças. Amigo do Imperador D. Pedro II, sabia que a abolição fora uma das causas da proclamação da República, e a República é claro, destronara os monarcas. Assim, o mulato franzino que fora um dos maiores propagandistas e meticuloso estrategista do movimento pela libertação dos escravos deixou o país no mesmo navio no qual a família real partiu para o exílio.

1839

 Proclamada a maioridade de D. Pedro II, imperador do Brasil.

1847

 Implantação do parlamentarismo no Brasil.

1848

 Revolução Praieira, em Pernambuco. No começo do Segundo Reinado, a ascensão dos liberais que apoiaram a chegada de Dom Pedro II ao poder foi logo interceptada após os escândalos políticos da época. As “eleições do cacete” tomaram os noticiários da época com a denúncia das fraudes e agressões físicas que garantiriam a vitória da ala liberal. Em resposta, alguns levantes liberais em Minas e São Paulo foram preparados em repúdio às ações políticas centralizadoras do imperador. Nesses dois estados os levantes não tiveram bastante expressão, sendo logo contidos pelas forças militares nacionais. Entretanto, o estado de Pernambuco foi palco de uma ação liberal de maior impacto que tomou feições de caráter revolucionário. Ao longo da década de 1840, setores mais radicais do partido liberal recifense manifestaram suas idéias através do jornal Diário Novo, localizado na Rua da Praia. Em pouco tempo, esses agitadores políticos ficaram conhecidos como “praieiros”.

1850

 Lei Eusébio de Queirós. Foi a legislação que proibiu definitivamente o tráfico de escravos para o Brasil, consagrando para a história o nome de seu autor, Eusébio de Queirós Coutinho Matoso Câmara, na época ministro. Aprovada em 4 de setembro de 1850, apesar de não ter sido a primeira a proibir o tráfico de africanos para o país, foi a primeira a surtir impacto relevante sobre a escravidão.

1853

 Nasce José do Patrocínio, Campos/RJ. Filho de um padre com uma escrava que vendia frutas, descobriu a verdadeira vocação ao fundar um jornal satírico chamado “Os Ferrões”. Em maio de 1883, criou, junto com André Rebouças, uma confederação unindo todos os clubes abolicionistas do país.

1862 / 1863

 Questão Christie. Na realidade foi o ponto mais agudo nas relações que já vinham tensas entre Brasil e Inglaterra, devido ao não cumprimento por parte do Brasil do acordo que levaria ao fim o tráfico negreiro; a Tarifa Alves Branco que aumentava o valor dos produtos ingleses na alfândega; e a Bill Aberdeen por parte da Inglaterra que aprisionava os navios negreiros. As relações entre os dois países se deterioraram ainda mais quando houve o naufrágio de dois navios ingleses no Brasil, que tiveram sua carga saqueada pela população e pela prisão de dois oficiais ingleses que acabaram desrespeitando autoridades brasileiras.

1865

 Tratado da Tríplice Aliança. Brasil, Argentina e Uruguai ameaçados por Francisco Solano Lopes, se unem sob a influência da Inglaterra, pactuando a defesa de suas fronteiras.

1865 / 1870

 Guerra do Paraguai. A Guerra do Paraguai teve seu início no ano de 1864 a partir da ambição do ditador Francisco Solano Lopes, que tinha como objetivo aumentar o território paraguaio e obter uma saída para o Oceano Atlântico, através dos rios da Bacia do Prata. Ele iniciou o confronto com a criação de inúmeros obstáculos impostos às embarcações brasileiras que se dirigiam a Mato Grosso através da capital paraguaia.

 Manoel Querino, no capítulo “O Recrutamento” de seu “As Artes na Bahia”, evoca: “Os homens válidos foram procurados como feras; parecia que a Bahia tomara a peito fornecer o pessoal necessário às funções da guerra. Varejavam-se casas, arrancavam-se rapazes ocultos nos armários e outros móveis domésticos. Às vezes eram filhos, arrimos de família, que uma indiscrição qualquer apontara, com esta sentença: vai de presente ao Lopez...”.

1871

 Lei do Ventre Livre, pela qual filhos de escravos nasceriam livres.

1883

 Questão Militar – se resume a uma série de eventos que colocou em confronto direto oficiais do Exército e políticos monarquistas e conservadores. O estopim foi o fato de os militares estarem proibidos por lei de discutir assuntos políticos na imprensa.

1884

 Lei dos sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe, pela qual escravos com mais de 60 anos, seriam automaticamente libertados, sem indenização a seus proprietários.

1888

 Abolição da escravatura. Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio.

1889

 Proclamação da República. O Povo, o Exército e a Armada Nacional, em perfeita comunhão de sentimentos com os nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia imperial e conseqüentemente a extinção do sistema monárquico representativo. Marechal Deodoro da Fonseca foi o proclamador.

1890

 É promulgada a Constituição.

 Marechal Deodoro renuncia e é substituído por Floriano Peixoto.

1893 / 1895

 Revolução Federalista. Foi um movimento revoltoso desenvolvido entre facções políticas rivais encontradas no governo do Rio Grande do Sul. Durante o governo de Floriano Peixoto houve uma remodelação dos quadros governamentais com a deposição de todos os políticos próximos à figura de Deodoro da Fonseca. Essa mesma ação política foi estendida à esfera estadual, onde os governadores “pró-Deodoro” foram substituídos por representantes simpáticos ao novo governo

1894

 Prudente de Morais é eleito presidente da república.

1897

 A revolta de Canudos é esmagada. A situação do Nordeste brasileiro, no final do século XIX, era muito precária. Fome, seca, miséria, violência e abandono político afetavam os nordestinos, principalmente a população mais carente. Toda essa situação, em conjunto com o fanatismo religioso, desencadeou um grave problema social. Em novembro de 1896, no sertão da Bahia, foi iniciado este conflito civil. Esta durou por quase um ano, até 05 de outubro de 1897, e, devido à força adquirida, o governo da Bahia pediu o apoio da República para conter este movimento formado por fanáticos, jagunços e sertanejos sem emprego. O beato Conselheiro, homem que passou a ser conhecido logo depois da Proclamação da República, era quem liderava este movimento. Ele acreditava que havia sido enviado por Deus para acabar com as diferenças sociais e também com os pecados republicanos, entre estes, estavam o casamento civil e a cobrança de impostos. Com estas idéias em mente, ele conseguiu reunir um grande número de adeptos que acreditavam que seu líder realmente poderia libertá-los da situação de extrema pobreza na qual se encontravam.

Dos protagonistas... os negros pintores

Ante a escassa e singular bibliografia existente sobre os negros pintores do século XIX, o casting escolhido repercute o do autor José Roberto Teixeira Leite, uma vez que as obras desses artistas se encontram espalhadas em coleções particulares, em múltiplos museus e muitas ainda desconhecidas ou encafuadas nos antiquários de bricabraque.

Emanoel Araújo na apresentação do Catálogo de Negros Pintores escreve: Durante muito tempo pouco se sabia sobre esses pintores, pouco se conhecia de sua produção artística; aliás, até os dias atuais essas obras ainda surpreendem quando aparecem no mercado de arte, sendo que muitos desses artistas continuam congelados nos acervos ou nos depósitos dos museus sem que uma política de revisão e de novas aquisições se faça para resgatar em profundidade essa produção artística.

O ambiente brasileiro do século XIX é significativamente marcado por conflitos, revoltas e rebeliões a mão-cheia. Por outro lado, o circulo da corte não é menos conflituoso, visto as diferenças sociais presentes, onde se alargam os contrastes do poderoso e do oprimido. Daquele que é senhor e daquele que o serve. Perpassa pela nossa história imperial a relevante e eloqüente figura do negro. Trazido como escravo, arrancado de suas raízes em África, posto a ferros é submetido a um desumano tratamento. É desse negro que de inexcedível luta, imbricado medularmente na formação de nossa gente e cultura que quero desfilar. Exemplos não faltam. Valorosos como Luis Gama, André Vidal, José do Patrocínio são alguns deles. Contudo, o nosso acalanto é de exaltação para aqueles que sofrendo toda sorte de enxovalho, superaram as condições mais adversas num recinto perverso da sociedade oitocentista.

- Quem são?

- São aqueles que com suas coloridas tintas plasmaram figurativamente personagens, momentos históricos, costumes, naturezas mortas e paisagens num Brasil ainda muito provinciano, incipiente de arte.

Tudo começa acontecer a partir da criação em 1816 da Academia Imperial de Belas Artes, uma vez que a anterioridade nos remete à expedição de Maurício de Nassau em 1637, carregada dos pintores Frans Post, Zacharias Wagner e Eckhout. É lendária por essa época a existência na Bahia, de um Euzébio de Mattos, como pintor laureado. Somente na segunda metade do século XVIII é que surge José Joaquim da Rocha com os seus discípulos, na Bahia, José de Oliveira, João de Souza, Manoel da Cunha, Costa e Silva. José Leandro, Brasiliense e Solano no Rio de Janeiro.

Demandou dez anos a efetiva abertura da academia artística. Nesse período Debret leciona pintura histórica. É na pessoa deste eminente artista que a pintura brasileira entra na sua fase orgânica, já hoje dividida em duas grandes épocas: uma de formação e outra de desenvolvimento. Da primeira que se estende até 1860, foi ele o fator principal.

É nesse sitio do tempo que despontam os negros pintores, exceção a MIGUEL DUTRA que nasceu em 1810, os demais: EMMANUEL ZAMOR, ESTÊVÃO SILVA, MANOEL QUERINO, HORÁCIO HORA, FIRMINO MONTEIRO, CRISPIM DO AMARAL, PINTO BANDEIRA, RAFEL FREDERICO, ISALTINO BARBOSA, JOÃO TIMÓTEO E ARTUR TIMÓTEO, proviram a partir do quarto decênio do século XIX.

Sem maiores afadigamentos narrativos, vou expor alguns deles num breve relato de vida.

Comecemos por:

MIGUEL DUTRA (1810-1875)

Nascido em Itu, São Paulo, era homem dos sete instrumentos ou mais, pois, foi ourives, pintor, miniaturista, escultor, arquiteto, engenheiro, ebanista, decorador, compositor, organista, fabricante de instrumentos musicais, naturalista e memorialista. Dos primeiros a escrever em São Paulo sobre temas de arte, fundador do mais antigo museu da província. Sua formação profissional deveu-se inicialmente ao pai, que lhe transmitiu o próprio oficio de ourives. Quanto ao polimento geral, ao latinório, às noções de Teologia, ficaram por conta dos carmelitas com quem estudou. Com quem então Miguelzinho teria estudado pintura? Com ninguém, e com todo mundo: vendo, observando, analisando, comparando, experimentando receitas e materiais e amestrando a mão no manejo dos instrumentos. Há quem estabeleça uma certa afinidade com a pintura do padre-pintor Jesuíno do Monte-Carmelo. Aquarelista pintou setenta e duas delas que se encontram no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, podendo ser distribuídas tematicamente por cinco grupos principais: desenhos de arquitetura (arcos, projetos de túmulos, decorações, etc.), paisagens (e vistas de cidades, fazendas, sítios, etc.), retratos e tipos populares, cenas de gênero e tema religioso. Percorreu com sua caixa de tintas por Campinas, Piracicaba, Sorocaba, Porto Feliz, Porto Góes, Santo André da Borda do Campo... São Paulo. Advertência se lhe faz quanto a gritante ausência de volumetria e a perspectiva capenga... nas figuras humanas inexiste massa, a anatomia é puerilmente resolvida e o desenho não poderia ser mais tosco. É da sua ingenuidade, de homem do povo que buscou seus assuntos no próprio meio social que lhe advém o prestigio. Algumas de suas aquarelas são bastante apreciáveis: Bandeira do Divino, Santa Verônica, mas é nos retratos de mulatos, tipos populares e de figurões da época (Capitão-Mor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha) que mais se realiza. Foi destacada a sua produção como santeiro, sendo suas imagens de estilo marcadamente setecentista. No campo da arquitetura projetou a Igreja da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, em Piracicaba, cuja construção teve inicio em 1853 e levaria os próximos vinte anos para ser concluída, apesar do generoso óbolo do Imperador de cem mil reis. Morre em Piracicaba a 22 de abril de 1875.

EMMANUEL ZAMOR (1840-1917)

Baiano, registrado na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição da Praia, era filho adotivo de certo Pierre Emmanuel Zamor e Rose Neveu. Elencado como pintor brasileiro tão somente por ter nascido aqui, uma vez que muito cedo foi levado para a França. Consta que ao redor de 1860 viveu uma temporada em Salvador. Tudo que se diz a respeito dele é baseado na oralidade, pois de sua produção pictórica pouco restou. Deve-se ao marchand Jean-Claude Castoriano a exposição realizada em 1985, no Museu de Arte de São Paulo, que mereceu uma critica desencontrada e díspar quanto aos trabalhos do artista, de impressionista a pontilhista, é possível? Por informações da família supõe-se que Zamor tenha freqüentado aulas na Academia Julian, em Paris. Suas pinturas de paisagem refletem compatibilidades estilísticas com a dos integrantes da Escola de Barbizon. Devido a um incêndio que consumiu seu ateliê, sobraram poucas obras para serem apreciadas num contexto maior. Teixeira Leite escreve: Cremos ter sido nas paisagens que a arte de Emmanuel Zamor logrou afirmar-se de maneira especial. Paisagem, de 1874, Vista de Dourdan e Dourdan, de 1879, e Campo de Feno, do mesmo ano, apresentam toque, limpidez cromática, atmosfera, composição arejada, nada devendo a obras coetâneas de notáveis artistas franceses ainda há pouco mencionados (Theodoro Rouseaau, Jules Dupré, Daubigny...). Paisagem e Vista de Dourdan, em especial, justificam a observação da crítica de arte Lisetta Levi, para quem, na arte de Zamor, “as nuvens brancas e cinzas não pesam sobre a paisagem – flutuam”. Revela-nos as pinturas de recantos do seu jardim em Creteil delicadíssimas formas de flores, sua leveza, seu vívido cromatismo que por sua própria condição são as mais abstratas que produziu. Quadros de beira-rio são de menor expressão. Algumas naturezas mortas integram as faturas do pintor, sem, contudo mostrarem-se de qualidade superior. Finalmente, Reza uma tradição de família que a cor da pele o teria impedido de granjear uma clientela ou discípulos; por isso, teria ele optado por ganhar a vida como cenógrafo. O artista faleceu em plena Grande Guerra, em 1917.

ESTÊVÃO SILVA (1845? - 1891)

Era negro alto, forte, corajoso e bom no dizer de Antonio Parreiras. Em 1879, por ocasião da entrega solene dos prêmios aos alunos que mais se distinguiram na exposição anual da Academia Imperial de Belas Artes, Estêvão da Silva, o Diamante Negro de Artur Azevedo, num ato insólito recusou a premiação perante o Imperador Pedro II, por achar-se injustiçado. Tal insubordinação foi punida por uma comissão que determinou o seu afastamento por um ano da academia. A suspensão tida como branda, dado o acanhamento intelectual do aluno, poderia ser de prisão de até 40 dias na própria instituição, segundo o artigo 155 dos seus Estatutos. A inópia alegada pelos membros da comissão foi um meio de livrar o aluno de penas mais severas. Nascido no Rio de Janeiro teve como colegas de estudo Firmino Monteiro, João Batista Pagani e Belmiro de Almeida entre outros. É importante registrar que o curso da Academia Imperial se constituía de cadeiras práticas (Desenho Figurado, Desenho de Modelo Vivo, Paisagem, Flores e Animais e Pintura Histórica) e de cadeiras teóricas (Matemáticas Aplicadas, Anatomia e Fisiologia das Paixões e História das Belas Artes, Estética e Arqueologia). Lutando contra a miséria da vida, foi obrigado a interromper seus estudos várias vezes. Discípulo de Vitor Meireles, Agostinho José da Mota e Júlio Le Chevrel praticou vários gêneros de pintura. A histórica refere-se à tela A Lei de 28 de Setembro, a religiosa São Pedro, a alegórica A Caridade e o retrato a do pintor Castagneto. De temperamento galhofeiro e mesmo bulhento protagonizou a seguinte história na versão de Antonio Parreiras: Um comendador encomendou a Estêvão um retrato. Era para a galeria de uma dessas irmandades que abundam em nossa terra. Sentado em uma cadeira, enfiado numa berrante capa encarnada, o comendador era dono de um hotelzinho do Mercado, se fez retratar por fotógrafo. Não houve meio de convencê-lo de que o retrato feito por uma fotografia nada mais é do que a fotografia ampliada e colorida, e que como obra de arte não tem valor algum. Positivamente negou-se a servir de modelo. Ficou pronto o retrato. Foi exposto na Rua do Ouvidor, na Galeria Moncada, onde à tarde se reuniam os artistas. É claro que foi alvo de muita frase engraçada, e de acerba crítica. Estêvão, porém, não se zangava. Ria-se. Não era como são hoje os moços que principiam a vida artística, exigentes e mestres desde o dia em que pegam em um “fusain” (lápis de carvão). Um dos presentes achou que o comendador tinha o nariz muito vermelho, Parecia um caju. – Que novidade! Pois eu não sou um pintor de frutas? – retorquiu Estevão rindo, deixando ver os esplendidos dentes a se destacaram no carmesim da boca. – Silêncio, silêncio – segredou um colega. Atrás, de braços cruzados, estava a contemplar o retrato o benemérito comendador. Tinha ouvido tudo. Quando Estevão lhe foi levar no Mercado o retrato, recusou-o. Escrevendo-lhe Estevão, o comendador respondeu: “Não fico com o retrato. Minha cara não é taboleiro de frutas. Ninguém, vendo o Judas que o senhor pintou, dirá que é este seu criado, Comendador Z”. Nós que esperávamos o pagamento para jantar no “Renaissance”, ficamos furiosos. – Fiquem tranqüilos. Não comam hoje e amanhã darei a vocês um banquete. – E deixando-nos, lá foi Estêvão para o ateliê. No dia seguinte, lá estava no Moncada o retrato. A loja estava cheia. Todos riam. Estêvão tinha acrescentado na testa do comendador dois chifres e saindo por baixo da cadeira, um grande rabo. Num pedaço de papelão, pregado na moldura, lia-se: “Retrato do Diabo”. Foi o artista chamado à policia. Exibindo, porém, a carta do comendador, foi mandado em paz. – Então, Estêvão? – O retrato continua exposto. Não comam hoje. Amanhã eu darei a vocês dois banquetes. Dois dias depois, o retrato desapareceu, para tornar passadas vinte e quatro horas. Via-se o comendador através das grades de uma prisão. O cartaz havia sido substituído por outro assim: O diabo preso por não pagar a Estêvão Silva. Participa da Exposição Artística de 1884 na Imperial Academia das Bellas-Artes do Rio de Janeiro, cujo catálogo (cópia) organisado por L. de Wilde, encontra-se apensado a este trabalho. Mas foi na pintura de frutas que Estêvão de Silva se mostrou soberbo, sem rival. Gonzaga Duque em A Arte Brasileira, página 219, afirma: Realmente é difícil, e até parece impossível, pintar frutos melhor do que os tem pintado Estevão. Os seus pêssegos são na forma, na cor, na penugem macia e alourada que os reveste, verdadeiros pêssegos; sente-se nas mangas por ele pintadas o olor penetrante e delicado desses frutos saborosíssimos; não é possível que haja cor mais exata, desenho mais preciso, do que a cor e desenho desses abacaxis que se vêem em sua telas, entre os mais frescos, os mais sazonados cambucás, abacates e laranjas. O embate travado em vida pelo artista mereceu de Teixeira Leite o seguinte comentário: ...fazer-se artista, porque teve de lutar corajosamente contra os estúpidos preconceitos de sua cor e contra o abandono em que se achava, paupérrimo, desprotegido, isolado, sem meio, sem sociedade, sem esperanças serenas abertas no claro conforto de um lar abundante. De uma certa maneira as naturezas mortas de Estêvão faz-nos lembrar Albert Eckhout que veio com Maurício de Nassau nos anos seiscentos do século XVII. Um ano antes do seu falecimento, isto é, em 1890 concorre com vinte trabalhos na Exposição Geral de Bellas-Artes realizada no Rio de Janeiro, conforme reprodução do catálogo anexo.

MANOEL QUERINO (1851-1923)

Baiano de Santo Amaro da Purificação. De sua produção pictórica, decorações em residências, edifícios públicos, panos de boca para teatros, pinturas de cavalete nada subsistiu. Contudo, ficaram seus escritos que testemunham o cultor das artes tradicionais e ativo participante dos movimentos abolicionistas e republicanos. Autor de Artistas Bahianos, As Artes na Bahia, A Raça Africana e os seus Costumes, A Bahia de Outr’ora – Vultos e Factos Populares. Estando o Brasil em plena campanha contra o Paraguai, viu-se convocado, aliás, não é bem o termo: naquele tempo, o país achava-se em guerra, e a necessidade de tropas frescas em quantidades cada vez maiores no teatro de operações bélicas do Paraguai fazia com que as autoridades fossem buscar “voluntários” onde estivessem, por bem mas principalmente por mal, laçando-os nas ruas ou desentocando-os de casa, empilhando-os nos porões dos navios para afinal despejá-los, atônitos e mal preparados, no longínquo pantanal guarani, onde tantos ficaram... Sorte sua e nossa, Querino não foi para Lopez. Freqüenta as aulas de Português e Francês do Colégio 25 de março em Salvador. E quando em 1877 é fundada a Academia, logo depois Escola de Belas Artes da Bahia, é dos primeiros a se matricular na classe de Desenho, tornando-se então discípulo do notável pintor espanhol Miguel Navarro y Cañizares. Em 1880... recebeu de Cañizares convite para ajudá-lo na execução de um novo pano de boca para o Teatro de São João. Embora não tenha obtido o diploma do curso de Arquitetura chegou a apresentar em 1884, por solicitação do Governo, um Plano de Casas Escolares Adaptadas ao Clima do Brasil. José Teixeira Barros atesta: nenhum outro artista propugnou, com tamanha veemência, a união da classe operária de modo que viesse a constituir uma força, uma vontade, um poderoso elemento de ação, no seio da coletividade. Fundou os periódicos A Província e O Trabalho, que defendiam os pontos de vista dos trabalhadores. A constituição do 1º de maio como feriado, foi homologado em 1892 no primeiro Congresso Operário Nacional, no Rio de Janeiro, do qual participou. Manoel Querino foi a estranha resultante das suas aspirações sociais reacionárias e do seu pendor para os estudos tradicionalísticos. ...Quanta vez deve ter ouvido a frase feita e ainda corriqueira: “Este negro não se enxerga!”. A respeito de sua obra alguns críticos falaram da falta de preparo cientifico. O critico José Valadares, por exemplo, dizendo-o embora “bem intencionado”, alude ao seu “mau gosto”, enquanto Marieta Alves elenca, em erudito estudo, seus “equívocos”. Resta-nos agora recordar como Manoel Raimundo Querino gostava de se apresentar ...professor, de Desenho Industrial, artista menor, pequeno funcionário da Secretaria de Agricultura do Estado, republicano, abolicionista, precursor dos assuntos concernentes ao operariado do Brasil. Morre em Salvador no dia 14 de fevereiro de 1923.

HORÁCIO HORA (1853-1890)

Coetâneo de Benedito Calixto e Pedro Weingärtner, passou a sua curta existência de vida entre Laranjeiras (Sergipe) e Paris, deixando, portanto, de freqüentar a corte do Rio de Janeiro tão necessária à reputação de pintor. Não fora isso, e decerto desfrutaria hoje de maior nomeada, de um prestígio diretamente proporcional à qualidade do que produziu e ao rigor artesanal de que seus quadros dão testemunho. Por questões de mera implicância de discriminação, dada a qualidade de seus trabalhos, suspeitou-se dele não possuir sangue africano, visto que era quase insuportável a muitos a simples idéia de que pudesse existir um bom artista sem que em suas veias corresse sangue outro que não o mais puro sangue “ariano”, tão forte continuava sendo, a pouco mais de dez anos de distância da Abolição, o peso do preconceito racial. Filho de mãe solteira, dado que seu pai, Antonio Esteves de Souza, negro, faleceu pouco antes da celebração das núpcias para gáudio da branquíssima família da mãe. Não terminou sequer o primário e deve a Mestre Torquato sua iniciação nas artes, praticando na adolescência escultura religiosa. De tal forma se destacara, que a Assembléia Provincial de Sergipe concedeu-lhe uma bolsa de estudos para aperfeiçoar-se em Paris (1875). Lá estando, matriculou-se na École Municipale de Dessin et de Sculpture, dirigida por Justin Lequien Fils, obtendo ao longo do curso importantes premiações. Sua estada em França, permitiu-lhe familiarizar-se com a técnica dos Velhos Mestres, produzindo cópias de qualidade como a de Hércules e Djanira, de Guido Reni. Mas é com sua tela Pery e Cecy, na qual adotou os processos chiaroscuro de Caravaggio que demonstrou a extraordinária qualidade de pintor. Na capital francesa, conheceu a Baronesa de Catumbi, D. Júlia Alves Pereira da Cunha, a quem retratou e conviveu também com Almeida Júnior, Manoel Lopes Rodrigues entre outros. Tornou-se amigo do Engenheiro Michaud, a quem estaria reservado no futuro papel primordial nas tristes circunstancias em que o artista encerraria seus dias. Após breve estada em Aracajú em 1883; no ano seguinte a pintura Pery e Cecy obtém extremo sucesso na mostra em Salvador sendo-lhe conferido o diploma de Acadêmico de Mérito e Membro Corresponde da Academia de Belas Artes da Bahia. Novamente em Paris, uma paixão desenfreada pela engomadeira Mathilde Lafage, leva-o a negligenciar seu trabalho e se esconde dos amigos, que em vão tentam abrir-lhe os olhos... Por Mathilde vende tudo quanto possuía, e por último vende... o cavalete! Para nosso espanto, sua musa era baixa, muito gorda, cabelos pretos e corredios, nariz chato, morena, um verdadeiro tipo de tapuia, uma rotundidade, enfim sem graça alguma segundo descreve em carta Manoel Lopes Rodrigues. Impõe-se como retratista de feitio convencional e sobranceiro na paisagem. Gruta de Matriana, executada em Sergipe e na qual aparece o alferes e pintor amador João Barbosa com seu perdigueiro, impõe-se-nos pela composição, pela solidez da fatura e pelo colorido. Pintor cuja carreira desenvolveu-se quase toda em França, Horácio Hora pode ainda assim ser reclamado como artista de nítidas preocupações brasileiras. Atacado de pneumonia recolhe-se à casa de Michaud, que o trata com desvelo paterno.... e a 1º de março de 1890 morre, não sem antes pronunciar essas palavras nostálgicas “Loin de mon pays!”.

FIRMINO MONTEIRO (1855-1888)

Pintor carioca. Estudou na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, tendo sido aluno de Vitor Meirelles, Agostinho da Mota e Zeferino da Costa. A exemplo de outros artistas do período teve uma infância e adolescência bastante difíceis, posto que exerceu as funções de encadernador, caixeiro e tipógrafo. Interessava-lhe os problemas técnicos da pintura, uma vez que não empregava ordinariamente as tintas, preparava-as com extremo cuidado em sua paleta. Tal preocupação para com a química dos pigmentos revelou-se aliás extremamente benéfica à pintura de Firmino Monteiro, cujos quadros, geralmente, parecem hoje em dia tão frescos quanto no dia em que foram concluídos. Participou das Exposições da Imperial Academia de Bellas-Artes nos anos de 1879 – 1884 e 1890.

Na de 1879, com a paisagem histórica Exéquias de Camorim, cujo catálogo se acomoda nesta produção, e inspirada no poema Confederação dos Tamoyos, do Visconde de Araguaya, damos voz:

Aimbire chega, e pára; olha, examina;

Bate-lhe o coração; fallar não ousa.

Ao ver o velho assim, e ao lado a filha,

Parece advinhar... Toma uma pedra,

E a leva à sepultura: “Em paz descansa,

(Diz) oh guerreiro, cujo nome ignoro;

Mas és Tamoyo, e amigos meus te chorão.

Aqui teus ossos jazerão p’ra sempre

Sobre este monte, que me vio pequeno,

Após meu pai, andar sahis caçando,

Tão lindos qu’eu co’as pennas me enfeitava.

Lá diviso a Tijuca tão saudosa,

Cujas águas bebi; n’ellas banhei-me.

Alli n’aquelle morro, onde se eleva

O corcovado píncaro ventoso,

Doce e manso deslisa-se o Carioca,

A cujas margens minha mãe cantava

Tão mestos cantos, qu’eu chorando ouvia,

E ainda choro co’a lembrança d’elles.

Quantas vezes n’aquella escura várzea,

Onde o Cattete saltitante corre,

Ouvindo o sabiá e o gaturamo,

Dormi, sonhei, aromas respirando

Co’aquelles ares puros que dão vida!

Aqui abaixo o Camorim se alarga,

Onde eu pescava tantas vezes, tantas,

Terras em qu’eu nasci, como sois bellas.

Como és formoso oh ceo do Guanabara!

Mais azul do que as pennas de ararúna!

E a vós eu volto e vos saúdo em frente

De uma recente, pranteada campa,

De quem, não sei; talvez de algum amigo!

Exéquias de Camorim, hoje no Museu Nacional de Belas Artes, conferiu a Firmino Monteiro uma segunda medalha de ouro, não que tivesse ganhado duas, é mera classificação, pois existia uma segunda medalha de prata, bem como pequena medalha de ouro.

A sua primeira estada na Europa deu-se em 1880 com a ajuda financeira do Imperador Pedro II. Retornou a ela, sucessivamente em 1885 e 1887.

Uma análise da produção pictórica do artista revela ter a mesma principiado pela pintura de paisagem, que assim teria sido a sua primeira vocação. Só mais tarde o pintor resvalou para a prática da pintura histórica e do quadro anedótico ou de costumes. Com o sucesso da composição histórica A Fundação da Cidade de São Sebastião deixou-o muito entusiasmado, visto que tinha inato o sentimento da perspectiva aérea, razão por que se observa em todas as suas paisagens uma perfeita harmonia entre a terra, o céu e o ar. Transcrevo agora apreciação sobre a tela Vidigal, que o crítico Gonzaga Duque em A Arte Brasileira, página 216, anota: Em um canto de rua, uma das ruas do memorável tempo d’el-rei, o célebre Vidigal prende um capadócio. O vago, munido de violão, no meio de soldados firmes e armados de rubros camarões flexíveis e resistentes, desculpa-se do melhor modo possível, prevendo a sumária aplicação da pena que, em casos idênticos, fazia Vidigal com enorme conhecimento da terapêutica endérmica apropriada à vagabundagem. Esta cena tem por teatro uma paisagem pincelada com petulância e presteza, de um efeito simpático, saisissante (surpreendente, impressionante).

Contemplando Félix Ferreira em sua análise inscrita em Belas Artes: Estudos e Apreciações, 1885, a respeito de Firmino Monteiro e Vidigal, traslado: Mas, onde mais sobreleva-se a consciência da arte, que outro nome melhor não conhecemos para essa exatidão fotográfica do colorido, é no quadro de Vidigal. A calçada, com suas pedras toscamente faceadas e irregularmente dispostas; a ervazinha enfezada que vegeta pelos interstícios dos blocos; a cor da parede, a janela, a porta e a meia rótula pendurada aos gonzos externos, firmam a reputação do artista. Enfiando-se o olhar por cima dessa rótula, como que palpa-se a saliência arqueada da verga, como que sente-se a atmosfera silente e morna desse interior de paz, nos bons tempos da colônia e dos vice-reis. As cinco figuras que animam o quadro estão muito bem tratadas; e, sem procurar pôr em forçada evidencia o protagonista, o olhar do espectador logo o encontra, nessa semi-gravidade que fez de Vidigal um herói do seu tempo, misto de rigor e pachorra, de chiste e rispidez, de inflexibilidade e brandura, como tão bela e comicamente o descreveu Manuel Antonio de Almeida nas suas inimitáveis Memórias de um Sargento de Milícias.

Falece em Niterói, vitima de um acidente, em 1888.

ARTUR TIMÓTEO (1882-1922)

Começo por um recorte da crítica de Gonzaga Duque, em O Salão de 1907: No mais todos nós sabemos que o Sr. Professor H. Bernardelli é um mestre na pintura. E quem está talhado para ser um grande artista é o seu discípulo, o Sr. Arthur Thimotheo da Costa, que de dia a dia nos demonstra o seu ardente talento e sua larga habilidade de compositor. Antes d’Aleluia (pintado a tinta matte, por processo egual áquelle com que o Sr. Bernadelli pintou as decorações de Beneficência Portugueza, e que, por ahi foi chamado encalca) é uma tela movimentada, de muitos agrupamentos e infelizmente não terminada. O que está feito, porém basta para nos dizer do valor dese moço artista, extremamente sympathico por sua audácia e grandemente hábil. Em quanto eu contemplava esse quadro, enthusiasmado com o seu auctor, um sujeito insinuante se me approxima e mui amável entreteve conversação commigo, apezar de minha aversão a palestras com estranhos.

Elle – É o primeiro acto ou se quizer a primeira scena...

Eu – Não o compreendo, senhor. De que trata?

Elle – Do quadro que o senhor contempla.

Eu também admiro, está bem feito.

Eu – Mas, porque me fala em primeiro acto?

Elle – Porque, realmente, o é.

Eu – Como?

Elle – O senhor vê aquella rapariguita que ali está encostada ao muro... Repare-a. Repare, depois naquelle velho barbaça; depois naquelle sujeito que finge escolher mangericões ou arrudas... para beliscar a pequena...

Eu – O sr. inverte as cousas... Não é esse o pensamento do artista.

Elle – Perdão. Queira ter a bondade de me acompanhar. Aquele malandrim seduziu a rapariga. Sim, seduziu-a, e por causa desse desaforo veiu o segundo acto, que é aquelle que ali está (apontou para o final de jogo do Sr. Chambelland). Foi um sarilho. O pae e o irmão mais velho da rapariga e os amigos do seductor, com o próprio seductor á frente, encontraram-se numa hospedaria de má nota e foi aquillo que o senhor está vendo: cacetadas, rasteiras, facadas... Depois, o final é aquelle (Apontou-me o Epílogo do Sr. Manna). É aquelle, o terceiro acto. O velho, coitado, quis defender a honra da pequena e mandaram-no para o Necrotério.

- Eu (boquiaberto)... Mas... o senhor é extraordinário!!...

O texto acima nos mostra com jocosidade e temperança a interpretação crítica que Gonzaga Duque faz da composição Antes da Aleluia. Foi com este quadro que Firmino Monteiro obteve o prêmio de viagem à Europa.

Artur Timóteo da Costa era carioca, e nasceu a 12 de novembro de 1882. Era o irmão mais novo de João Timóteo da Costa que foi também excelente pintor, muito embora de outro tipo de sensibilidade e sem jamais ter alçado vôos tão altos. Um e outro dividiriam aliás pela vida a fora muita coisa em comum, e com freqüência trabalharam juntos – como por exemplo nas decorações do Fluminense Futebol Clube, em 1920.

O improviso, agilidade de execução e certa dramaticidade na obra de Artur devem-se ao seu aprendizado junto ao cenógrafo italiano Oreste Coliva. Foi aprendiz na Casa da Moeda do Rio de Janeiro, tendo como seu protetor Enes de Souza, diretor daquela instituição. Teve aulas com Daniel Bérard, Zeferino da Costa, Rodolfo Amoedo e, sobretudo com Henrique Bernardelli.

Estando na Europa em 1908 percorre algumas cidades da Espanha e da Itália, fixando-se em Paris. O pintor que para lá foi, retorna modificado, ...sua visão dos seres e das coisas ...sua execução imensos progressos no sentido de uma maior dinâmica e de uma expressão mais direta e mais atualizada. Participa da decoração do Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Turim em 1911, tendo em vista a comemoração do cinqüentenário da unificação da Itália.

Artur Timóteo foi pintor de paisagens e de figuras, destacando-se entre essas nus femininos, retratos e personagens num interior. Algumas das paisagens que fez, nas redondezas do Rio de Janeiro e mesmo na Europa, impressionam pela riqueza da pasta pictórica, pela intensidade luminosa do colorido e pela liberdade de toque.

Morre dramaticamente em 1922, vitima de demência paralítica, ou seja, paralisia geral progressiva no Hospício dos Alienados do Rio de Janeiro.

O Brasil Negro – Capoeira, samba, feijoada, candomblé, vatapá. Que país seria o Brasil sem o legado da cultura africana? Certamente não o mesmo que hoje é – e dificilmente mais colorido, dinâmico, múltiplo e ruidoso. Falar na “influência cultural” que os negros tiveram no Brasil é quase um deboche: o que parece ter havido, em certas áreas do país, é quase tão somente uma adaptação dos padrões de comportamento dos escravos às novas condições de vida a que foram submetidos. Depois que eles se estabeleceram e se expandiram, os demais povos é que absorveram e adotaram inúmeras tradições africanas. O Brasil não comeria o que come, não rezaria como reza, não dançaria e cantaria como agora canta, dança, reza e come não fosse a riquíssima herança deixada pelos 4,5 milhões de escravos trazidos da África sob as mais árduas condições e, por mais de três séculos, jogados nas praias, florestas, morros e cidades do Novo Mundo. Embora o Nordeste tenha sido a área que recebeu maior influência dos povos africanos, não há um só lugar do Brasil – nem mesmo os predominantemente europeus Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul – que não tenha sido transformado pelo legado do negro.

paulo costa

maio/2010

Fontes Consultadas:

Leite, José Roberto Teixeira, Pintores Negros do Oitocentos, São Paulo, editor Emanoel Araújo, MWM Motores Diesel Ltda.: Indústria Freios KNORR Ltda., 1988, 1ª edição.

Museu Afro Brasil, Exposição de Valentim a Valentim – A Escultura Brasileira – Século XVIII ao XX, São Paulo, em 13 de maio de 2010.

Linha do Tempo consultada em 14 de maio de 2010 e disponível em: www.achetudoeregião.cccccom.br/atr/cronologia.htm.

História do Brasil, Empresa Folha da Manhã e Zero Hora/RBS Jornal, São Paulo 1997, 2ª edição.

ISTOÉ – Brasil 500 Anos, Atlas Histórico, Grupo de Comunicação Três S/A, São Paulo, 1998.

Reproduções dos documentos primários das Exposições de 1879 – 1884 – 1890 e 1896, bem como os textos de crítica apensados encontram-se disponíveis em: http://DezenoveVinte-Arte Brasileira do Século XIX e Inicio do XX, acessado em 08 de maio de 2010.

Duque, Gonzaga, A Arte Brasileira, Campinas/SP, Mercado de Letras, 1995.

Fonseca, Joaquim da, CARICATURA – A Imagem Gráfica do Humor, Porto Alegre/RS, Artes e Ofícios Editora Ltda., 1999, 1ª edição.

Silva, Dilma de Melo (organizadora), Brasil: Sua Gente e Sua Cultura, São Paulo, Terceira Imagem Editora/Cesa, 2007, 2ª edição.

Negros Pintores, Catálogo, São Paulo, Via Impressa Edições de Arte, 2008.

paulo costa
Enviado por paulo costa em 04/07/2010
Código do texto: T2357818
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