Ensaio sobre a atualidade

“Logicamente, a filosofia do método, ou o método como filosofia, significa arte para artistas, biologia para biólogos, revolução para revolucionários, crítica literária para críticos literários – não havendo para nenhum deles falta de esclarecimento.” (A Tradição do Novo – Rosenberg)

A sociedade então entra em uma super especificação de áreas que se excluem mutuamente deixando cada cidadão como inflado em sua própria posição. Certo que o nível de certa sociedade se vê, ou é um dos bons parâmetros de análise, pela especificação das atividades. Quanto mais especificadas as atividades de uma sociedade mais ela é intrincada.

Intrincada aqui no bom sentido, pois essa super especificação deixa que muito mais pessoas se integrem em atividades sociais. Como vemos, não tem muito tempo, houve um concurso para gari no Rio de Janeiro. Quantas pessoas, de todas e qualquer classe participaram da prova?

Em uma sociedade de ponta existem espaços para pessoas que se destacam mentalmente e para aquelas que se destacam fisicamente. Aceitar que pessoas têm diferentes dotes e capacidades é englobar mais delas no ceio da cidadania. Até porque hoje em dia ser cidadão é poder consumir.

Não digo aqui julgando, mas falando objetivamente. O conceito hoje de cidadania está diretamente ligado à capacidade de consumo da pessoa. Quanto mais ele puder consumir, aqui ainda mais, em termos de serviço e informação ele está mais inserido no âmbito social.

Veja-se, por exemplo, o alvo da propaganda. Que atualmente não quer vender mais nada, mas apenas se apresentar. Dizer que está ali. Cada vez mais, perceptivelmente, as propagandas enaltecem atributos secundários. Não compramos a pasta de dente tal porque ela é melhor para os dentes, mas porque ela nos deixa mais jovens, atléticos, felizes, com uma família linda...

O mundo da imagem substitui conclusivamente o mundo real e tudo é feito através de imagens, inconscientemente falando. Substitui-se o real pelo imagético. Onde antes existia um contato direto entre pessoas e objetos agora existe um meio termo que intermedia todas as relações.

Não se possui um objeto, mas o que quer que surja com sua posse relativa. A imagem que aparece inevitavelmente atrelada a “marca”, o “mito”, a vida. Vive-se a imagem da vida e realmente vive-se isso. A imagem é real, mas ainda sim é imagem. Como já disse em outro texto, quando algo acontece em nossas vidas que achamos mais “vivos” comparamos logo a um filme. “Nossa foi igual cena de filme”.

O filme passa a ser realidade e a vida sua imitação. Há inevitavelmente uma super valorização dessa imagem. Nesse quesito a novela brasileira tem papel determinante, pessoas vêem personagens puramente unidimensionais como seres que merecessem atenção. Tramas inverossímeis fazem as vezes de sentido real ou moral da vida. A inversão é muito forte para ser sentida como ilusão, já que a ilusão é real.

Nesse intermédio total das imagens, perdemos contato, profundamente, com o ser e passamos a agir como se esse intermédio valesse como realidade objetiva. Quem não acha que seus valores são absolutos? Matar? Roubar? Trair? Valores que parecem pilares. Parecem.

Todo valor é subjetivo, e assim sempre foi, e é o que as obras de arte lembram tão bem e incisivamente colocam nosso lugar na realidade. A obra de arte é o objeto único que vale muito. Enquanto nossos objetos do dia a dia valem pouco e são muitos. Esses vazem as vezes de individualidade. Sou o que visto e uso. Sou o que pratico. Defino-me pelo que gosto. Infelizmente essas imagens sobrepostas e agrupadas não fazem um ser humano. Somos mais, e é essa essência que é perdida hoje em dia.

Julgamos pelo que vemos e acreditamos piamente que a imagem que chega até nós é real e objetiva. Ele é assim, olha a roupa dele. Ela é de tal jeito, você não vê o jeito que fala. E assim a imagem vai tomando o lugar da humanidade de cada um.

É quando inevitavelmente entra a super especificação das tarefas. Entende-se muito de uma articulação do joelho. Mas esqueces-se o que é um ser humano, uma vida, um todo o resto. O que autoriza, pelo jargão empregado, a formar-se círculos de especificidade. Vemos, então, profissões que se digladiam. Vemos grupos em eterna disputa.

Perde-se o referencial humano na alienação super especificada de cada tarefa. Sabe-se muito de uma coisa e pouco do resto. Essa característica marcante deixa tudo como está no sistema capitalista. Onde temos camadas em que as pessoas se tornam especificas.

Temos alguém que pode ser o entendido de arte contemporânea, curtir mpb e ser degustador de vinhos. Em cada camada ele se classifica como especialista no que se pretende e tem com isso méritos para julgar o que se conhece. Mas apenas isso, e causa uma ruptura com o todo. Pois existem aqueles que gostam de funk, entornam a “pior” cerveja e curtem um gibi da Mônica. Que por sinal também são “qualificados” para expor sua opinião sobre o resto que não lhes satisfaz.

É onde a super especificação social entra em todo seu âmbito globalizante. Ela consegue atingir cada um com uma parte reduzida (todas as partes passam a ser reduzidas) do todo e com isso engloba todas as pessoas em seu sistema. Temos uma indústria para cada ramo determinado, que por si só se sente único e merecedor de créditos. Onde um roqueiro se acha superior a um pagodeiro em termos musicais. E amplie esse caso para todas as outras áreas da vida social.

Veja-se por exemplo dos esportes. Detendo-me no futebol, por ser o mais popular dos esportes no Brasil. Fala-se de futebol fazendo-se as vezes de política. Discute-se ferrenhamente sobre questões que estão fora do âmbito argumentativo, mas que fazem total sentido para quem discute. Avaliando objetivamente táticas, reforços, técnicos, politicagem sobre transações de jogadores. E uma infinidade de outros assuntos que colocam o esporte em pauta maior que outro assunto. Pior, não é o esporte em si que se discute. Quem discorda que o esporte é passageiro, um ano está bem no outro perde-se tudo. Mas a tendência que tem-se (imagem) de se classificar um time como tetra campeão disso ou daquilo. Títulos que foram há mais de anos conquistados e hoje não refletem em nada no desempenho do time.

Ela faz as vezes da historia social. Toma-se a parte pelo todo em um processo metonímico da história particular. E quanto a realidade, confunde-se com a imagem que se tem de um time. Que muitas vezes diz claramente que não condiz com o todo de sua história, mas as vezes consegue vencer e fica aquela ilusão de que se iguala ao todo. Criando uma coesão muito frágil, mas que é tida como realidade bruta.

Por esse processo imagético toma-se a história por pedaços e pedaços pelo todo com uma facilidade incrível. Onde recordes são atualizados diariamente. Ouve-se com freqüência “a maior enchente em oito anos”. “O gol mais rápido nos últimos dez anos”. “Vai ser o ano mais quente dos últimos quatorze anos”.

Pega-se a parte que interessa e substitui-se pelo todo. O ano mais quente em quatorze anos? E o décimo quinto ano passado? Não conta? Os recordes são especificidades presentes em tempo real e acompanham a vida de todos tornando-se a imagem da atualidade. Para fazer-se sentir o hoje como totalidade.

Vemos o mundo sempre por uma ótica diferente, a cada dia nossa “impressão” das coisas muda drasticamente e com isso alguns anunciam o fim da história. Que é reescrita em tempo real e por uma infinidade de pontos de vistas distintos. Mas como a humanidade não acabou a história de sua história nunca poderá ter fim e por isso esses mesmos que anunciam o fim da história escrevem mais uma página da própria.

Essa divisão específica das funções ao mesmo tempo que nos diz o quão diversificada e a avançada nossa sociedade é também nos diz o quanto de separação os indivíduos acabam por consolidar entre eles mesmos. Pois, e isso é óbvio, que uma sociedade que inclui mais pessoas em seu sistema tenda a ser mais aceitável isso acarreta em como ela vai aceitar tais pessoas.

Como já disse é pelo consumo imediato de bens duráveis e serviços que a cidadania transparece para cada pessoa de nossa sociedade. É também um fato que o trabalho está aí para incluir as pessoas nesse meio. Mas os empregos divergem muito em suas funções e ganhos. Infelizmente, essa é o torque da coisa, a propaganda vende uma vida (lembremos que ela deixou de vender produtos pelas suas qualidades) que está ao “alcance” de qualquer um, ela não mede esforços e não classifica. Skol é skol em qualquer parte. Entre em um supermercado em época de festas coletivas e vai ver as pessoas, muitas delas, optando por marcas mais baratas, mas com aquela consciência que está levando uma cerveja que não é a desejada.

Mas efetivamente a Skol não é a melhor cerveja, veja-se por exemplo (mais um dos grupos específicos sociais) as matérias sobre cervejas em revistas especializadas e vamos perceber que por aqueles que mais entendem do negócio que a Skol não é a melhor. Mas simplesmente pela imagem, pela propaganda, pela cultura que criou ela é a de mais status. Logo mais cara. Logo causa ligeira dose de frustração.

Essa frustração está presente em todos os âmbitos sociais do consumo. Pois sempre há algo melhor a se comprar. Logicamente que isso não está estampado na expressão de cada um a cada momento. Mas a sociedade tecno-científica aplica com maestria novos conhecimentos para girar, e girar em velocidades cada vez maiores, essa onda do consumo, com novos apetrechos a cada mês.

Mas isso também se encaixa no âmbito específico, pois somente uma pequena parcela da população discute e sabe do que se trata tantas das inovações. Divx, mp3, mp4, bluethooth, wireless, peer2peer e assim vai. Logicamente que essas tecnologias vão se incorporando à vida de todos, mas para a maioria é algo forçado. Vai ser assim e pronto. E acaba-se acostumando, sem nunca se entender o que realmente é isso. A magia tecnológica.

Cada um tem seu canto para se encaixar. Entremos em uma banca de jornal em uma metrópole e vemos a quantidade absurda e variada de publicações. Cada público tem a sua. E cada um se acha mais entendido para dar sua opinião sobre o que “sabe”. E com isso vemos em uma roda de conversa entre pessoas minimamente diferentes o quanto uma discussão pode gerar de discórdia entre diferentes assuntos.

Mas isso torna ao mesmo tempo cada um desqualificado. Do momento em que todos são qualificados em alguma coisa, certamente são muito mais desqualificados em todo o resto. Cria-se um distanciamento maior entre as pessoas. Principalmente no âmbito dos relacionamentos.

Cria-se uma suspeita realidade que as pessoas têm que se encaixar. Gostar das mesmas coisas, entender dos mesmos assuntos. Partilhar de mesmas unicidades em um mundo tão heterogêneo e vasto torna as chances de conexão muito remotas. Aí que a essência humana retorna ao seu lugar. Que passa a valer mais, independentemente de qualquer diferença no nível do “gosto”.

Essa que de vez em quando é confundida com o que se diz: “química”. Há de se ter “química”.

Esse individualização dos gostos é um processo que vem tomando forma durante muito tempo na arte, que como se presta, revela o que se pretende. A arte ao longo do tempo veio regredindo seu objeto. No começo representando o exterior, paisagens, a criação da perspectiva para desenhar com muito mais precisão o que se vê. E, grosseiramente, a regressão é perceptível quando digamos, por exemplo, em Van Gogh vemos perspectivas deslocadas e linhas que não se alinham com a perspectiva clássica. A arte sai da representação fiel do que se vê para uma introspecção em como se vê. Coisa que as demais escolas subseqüentes vão destrinchar. O objeto saí do exterior e vem para o interior do olho. O impressionismo pinta não o que se vê, mas como o que chega a vista bate nela. O cubismo pinta mais ainda o que está em nossa percepção.

E assim a arte sai do exterior e vem para o interior. Antigamente apreciava-se a obra sem saber-se o artista. Quem sabe o nome de um autor sequer de uma daquelas esculturas tão perfeitamente acabadas de gatos egípcios? Olhemos para um vitral medieval e ele provavelmente não diz nada sobre seu autor.

Atualmente o que conta é o autor, sua personalidade, sua vida, seu conceito. Se aquilo foi feito por ele, então vale alguma coisa.

Vem-se para a especificidade como valorização. O que importa é o que eu acho e se eu acho isso conclusivamente vale mais ainda. É nessa separação inexorável que se encontram os indivíduos atualmente que se origina o caos urbano e sentimental que vivemos.

Cada pessoa se pensa como dona de si mesma, faz as vezes de sua essência o que veste, o que ouve, lugares onde freqüenta, etc. E por si mesma se vê contra o mundo. Quão não é freqüente as pessoas se referirem à sociedade como algo a parte? “Mas a sociedade nos obriga a fazer isso”. Esse pensamento de inserção social está decomposto e fragmentado. Achamo-nos pertencentes a pequenos grupos, amigos, apreciadores de vinhos, roqueiros, mas não nos vemos pertencentes a sociedade como um todo. Essa alienação é causa direta do modo como nos vemos, individuais e cheios de nós mesmos como especialistas no que nos propomos.

Nesse âmbito que geralmente aparecem o que se chama de subprodutos negativos. Como discordar que atualmente, pelo menos no âmbito dos relacionamentos, a nossa sociedade está caótica e sem sentido? Relacionamentos relâmpagos, brigas por motivos idiotas, pouca sensatez, muita fantasia, ilusão, talvez até muito pouco sendo realmente vivido. A imagem é tomada como um todo. “Mas o que vão pensar de mim se souberem isso?” “Como que alguém pode fazer isso?”

Toma-se uma imagem pela complexa estrutura de um ser humano com redes neurais intrincadas, memórias, vivencias, personalidade, alma etc. Tornando tudo muito volátil. Toma-se uma imagem imediata por toda uma sorte de causas e conseqüências.

É aqui que nos vemos como pessoas livres que podemos decidir. Se fazemos algo somos totalmente responsáveis por isso. Essa idéia de especificação social nos dá meios para cremos cônscios de tudo que fazemos. Pois escolho gostar de pagode, escolho preferir queijos finos, prefiro ainda vestir roupas tais. E quando algo que é muito mais complexo acontece. Algo que é muito mais profundo. Toma-se o todo por essa imagem particular e esdrúxula. Ele traiu!

Trair não é vestir uma roupa nem comprar um disco. Há motivos, causas, conseqüências muito mais profundas nesse agir do que a imagem que temos de alguém e assim que a temos classificamos a pessoa como canalha. De cara duas imagens já tomam o lugar de toda uma intrincada rede de pensamentos, nossa e do canalha e fazem com que desentendimentos se tornem exaltadas picuinhas.

Com base nesse pensamento, que cada um tem consciência para seguir seu próprio caminho que hoje temos um dos piores subprodutos (leia-se estamos passando por uma das fases de transição de valores mais brabas da história). Quando cada um por ser cônscio de sua liberdade particular e individual, assim como se escolhe um carro, crê-se detentor de opção de vida e escolhe agir da melhor maneira possível para si, sendo minimamente egoísta, tudo se estrepa.

Que somos egoístas ninguém pode negar, e o que mais que nosso sistema de hoje para validar essa qualidade? Como disse quanto mais intrincada em termos de serviços uma sociedade é mais avançada ela se mostra. Digamos que você queira comprar um computador e nada entenda do assunto, você paga alguém para lhe montar uma máquina razoável. Ele faz de bom grado, mas não porque é bom, mas porque é egoísta. Ele preza mais o seu dinheiro do que o serviço dele, e você por contraparte preza mais o serviço dele do que seu dinheiro. Daí a mágica que o capitalismo conseguiu entender. Os egoísmos agem perfeitamente bem quando todos praticam ações para outros por meio de trocas de interesses.

Infelizmente isso dá certo somente no âmbito econômico ou das trocas de serviço, que são bem estipuladas e delineadas. Mas ao acostumamo-nos a agir assim nesse âmbito tendemos a agir assim em situações que tocam mais a fundo o ser humano. Temos a tendência de ver os relacionamentos como trocas de interesses assim como as transações de serviços.

Aí é que tudo desanda. O subproduto negativo de cada um fazer o que é melhor para si porque é a melhor coisa a se fazer, no âmbito dos relacionamentos, a principio deixa tudo bem, mas logo cria monstruosidades. Como, por exemplo, insatisfações constantes, cria um ritmo de renovação gigantesco de parceiros, erige um sentimento de instabilidade a toda hora, a insegurança é maior de cada um, e muitos mais que poderiam encher a página.

Pois como nas transações de serviços a que for melhor para você, você provavelmente vai querer. Se alguém lhe monta um computador por x e um outro lhe monta por x/3 você provavelmente vai optar pelo mais barato, tendo uma idéia razoável da qualidade de ambos.

Como não ver que hoje em dia também acontece isso no âmbito dos relacionamentos? Quando um fato já não agrada e encontra-se outra pessoa que provavelmente aquilo não vai ocorrer se troca facilmente de parceiro. Grosso modo.

Mas essas características estão tão inseridas em nosso cotidiano que fazemo-las automaticamente sem nem perceber que as praticamos. Tratamos os seres humanos como trocas de coisas ou serviços em um processo mental parecidíssimo com que fazemos com as outras coisas.

Essa super especificação dos indivíduos mostra o quão avançada nossa sociedade de mostra, mas mostra por outro lado o quão pouco evoluídos somos nós que constituímos a sociedade, que por uma idéia que foge a razão se mostra funcionando de maneira tão boa se analisado nas suas particularidades.

Por mais percalços que se encontre nas relações o todo continua indo. Mas de forma torta e inexplicável. Tanto vemos a gravidez na adolescência, o rompimento de casamentos, a insegurança e insatisfação que se sente com relação ao parceiro. Essa falta de comprometimento.

Não temos mais algo maior por que dar sentido as nossas vidas. Seja pátria, religião, política. Cada um está sozinho, e nunca antes o homem esteve tão livre para ser o que quiser, e tem que forjar seu próprio sentido. Esse sentido, por ser o meio mais fácil, cai no ridículo e ínfimo método da especificação. Vive-se para esse ponto ou outro exclusivamente. E essa especificação toda é aproveitada de forma magistral pelo todo para se manter coeso. Infelizmente às custas da parcela de sofrimento e desentendimento humano que vemos atualmente. Saber viver hoje em dia, saber ser feliz, creio vai por esse caminho, essa derradeira trilha que temos que abrir no meio dessa selva que nos é tão estranha e tão necessária.

leandroDiniz
Enviado por leandroDiniz em 29/01/2007
Reeditado em 04/02/2007
Código do texto: T362785
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