Delírios Tipicamente Norte-Americanos VI

LIDANDO COM RÉPTEIS INESCRUPULOSOS E FRIOS

“Olive?”

“Sim?”

“É Crimson Joe, coronel. Prepare-se para ouvir uma péssima notícia: estamos lidando com répteis inescrupulosos e frios.”

“Do que está falando? Ficou maluco?”

“Tem certeza de que o seu telefone não está grampeado?”

“Como posso saber? Eles nunca comunicam essas coisas. Joe, você está legal?”

“Sim, coronel. É melhor que nos encontremos em algum local neutro.”

“Que tal o Central Park?”

“Ótimo. Encontro-o lá às cinco da tarde.”

“Fechado.”

Joe repôs o fone no gancho, voltando-se para seu pessoal.

“Clemens, precisamos de dinheiro para pegar um Greyhound até Nova York. Acredita que pode trocar uma dessas barras sem despertar suspeitas?”

“Verei o que posso fazer, mas não vou prometer nada.”

“Muito bem. Kep, você, eu e Sam vamos esperar por Clemens naquele restaurante. Preciso urgentemente de um café.”

O lugar estava vazio. Sentaram-se a uma das mesas, e a garçonete veio com um bule de café. Seu uniforme desbotado trazia seu nome bordado.

“Olá, meninos! Vão querer café?”

“É óbvio que sim, Sally.”

“Vão comer?”

“Vou querer ovos e bacon. Kep?”

“Traga-me dois hambúrgueres.”

“E este exemplar esbelto?”

“Sam não é de comer, beleza. É por isso que está tão magro.”

“Ao menos toma café?”

“Não sei... Ei, Sam, quer café?”

(Silêncio.)

“Acho que não, doçura. Sirva apenas ao Kep e a mim.”

A garçonete se afastou, e Joe dirigiu-se a Kepler:

“Muito bem, Kep: pode desembuchar.”

“O que quer saber?”

“Tudo, oras. Como conseguiu aquele emprego, qual sua carga horária, salário, os hábitos daquelas coisas, e o principal: o que elas estão tramando?”

“Primeiro: através dos classificados. Segundo: 12 horas diárias, sete dias por semana. Terceiro: cinco dólares por hora, tirando os descontos. Quarto: gostam de hambúrgueres e de dominar todo mundo. Último: assim como você, têm tendências megalomaníacas. E se quer mesmo saber, acho que todos nós fazemos parte dessa coisa.”

“Como assim?”

“Quando trabalhei em Yale, limpava a biblioteca duas vezes por semana e sempre dava um jeito de estudar um pouco quando não tinha ninguém olhando. Descobri num daqueles livros sobre behaviorismo que o cérebro humano, em suas camadas primárias, guarda semelhanças incríveis com o cérebro dos répteis. Assim, quando arranjei aquele trabalho no complexo laboratorial dos reptilianos, não estranhei que eles fossem criaturas cobertas de escamas, com caudas e desejos de grandeza. Pois, no fundo de nós mesmos, Joe, há um réptil igualzinho àqueles recolhido, pronto para aflorar.”

“Você está louco. Eu não tenho miolos de réptil, Kep. Sou humano, e americano até a medula. Se quer acreditar que é um lagarto por dentro, é problema seu. Mas eu é que não vou cair nessa. Seja lá o que o comportamento das pessoas tenha a ver com isso, não creio que aceitem de bom grado o fato de serem definidas assim. E se continuar com esse papo psicológico, vou abrir sua cabeça para ver se tem escamas aí dentro.”

“Cuius regio, eius religio.”

“E poupe-me também de suas citações latinas.”

Comeram em silêncio. Clemens voltou, vibrante de felicidade.

“Veja, Joe! Quanta grana eu consegui!”

Lançou sobre a mesa várias notas amarrotadas de um e dois dólares.

“De onde veio isso? Dos cofres da Universal Church of the Reign of God?”

“Isso mesmo! Como adivinhou, Joe?”

“Foi uma intuição que tive... Eles te passaram a perna, Clemens! Duvido que tenha mais de trinta dólares aí. Fomos enganados por aqueles trambiqueiros.”

“É mesmo? Pois deixe comigo, Joe. Vou voltar lá e mostrar a eles.”

“Não, Clemens. Aqueles sujeitos são barra pesada. Tome um café e coma alguma coisa. Pensarei em algo.”

A garçonete, ao perceber outra pessoa na mesa, aproximou-se.

“Café, bonitão?”

“Sim, benzinho. Encha a caneca.”

Joe os interrompeu:

“Doçura, avisaria o gerente de que quero falar com ele? Estamos momentaneamente sem grana para a conta, mas podemos propor um bom acordo, que será vantajoso para todos nós. Até sua gorjeta seria mais gorda.”

“É claro, amor. Espere que vou avisá-lo.”

A garçonete se afastou. Logo voltou com o cozinheiro, um troglodita barrigudo vestido numa camiseta regata suja, que deixava escapar o ventre cabeludo por baixo.

“Estão sem dinheiro para pagar pela comida? Não me façam arrancar o couro de vocês. Sou uma pessoa sensível, mas quando alguém tenta tirar proveito de minha sensibilidade, sou capaz de amassar seu traseiro e deixá-lo como uma panqueca.”

“Não precisa tentar nos meter medo, grandalhão. Temos dinheiro, mas é que está em espécie, compreende? Sacamos direto da fonte.”

“De que raios está falando?”

“Ouro. Temos ouro. Uma barra vale bem mais de mil dólares, mas trocaremos por quinhentos. Incluindo a conta.”

Os olhos do paquiderme brilharam com as chamas da ganância.

“Pois mostrem.”

Clemens mostrou uma das barras. O cozinheiro a pegou delicadamente, como se temesse quebrá-la no aperto de sua manzorra.

“Negócio fechado.”

Joe contou o dinheiro e depois foram para a rodovia, onde o Tio Sam foi colocado junto ao acostamento, com um cartaz nas mãos, onde Joe havia escrito em letras vermelhas e enormes: Non stop until New York City. Ficaram confortavelmente reclinados à margem da estrada, tomando whiskey de banana (o preferido de Clemens) de uma garrafa que haviam comprado. De costas para a movimentação dos veículos que passavam rápidos, aguardaram pelo ruído dos freios e pelo som pneumático da porta do ônibus, quando esta fosse aberta para recolhê-los.

COMENTÁRIOS NECESSÁRIOS OU DESNECESSÁRIOS #6

OUTRAS INFORMAÇÕES SOBRE A ÁGUIA AMERICANA

O animal mais famoso da História Contemporânea continua penando pela América

A Águia Americana, que deixamos em Cabo Canaveral envolvida no improvável relacionamento com um ônibus espacial, ouviu a voz da razão e decidiu não mais deixar que a paixão guiasse sua vida. Desiludido das coisas do amor, o pássaro cruzou o país de volta ao seu lar, Washington D.C. O Coronel Olive a esperava na sacada do hotel, e lágrimas escorreram de seus olhos quando a Águia Americana pousou em seu braço estendido. “Você voltou para mim”, disse o militar emocionado, “finalmente estamos juntos!” E ambos choraram abraçados, pois os dois haviam perdido o que mais amavam, e sentiam-se completamente sozinhos no mundo. “Devo ir para Nova York”, informou Olive, “quer me acompanhar? Não seria bom, em seu estado atual, que ficasse sozinha. Milhares de suicídios ocorrem por falta de companhia durante ataques de depressão.” A ave concordou, sacudindo tristemente o bico congestionado. O coronel tirou um lenço rosa do bolso, entregando-o a ela, e a Águia Americana assoou o bico, desanimada. “Fume um destes”, sugeriu o coronel, “tenho uma autorização oficial do Governo Americano para consumi-los. Você deveria se utilizar de sua influência para conseguir uma. É uma beleza durante essas crises.” A ave acendeu o cigarro de erva com seu zippo niquelado, tragando baforadas que prendia firmemente em seus pulmões, para intensificar o efeito calmante da cannabis. “Sente-se melhor, não é mesmo?”, perguntou o militar após certo tempo. A Águia Americana, com os olhos avermelhados, sorriu como os pássaros costumam fazer quando emaconhados. Logo estava gargalhando das gracinhas que Olive, com seu típico bom humor homossexual, contava de suas viagens pelo mundo. “Vamos para o aeroporto?”, perguntou Olive em seguida. Então a Águia Americana, com as asas distendidas como sua distante parente romana, respondeu: “Não preciso de aparelhos voadores, meu bom amigo. Olhe bem para mim: sou uma águia, o pássaro mais orgulhoso do Universo!” O coronel sorriu e despediram-se, combinando um reencontro no Central Park.

Damnus Vobiscum
Enviado por Damnus Vobiscum em 22/05/2012
Reeditado em 23/05/2012
Código do texto: T3680962
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