Polêmicas: autoria e leitura, falar e ouvir

Wilson Correia

Assisto a um debate interessante veiculado na lista de professores entre os quais me encontro. O tema é polêmico porque versa sobre "homofobia", o "medo de si mesmo", o humano com medo do humano. Novidades nenhumas: a história bem que poderia ser contada na perspectiva daqueles "senhores de tudo", que sempre metem medo, e daqueles medrosos porque rebaixados, a forças mil, a condições de somenos. Essa seria uma história de descalabro, injustiça, abuso, escravocracia, assimetria e de muita, muita estupidez.

É nesse debate que, vez ou outra, recorre-se ao poder do autor para alavancar a autoria, tal como um “magister dixit” (o mestre disse) absoluto, respaldado no argumento da autoridade (normalmente, quando cresce o calor dos interesses, baixa-se a ataraxia da razão). Mas... quem é o autor? Barthes, venha em meu socorro, por favor:

“O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na medida em que, ao terminar a Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestigio pessoal do indivíduo, ou como se diz mais nobremente, da ‘pessoa humana’. É, pois, lógico que, em matéria de literatura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologia capitalista, a conceder a maior importância à ‘pessoa’ do autor” (BARTHES, 2004, p. 1).

Pensamos, em nossa ingenuidade generalizada, que o autor exista. A bem da verdade, tal como Nietzsche matou Deus, Barthes mata o Autor. Mortes que, a meu juízo, combinam mais com a polissemia da existencialidade concreta do homem e da mulher, em suas múltiplas formas de estilizar a vida, esse nada paradoxal por nos pedir algo grandioso: um sentido para se aguentar o peso ôntico incrustado em cada vivente. Mais uma vez, leiamos e ouçamos Barthes, para quem o “Um” não pontifica na arte de escrever:

“Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito. É por isso que é irrisório ouvir condenar a nova escrita em nome de um humanismo que se faz hipocritamente passar por campeio dos direitos do leitor. O leitor, a critica clássica nunca dele se ocupou; para ela, não há na literatura qualquer outro homem para além daquele que escreve. Começamos hoje a deixar de nos iludir com essa espécie de antifrases pelas quais a boa sociedade recrimina soberbamente em favor daquilo que precisamente põe de parte, ignora, sufoca ou destrói; sabemos que, para devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor” (BARTHES, 2004, p. 6).

Morto o Autor, surge o papel da escrita. Aí a tarefa da escrita do autor é sempre a de ser a fala alheia, também indeterminada, jogando-nos no campo da linguagem. Mas “A linguagem é a vida que carrega a morte e nela se mantém” (BLANCHOT, 1997, p. 323).

Então, temos que nos debater com a linguagem. E, aí, começa outra ordem de problemas. Entre eles, o que se relaciona à capacidade de ler para “ouvir”. Como ler? Como ouvir? Uma crônica de Arthur da Távola nos ajuda a pensar sobre isso:

“Ouvirtude

Arthur da Távola

Um dos maiores problemas de comunicação, tanto a de massas como a interpessoal, consiste em descobrir como o outro ouve, se é que houve...

A mesma frase permite diferentes níveis de entendimento. Raras, raríssimas, as pessoas que procuram ouvir exatamente o que a outra está dizendo.

1. Em geral o receptor não ouve o que o outro fala. Ouve o que o outro não está dizendo.

2. O receptor não ouve o que o outro fala. Ouve o que quer ouvir.

3. O receptor não ouve o que o outro fala. Ouve o que já escutara antes e o coloca no que o outro está falando.

4. O receptor não ouve o que o outro fala. Ouve o que imagina que o outro ia falar.

5. Numa discussão, os discutidores não ouvem o que o outro está falando. Ouvem o que estão pensando para dizer em seguida.

6. O receptor não ouve o que o outro fala. Ouve o que gostaria de ouvir ou o que o outro dissesse.

7. O receptor não ouve o que o outro fala. Apenas ouve o que está sentindo.

8. O receptor não ouve o que o outro fala e, sim, o que já pensava a respeito daquilo.

9. O receptor não ouve o que o outro está falando. Ele retira da fala apenas as partes que tenham a ver consigo e: concordem, emocionem, agradem ou molestem.

10. O receptor não ouve o que o outro está falando, e, sim, o que confirme ou rejeite o seu próprio pensamento. Vale dizer, transforma-o em objeto de concordância ou discordância.

11. O receptor não ouve o que o outro está falando, mas o que possa se adaptar ao impulso do amor, raiva ou ódio que já sinta pelo emissor. Concordância ou discordância camuflam-se de racionais, porém são empáticas. O mundo é regido tanto pela economia quanto pela empatia. Argumentos são disfarces intelectuais da simpatia...

12. O receptor não ouve o que o outro fala e, sim, apenas, os pontos que possam fazer sentido para as idéias e visões que no momento estejam influenciando ou comovendo.

Esses 12 (doze) itens mostram como é raro e difícil conversar. Como é raro e difícil se comunicar! O que há, em geral, são monólogos simultâneos à guisa de conversa, ou monólogos paralelos, à guisa de diálogo. O próprio diálogo pode haver sem que, necessariamente, haja comunicação. Pode haver até um conhecimento a dois sem que necessariamente haja comunicação. Esta só se dá quando ambos os pólos ouvem-se, não, é claro, no sentido material de ‘escutar’, mas no sentido de procurar compreender em sua extensão e profundidade o que o outro está dizendo.

Ouvir, portanto, é muito raro. É necessário limpar a mente de todos os ruídos e interferências do próprio pensamento durante a fala alheia. O filtro do preconceito não está na mente e sim no ouvido.

Ouvir implica numa entrega ao outro, numa diluição nele. Daí a dificuldade de as pessoas inteligentes efetivamente ouvirem. A inteligência em funcionamento, o hábito de pensar, avaliar, julgar e analisar, interferem, como ruído, na plena recepção do que vem de fora. E mesmo de dentro... Ouvir-se é tão raro e difícil quanto ouvir o outro.

Não é só a inteligência a atrapalhar a plena audiência. Outros elementos perturbam o ouvir. Um deles é o mecanismo de defesa. Há pessoas que se defendem de ouvir o que as outras estão dizendo, por verdadeiro pavor inconsciente de se perderem a si mesmas. Elas precisam ‘não ouvir’ porque ‘não ouvindo’ livram-se da retificação dos próprios pontos de vista, da aceitação de realidades diferentes das próprias, de verdades idens e assim por diante. Livram-se do novo, que é saúde, mas as apavora. Não ouvir é, pois, sólido mecanismo de defesa.

Ouvir é um desafio de abertura interior; de impulso na direção do próximo, comunhão. Ouvir é proeza e virtude. Deveria haver a palavra ‘ouvirtude’... Ouvir é raridade, ato de sabedoria.

Só depois que se aprende a ouvir começa a sabedoria. Descobre-se, então, o que os outros estão dizendo a propósito de falar..." (TÁVOLA, 1984, digital)

Talvez essa dificuldade possa ser pensada com base no texto que segue.

“Eu, leitor

Wilson Correia

‘Embora tenha sido um leitor voraz e ardente, não me lembro contudo de nenhum livro que tenha lido, a tal ponto eram minhas leituras estados de minha própria mente, sonhos meus, e ainda provocações de sonhos’ (Fernando Pessoa, O eu profundo).

Não leio o que está escrito.

Leio a mim mesmo, o que sou, no escrito dos outros.

Não leio o que está escrito.

Leio a minha própria vida, êxitos e fracassos pessoais.

Não leio o que está escrito.

Leio a verdade que imagino poderia estar no escrito.

Não leio o que está escrito.

Leio o que acho que seria melhor para o tema abordado.

Não leio o que está escrito.

Leio o que aprendi, o que sei, aquilo em que acredito.

Não leio o que está escrito.

Leio o que eu gostaria que no texto estivesse escrito.

Não leio o que está escrito.

Leio o que imagino que o autor poderia ter confessado.

Não leio o que está escrito.

Leio o que me dá motivo para o prazer e para o riso.

Não leio o que está escrito.

Leio o que acho que o autor quis comunicar ao escrever.

Não leio o que está escrito.

Leio para confirmar meus saberes e minhas crenças.

Como metade do que leio me pertence, acabo sempre reescrevendo o que leio, e, ao ler, sinto raiva, tristeza ou alegria. E está tudo bem assim. Pior seria se o texto não fosse aquela ponte onde leitor e autor se encontram a caminho da vida mesma, mediante a tarefa desafiadora que é o escrever à procura do sentido” (CORREIA, 2009, digital).

Conclusão

Escrever e ler e falar e ouvir são atos que nos remetem às relações, aos vínculos. E que essa interação seja guiada pelo bom senso, o mais ajuizada possível – até onde isso puder acontecer.

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Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

BLANCHOT, Maurice. A literatura e o direito à morte. In: BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

CORREIA, Wilson. Eu, leitor. Recanto das Letras. Disponível em: <http://66.228.120.252/pensamentos/1658497>. Aceso em: 05/06/2011.

TÁVOLA, Arthur da. Ouvirtude. In: TÁVOLA, Arthur da. Amor a sim mesmo: crônicas. São Paulo: Nova Fronteira, 1984. Disponível em: <http://devinicius.blogspot.com/2009/09/ouvirtude.html>. Acesso em: 05/06/2011.