Que é isto, a subjetividade?

“Se eu fosse objeto, eu seria objetivo. Como sou sujeito, sou subjetivo” (António Alçada Baptista). (1)

“A produção de idéias, de representações, de consciência está, desde o início, diretamente entrelaçada com a atividade material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta do seu comportamento material” (Karl Marx). (2)

Penso que um dos caminhos possíveis à compreensão da subjetividade é observar como se configura nosso entendimento sobre o que seja o sujeito.

Destaco a noção de sujeito alojada no cartesianismo. Para Descartes, o ser humano é plenamente soberano de sua atividade racional. Assim estabelecido e autoidentificado, o sujeito cartesiano tem em sua interioridade o núcleo que constitui a sua subjetividade. Ela parece ser a-social e a-história porque seu detentor é o sujeito plenipotente graças à racionalidade.

Porém, temos de indagar: esse sujeito existe?

Para responder a essa pergunta, recorro ao nosso Machado de Assis (3). Em seu conto "O caso da vara", ele fala de Damião, que, tendo sido levado ao seminário pelo pai, certo dia resolveu fugir dos padres por não querer seguir a vida sacerdotal. Cheio de medo em plena fuga, Damião busca a ajuda de Sinhá Rita, viúva que mantinha estreita relação com João Carneiro, o homem que se deixava influenciar.

Damião consegue convencer Sinhá Rita de que não quer a formação seminarística. Ela se predispõe a ajudá-lo. Manda chamar João Carneiro, determinando-lhe que vá até o pai do fugitivo comunicar o que se passava.

Enquanto Carneiro não chega, Sinhá Rita levanta o moral de Damião, que se atreve a piadinhas. Nessa hora entra a outra personagem da trama, Lucrecia, a criada que trabalhava na confecção de uma almofada de renda, mas que pára sua tarefa para rir da piada de Damião. Sinhá Rita não gosta do atrevimento de Lucrecia e lhe determina a terminalidade da tarefa: se a noite a encontrasse sem ter concluído a tal almofada, a criada seria punida com a vara. Damião, porém, tenta retribuir proteção ao riso da criada, disposto a evitar que a surra prometida viesse a acontecer.

Vencida a hesitação de Carneiro sob o mando de Sinhá, João vai ao pai de Damião e retorna um bilhete afirmando: o pai não aceitara a decisão do filho. Sinhá responde ao bilhete, dizendo a Carneiro que salve o garoto, sob pena de fazer com que ele Carneiro desapareça da vida dela.

Mas a noite chegou. Lucrecia não havia terminado a almofada. Sinhá fica possessa e parte para cima da criada, pedindo a Damião que lhe estenda a vara. Ele hesita outra vez, mas, entre cumprir o desejo de proteger Lucrecia e alcançar seu intento de deixar o seminário, opta por salvar a própria pele. Acaba passando a vara às mãos de Sinhá Rita.

Temos aí a caracterização dos sujeitos: Damião é egoísta; João Carneiro, dócil; Sinhá Rita, autoritária e prepotente; Lucrecia, a alienada, no sentido de que não tem o menor controle de si, de seus atos e vontades.

Como a subjetividade diz respeito ao modo como cada um pensa, reflete, sente, percebe, age e interage com o mundo objetivo, a maneira com que cada um desses personagens realiza esses processos depende daquele sujeito cartesiano ou será fruto dos processos de sociabilidade vividos ao longo de suas vidas? Por que, mesmo sendo igualmente racionais, esses sujeitos apresentam modos diversos de ser, estar, sentir e representar o mundo?

Creio que essas perguntas constituem um bom caminho para pensarmos no que consiste e em como se manifesta a subjetividade humana. Nesse tipo de assunto, mais vale a atitude investigativa do que as respostas prontas, que, aliás, não existem.

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1 BAPTISTA, A. A. O Boêmio do Espírito. In Um olhar à nossa volta. Barcarena: Editorial Presença, 2002.

2 MARX, K. A ideologia alemã. Trad. W. Dutra e F. Fernandes. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.

3 ASSIS, M. O caso da vara. In Contos. Porto Alegre: L&PM, 1998 –com estudo crítico de Marcos Bandan, p. 76-89. Col. L&PM Pocket, v. 107.