Sobre o medo
Certa vez, freqüentando um grupo de estudos sobre autoconhecimento, instada a listar meus preconceitos, disse que não os tinha. O orientador pediu que eu revisse meu conceito sobre Preconceito e a partir daí, descobri mais de trezentos. Sobre o medo aconteceu a mesma coisa. Pois de cara, se me perguntavam de que tinha medo, respondia: de nada. Mas no fundo eu, mesmo sem confessar, sabia que era um equívoco.
 
Eu tinha muitos medos só me recusava a reconhecê-los. Mas o momento chegou, hora de ir buscá-los, identificá-los e extirpá-los. Busca feita tanto a identificação quanto a extirpação foi parcial. Pois ainda contínuo a identificá-los e sua extirpação é mais lenta ainda. Ainda mais por que, a cada medo combatido e subjugado, um novo medo acaba surgindo, fruto da incrível e veloz mutação social.

Espinosa escreveu: O medo é a mais triste das paixões tristes. Eu nunca havia pensado no medo como uma paixão – mas em face dessa afirmativa de Espinosa comecei a rever meu conceito sobre o medo e acabei enquadrando-o de maneira semelhante a do filósofo.  Lembrei-me de quando minha irmã ficou doente e de como a minha vida passou a ser dominada pelo medo de que ela morresse, medo que se tornou negação, negação que se tornou obsessão: eu nem mesmo admitia pensar na possibilidade da morte dela mas o medo passou a fazer parte de minha vida por mais de cem dias, quando o dia só tinha duas horas esperadas: as matinas e as vespertinas quando recebíamos os telefonemas do hospital trazendo notícias de seu estado de saúde. E então por períodos, havia a alternância entre a leve esperança e a continuidade do profundo medo.

Quais são os meus medos? Escrevo sobre alguns deles porque outros estão tão arraigados em mim que ainda nem ouso pensar neles com clareza. Prefiro deixá-los adormecidos, pois acordados colocariam em movimentos paixões descontroladas.

Penso que morrer é o maior dos medos universais embora eu afirme que não tenho medo de morrer. Não tenho hoje porque ainda me sinto intocada e porque descobri que tenho mais medo do que suponho possa a vir a acontecer, do que realmente acontece, já que tenho bastante cabeça fria para enfrentar os problemas reais. Mas quando eu era menina eu tinha um medo terrível de morrer ou de que alguém de minha família morresse só por causa do maldito inferno – e é isso que não perdôo a Igreja Católica – esse medo de arder no fogo do inferno e de que as pessoas que eu amava também pudessem sofrer esse castigo. Perdi noites e mais noites sem dormir dominada por essa triste paixão – o medo de arder no inferno, o medo de pecar e, portanto, também o medo de viver. Pois essa é a triste verdade: eu tive mais medo de viver do que de morrer.

Esse medo de viver provocado pelo medo do Inferno acorrentou minha vida durante anos e ainda hoje sinto os seus reflexos em muitas de minhas atitudes. Não acredito mais em inferno, não como um local real de profunda dor e queimação, mas sei que ele existe quando deixamos o medo tomar conta de nossos pensamentos. e nos impedir de agir.

Percebo ao meu redor o medo real que as pessoas têm em relação aos outros. Temos que nos proteger do outro a todo custo, pois esse outro está a nossa espera para nos fazer mal. Instalou-se há tempos em nossa sociedade esse medo: vivemos em casas com grades e cercas elétricas, muros altos nos separam do mundo lá fora que quer nos pegar para roubar e sacanear. E apesar de afirmar que não tenho esse medo vivo em uma casa assim, onde a campainha foi substituída pelo interfone, onde ninguém bate à porta porque chegar até ela é muito difícil. O ô de casa acompanhado de batidas de palmas desapareceu para sempre.
Quando andamos pelas ruas instintivamente classificamos as pessoas que nos cercam e as que conosco se cruzam, como perigosas ou confiáveis. Não mais abrimos as janelas do carro porque fora dele está o perigo. Quando chegamos em casa, olhamos para todas as direções para ver se estão livres de sombras para que possamos entrar em segurança. E estas sombras são frutos de nossa culpa – são formados pelos degredados da vida, aqueles que não tiveram a sorte que tivemos ou não souberam aproveitá-las. Temos medo de gente, temos medo do nosso igual, principalmente se suas vestes são rotas, sua aparência, famélica, seus olhos, acusadores. Eis o inferno, senhores, o inferno que continua a nos aterrorizar, não agora com labaredas ardentes, mas com as chispas do desprezo. 

 O medo é frio e ocupa todos os recônditos de nossa alma. O medo é paralisante e o cérebro se vê incapacitado de ordenar ações coordenadas e lúcidas. O medo é burro e nos obriga a fugir quando deveríamos enfrentar e nos prega no chão quando é preciso fugir, voando se possível. O medo nos faz covardes quando deveríamos ousar e imprudentes quando deveríamos nos conter. O medo é uma praga, é o próprio inferno.

O medo não nos deixa em paz mesmo quando estamos dentro de nossa casa gozando das delícias e facilidades da modernidade. Dia desses li sobre uma pessoa que não revela seu nome verdadeiro, não expõe sua foto na net por causa de seu próprio medo e do medo de sua família de que a exposição a torne vítima de internautas perigosos.

Qual seria o meio termo?Como viver sem medo, mas com segurança? Essa questão é preocupação humana desde tempos inatingíveis e continuará a ser porque tudo indica que mudam os problemas, mas a natureza do homem continua a mesma.  Portanto, se não podemos modificar  essa situação temos que tentar pelo menos  conviver com o medo sem que ele nos destrua.