Quando um beijo não é de graça

O hábito de beijar pode ter sido iniciado na Suméria, há milhares de anos, quando os mesopotâmios jogavam beijos para os deuses. Pais e filhos o praticavam; mesmo guerreiros romanos, com sua sexualidade exaurida pela expansão infinita do império, beijavam entre si, e a universalização das carícias bucais vem deles.

Basium. O beijo na boca. Jóia de Heródoto, que, já no século V a.C. listou todos os tipos de beijos existentes, com seus significados para o mundo do Oriente.

A Igreja se apropriou da idéia do beijo, utilizando-o em suas cerimônias, das mais simples às mais grandiosas. Proibindo qualquer conotação libidinosa para tal, terminou por abandonar este rito, substituindo-o pelo abraço fraterno, no século XVII. Sem dúvida, uma porta aberta para as delícias de duas línguas, que foi explorada pelo Romantismo, ganhando uma dimensão e uma identidade com o amor tão grande, que mesmo hoje, face à banalização que este gesto sofreu e sofre, ainda é sinônimo de sensações agradáveis, e prenúncio de grandes e bons relacionamentos.

Há quem diga que os beijos são termômetros; caso percamos o desejo de beijar alguém, então nossa capacidade de relacionar-se com a pessoa está seriamente abalada, talvez terminada. Pertenço a essa corrente, e, infelizmente, ainda tento esquecer o gosto de beijos muito ruins.

"Nos casos do beijo de amor e do beijo apaixonado, quando são bons, dão asas à imaginação e deixam aquela sensação gostosa e até saudade." A frase de Eduardo Lambert sugere a delícia de um beijo bem dado, cuja sensação pode durar dias, meses, ou mesmo anos. Quiçá, em algum dia, alguém já teve, como última sensação, o gosto de um beijo... antes de falecer. Existiria morte menos dolorosa?

Quimicamente, libera endorfinas. Fisicamente, reflete-se nas pupilas dilatadas, no estímulo sensual, no sorriso dos lábios. Na leveza, na incrível dança das línguas - e que dança! que harmonia! -, no coração que explode, nas mãos que agarram-se aos cabelos, ombros, roupa. É uma quantidade enorme de símbolos, de gestos e sensações, apenas para denotar o que se sabia desde os sumérios: beijar é sublime, e um beijo bem dado é um verdadeiro capricho divino. Uma delícia capaz de nos dividir entre o céu e o inferno.

Apesar de tão lindo, o beijo tem seu preço. Ele é um contato - bucal, corpóreo - com outra pessoa, e, dependendo do quanto se conhece, gosta ou confia na pessoa em questão, os lábios em comunhão podem cair na mesmice da excitação física, roubando sua complexidade e exuberância. Então, beijar quinze pessoas em um ano significa experimentar variações do mesmo tema. Uns beijos ruins, outros bons, outros maravilhosos, outros indizíveis; mas todos condenados à vala malcheirosa de uma lembrança pantanizada, onde desembocam nossos casos infrutíferos, nossas esperanças arremessadas a ventos velozes e impetuosos.

Talvez seja um caso de auto-valorização dar férias labiais, resumindo sua função à fala, ingestão de alimentos, e, no caso feminino, um batonzinho. Bem, eu dei férias aos meus, e ainda tenho umas semanas para pensar na real necessidade de beijar. Será um mês onde meus lábios se calarão para outros lábios, e talvez neguem carícias muito agradáveis. Mas o aprendizado que terei por tal abstinência certamente não será em vão.

Thiago Salinas
Enviado por Thiago Salinas em 02/07/2005
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