DO OUTRO LADO DO ESPELHO

O que é o mundo? pergunta a Rainha de Copas à Alice.

- Ora, o mundo é um conjunto de referências que se abre para nós através dos textos.

E o sonho, Alice?

- O sonho, bem... o sonho é algo que não parece ser verdade, mas as vezes é verdade!

Houve um homem que sonhava, chamado André Breton, que disse uma vez: “Tudo depende da imaginação, e da imaginação tudo se desprende”. Este é o encontro que as duas artistas, Giovana Casagrande e Leila Alberti em “Coisas de Alice”, que não sendo surrealistas oferecem em um encontro de horizontes, o de Lewis Carroll e o dos participantes, um fio de Ariadne que une aquele que vê e interpreta o texto oculto, e o outro lado do espelho, que por ele será interpretado. Esse mecanismo de leitura, de apropriação de um texto irá modificar os participantes, tal como se deseja na arte contemporânea, forçando-os a se libertarem de idéias consolidadas e de receberem novas maneiras de lidar com o texto, a obra literária transformada em arte visual. Volto a assinalar, elas não são surrealistas como muitos podem pensar, no surrealismo o objeto pode significar aquilo que não é na sua aparência, empresta sentidos diversos a uma palavra, é fruto do acaso.

E, como interpretarmos esses enigmas propostos? De três modos que não podem ser excluídos, interagem queiramos ou não: pelos sonhos que são “fantasmas” do inconsciente, pelas obras da Cultura que são imaginação poética, e pelas representações do sagrado que são elementos de universalidade arquetípica, atos de resistência da memória para o domínio do transcendental. A interpretação pela imaginação poética, tão cara a nós, é criada pela analogia entre o que sabemos e o que nos é oferecido, cada proposta é uma janela aberta para o aprendizado, um espelho que não apenas reflete, mas, a cada momento renova a imagem refletida, um espaço de transformação nas metamorfoses das Aventuras de Alice no País das maravilhas.

Aquele mundo que ela enfrenta é o mundo de todos nós seres pensantes, não estamos sós no Cosmos, este se abre através de símbolos, e graças a esses temos a compreensão do universal. A viagem de Alice não é totalmente arbitrária como no surrealismo e as estranhezas encontradas não são metáforas como nos sonhos e sim metonímias, existindo uma relação de dependência, já que constroem pontes. Um bom exemplo é o do jogo de xadrez em “Através do espelho” na obra de Carroll, em que Alice é o peão branco no jogo de xadrez. Retorna assim a idéia do jogo, que na obra anterior era de cartas, lembremos quando a rainha vê três jardineiros em volta de uma roseira; aqui o autor fez um jogo de palavras, podem ser cartas do naipe de espadas (spades que também significa pás) por isso são jardineiros. Agora Alice se defronta num jardim de flores vivas com um grande tabuleiro de xadrez e a rainha finca muitas estacas (clubs) significando as cartas do naipe de paus e na origem do jogo o povo, o homem comum. Ora, na proposta aqui apresentada o tabuleiro de xadrez mostra hastes longas, mal equilibradas, coroadas de fuxicos em crochê no fundo de redes trançadas; para as autoras um roseiral aludindo à transição menina-mulher.

À primeira vista vê-se que se propõe um confronto entre objetos facilmente reconhecíveis como os bules, que sofreram um processo de bricolagem, de uniões entre objetos utilitários e bibelôs, chegando a cortejar o kitsch; ora, a bricolagem como foi bem caracterizada por Lévi-Strauss é uma ação espontânea que não obedece a qualquer rigor, ocorre como fruto da imaginação metafórica e metonímica, tendo como resultado criar nova identidade. Essa bricolagem aparece aqui como um embate de diferenças entre o branco absolutamente puro da porcelana e o colorido exasperado dos fios de lã, se quisermos assim ver, entre o virginal feminino na visão das artistas e o colorido masculino dos fios de crochê que o envolvem, vestem-no, contraste entre o frio e o quente, embora se lembrarmos a porcelana que se apresenta fria é a metamorfose da argila queimada em altas temperaturas, vitrificada, diria até embalsamada, para não perder sua incolumidade. De outro lado o crochê colorido que a aprisiona, ou quem sabe liberta a energia acumulada na queima inicial da argila, agora transmutada em cor.

Ambos os objetos, porcelana e crochê, são indicadores da essência feminina, participam de práticas tradicionais do lar, uma de caráter mais tradicional e compartilhada, a do chá, outra íntima no isolamento do bordado e crochê, como fuga para o sonho. Ocorre aí uma identificação dos objetos com funções transfiguradoras, identificação metafórica, como quando a lagarta se transforma nos casulos que irão criar o próprio chapéu, ou o Rei de Espadas que assinala sua masculinidade no bico invertido, identificações metonímicas por tê-los desviados de seus contextos usuais, apontando deslocamentos de suas funções, multiplicando-se em um espelho estilhaçado que reflete inúmeras formas.

Acima de tudo são transfigurações metafóricas por manterem suas identidades, identificamos suas origens, entretanto se prestam a jogos de pensamentos inconscientes, aquilo que Freud chamou de trocadilhos visuais.

É impossível aos que abordam Lewis Carroll pelo viés psicanalítico não pensar no Unheimliche de Freud, a inquietante estranheza, desenvolvida sobre o conceito de identidade psicanalítica. Em poucas palavras isso seria tudo aquilo que deve permanecer escondido e que se manifesta não como puro delírio, mas como o real possível, uma incerteza entre o que é a vida real e o mundo fantástico. Nesse caso os limites entre imaginação e realidade se dissolvem, onde o universal significa o particular e vice-versa fazendo um todo, símbolo que toma a importância e a força daquilo que é simbolizado. Essa simbolização advém do processo entre ver e olhar, uma vez que a imagem só adquire sentido no olhar que a organiza, interpreta numa sucessão que vai do índice (apenas um fragmento do total), ao ícone (que parece sem o ser), chegando ao símbolo (com quem mantém relação de analogia).

Lacan dirá que o real se diferencia do imaginário pelo simbólico entre a relação do que permanece separado pela mediação da linguagem, permitindo a “tentação contínua de considerar-me um outro”, experiência no limiar entre percepção e significação.

Fernando Pessoa numa frase sintetiza a experiência dessa relação: “só me encontro quando de mim fujo”. E de quem você foge e, diria Lewis Carroll, quem você pensa que sonhou?

Walter de Queiroz Guerreiro

Crítico de Arte (ABCA/AICA).

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 21/06/2014
Código do texto: T4852946
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