OS EUS

Mas é claro! Só pode ser... Como eu não havia pensado nisso antes?? Eu não sou um, eu sou dois! Essa é a razão pra minha incoerência, minha contradição. Esse corpo, que é uma espécie de carcaça, a qual eu tenho maltratado um bocado ultimamente, é o meio técnico que eu utilizo pra me comunicar com a sociedade. É uma espécie de máscara, de elmo. Uma armadura, enfim. Se eu tentasse explicar isso, ninguém entenderia, por isso vou dialogar cá comigo mesmo. De certa forma, assim me satisfaço. Pois imagino: uma carcaça com certos dispositivos comuns; adaptados ao senso comum. Sabe, aquele lance de torcer por um time, só pra tirar uma com os conhecidos. Ouvir uma música qualquer no rádio, sem risco de desagradar quem esteja junto. Comprar uma roupa que me torne “bem apresentável”... A coisa da aparência mesmo. Assim se evita aquele negócio de estar sempre sendo observado, criticado pelo que veste. E mesmo se me acharem um zé-mané qualquer, estarão falando apenas da carcaça... O esquema é esse: dar um tapa no visu, falar um português entendível, saber das notícias pra ter o que falar no ponto de ônibus. No extremo, levo a carcaça pra trabalhar, pra levantar o dinheiro que sustenta a estrutura corporal, e por que não, social, durante o mês. É pra isso que serve esse eu material.

Mas esse monte de carne e osso não encontraria sentido se não tivesse a companhia intrínseca de um outro eu. Um eu que não é material, mas que também não sei explicar direito o que é! Uma espécie de ar comprimido que mantém o corpo vivo, em pé. Impressionante! Tomara que todos percebam a existência dessa dualidade do ser humano. E eu acho que mesmo inconscientemente a maioria das pessoas percebe; não vejo outra razão pra religião... Mas isso é outra história, deixa pra lá, né?

Essa dualidade de eus decorre em um outro aspecto. Entre eu (os dois) e boa parte das pessoas que conheço, existe apenas comunicação entre as carcaças. Estranho isso. São poucas as pessoas com que me comunico através daquele outro eu. E fácil perceber a diferença entre essas relações. Primeiro, porque essas poucas pessoas é quem são os amigos de verdade. Depois, essas pessoas, com as quais esse outro eu meio subjetivo, se entende, nem precisam estar vivas.

Pra eu me comunicar com os que não estão mais entre nós, basta eu ler algo que tenham escrito; ou músicas que tenham gravado; ou atuações que tenham filmado; ou imagens que tenham pintado; ou cenas que tenham fotografado, para que essa ação comunicativa flua. Quem nunca ficou impressionado ao constatar as coincidências entre as próprias idéias com as de seu escritor preferido? Em cada linha, sentir certa cumplicidade na visão de mundo... Quem nunca sentiu um arrepio ao ouvir a música perfeita? Chega-se até a considerar tal obra como a trilha sonora da própria vida... Quem nunca quis substituir a própria vida pela trama de um filme? Ser o herói, conquistar a mocinha, viver as aventuras e os cenários... Quem nunca perdeu pelo menos cinco minutos na frente de um Dali, um Da Vinci e se perguntou: como pode? Quem nunca imaginou conhecer ou pelo menos se impressionou com cenas fotografadas. Realidades, às vezes tão distantes... Isso é divagar pelo inconsciente, isso é ampliar a visão. Abrir a cabeça, uma brecha pro meu eu comprimido sair e dar um rolê pelo espírito humano e voltar pra dentro da carcaça, renovado e mais consistente...

Entretanto, o que mais me agrada é quando esse meu eu, meio fantasmagórico, sente isso através de uma relação carnal mesmo. Quando eu olho no olho, daquele corpo delicado, perfumado, quente, macio. É a conversa dos meus dois eus com seus opostos correspondentes complementares. O fluxo perfeito, sem palavras. O transe. A transa.

Identifico mais algumas formas claras de manifestação do eu não-material. Uma é a gargalhada, quando rimos tanto, que dói até a barriga de tanto rir. Chega a ser incontrolável. Quantas vezes, em meio a uma aula, na escola, alguém fez ou falou algo que de tão engraçado, não foi possível parar de rir, mesmo sob fuzilamento dos olhares de colegas e professores?

Uma outra, menos prazerosa, é quando o corpo treme de medo. Só de imaginar que essa espécie de chama, que mantém a carcaça quente, está sob risco de ser apagada, a carne tremula. A força das pernas diminui. O equilíbrio foge e a visão vai escurecendo. Não se sabe se é melhor correr, enfrentar... cada um cada um, nunca se sabe.

E a angústia? Nossa! Essa é de matar... parece que tem alguma coisa esmagando o estômago. O pior é quando se conhece a causa, mas mesmo assim não se consegue livrar-se dela. A ansiedade é péssima.

Porém, a manifestação mais sublime é a lágrima. É quando esse eu interior não se agüenta e brota através dos olhos. Trata-se de uma manifestação de sensações muito intensas, relacionados às mais profundas raízes, ao âmago. Ninguém pode fugir, pois ninguém pode explicar. Normalmente são provocadas por sensações de prazer, tristeza ou ódio, estando relacionado com se alcançar certo estado de harmonia. No primeiro caso, as lágrimas correm pela plenitude. Quando contemplo a harmonia estética de uma obra de arte ou uma parceria perfeita, uma amante ou os amigos. Já no segundo, quando obrigado a abandonar esse estado harmônico, principalmente em se tratando de uma relação afetiva, numa despedida definitiva. E por último, quando algo ou alguém representa o avesso total da harmonia, por sua vez, o desequilíbrio, representando novos paradigmas, diferentes perspectivas, que se reluta à aceitar. Quando a carcaça não compreende e quer obrigar que uma nova harmonia seja criada, estabelecida a força, mesmo sem que exista a menor possibilidade para tanto. Algo como uma fortíssima frustração somada à uma dose de ignorância. Vertem-se as lágrimas...

São todas, sensações intensas, que mesmo que eu escreva mil páginas a respeito de cada uma, nunca estarão totalmente explicadas! Nesse momento, o processador embutido em minha carcaça, o cérebro, não é capaz de codificar e manter uma comunicação plena e racional com meu eu profundo, apesar da carcaça sentir as manifestações de sua existência...

Afff... Ainda bem que eu não preciso ficar explicando isso pra ninguém. Esse é o papo que eu levo comigo mesmo. As conversas entre eu e eu. Fantástico! Mas chega de viajar, agora preciso ir, tenho mais o que fazer...

Leonardo André
Enviado por Leonardo André em 26/08/2005
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