SEMENTE DA VIDA

A experiência estética do painel pintado por Antonio Mir para a sede da CEVAL, após seu impacto inicial, nos conduz a uma reflexão. É sua mais recente obra no Brasil e a primeira instalada em espaço de alcance para o grande publico, dentro de sua nova fase. No passado, ele já produzira um grande painel em chapa metálica, instalado no Banco do Brasil em Joinville. Este, porém, é pura matéria pictórica.

Desde 1992 Antonio Mir mudou sua técnica, voltando-se para as tradicionais telas e tinta a óleo. Usando agora tinta industrial com características próprias de viscosidade e brilho, conseguiu manter seu caráter tátil, próprio de um artista que sente a pintura em um nível tridimensional, além da ilusão ótica. O resultado é extremamente matérico, com texturas e linhas incisas, tratamentos diferenciados de superfície que, pelo reflexo da luz, adicionam profundidade e vibração ao conteúdo.

Este painel, pelas grandes dimensões e pelas características próprias de relevo, torna-se praticamente uma pintura mural, uma das mais antigas expressões da arte, que sempre teve o caráter de registro de uma época e de comunicação com a humanidade. A obra é de extrema síntese. Esse intimismo nos interiores, a composição com poucos elementos, é rara nos pintores figurativos, que costumam optar pela redução extrema caindo no minimalismo.

Teóricamente é uma obra de cunho Estruturalista, uma vez que sua linguagem discursiva tem caráter semiótico, um significado como expressão eminentemente simbólica. A sintaxe primária no diagrama do objeto "semente" desempenha o papel da forma, com a redução da dimensão espacial na relação figura-fundo pela eliminação dessa tensão, como se tudo ocorrese num plano único.

Neste painel, Mir ousou como é de seu feitio, pois a primeira impressão é de choque, com o motivo centralizado ocupando um terço do espaço pictórico e as laterais vazias. Essa imensidão de espaço normalmente leva o expectador a se perguntar por que não preencher a tela, ocupando o espaço disponível e qual a razão da centralidade do tema. Dentro do retângulo da tela, o artista ocupou a parte superior com uma cor pura, o amarelo-ouro, e destinou uma faixa estreita na parte inferior a um verde-granulado, correspondendo à linha do horizonte. No centro, um quadrado dividido em quatro e, atrás dele, uma forma bi-ogival, de cor verde. Inserir um quadrado dentro de um retângulo traz força e segurança à composição, porém também imobilidade e racionalidade, isentas de emoção. Foram utilizadas cores puras em sua maioria e nisso também houve ousadia, já que embora se fale das cores vibrantes brasileiras, o amarelo-ouro é mais utilizado na Espanha que Brasil.

A estrutura central é uma janela, motivo recorrente na obra de Mir (basta ver as várias “ Ventanas”, produzidas nos últimos anos). O que existirá por trás da obsessão por este símbolo? Psicologicamente, existem duas possibilidades: a primeira, do indivíduo que se coloca como espectador afastado da realidade do mundo, enxergando-o através de uma abertura, o que não é o caso de Mir, pela sua atitude extrovertida e participante. A segunda está ligada ao próprio signo: a janela enquanto abertura para o ar e a luz, simboliza a receptividade terrestre àquilo que é enviado do céu.

Esta janela tem uma estrutura quadripartida que, de acordo com Jung, indica processo de transformação de alto fundamento simbólico, o estágio inicial se caracterizando por quatro direções opostas entre si. Aí vem a “coincidência” entre a janela como mira e a semente bi-ogival, que Mir descreveu como um projétil, a equipe da própria CEVAL levando alimento para o mundo. A forma da cruz tem função de síntese, nela se confundem tempo e espaço, terra e céu, já que ela é a via de comunicação entre dois eixos, levando a pensar na passagem do tempo e das estações, nos ciclos da natureza. Mir usou o espaço determinado pelos braços da cruz com as cores verde-claro (primavera), vermelho saturado (verão), castanho (outono) e azul escuro (inverno), sendo cada área pintada com tratamento diverso em textura. A cor de fundo é o amarelo-ouro, que é a cor da pele nova da terra e também da eternidade. Dentro da área verde correspondendo à primavera Mir colocou uma forma vazada representando a semente.

Essa forma de semente sui generis (na verdade, uma semente de soja), lembra a forma de um coração e da letra A. O coração é o símbolo do centro vital, e a letra A, presente em outra obra de Mir é a primeira letra do alfabeto, o símbolo divino do início das coisas. Esta semente que é recortada sobre o fundo, como que vazado, deixa passar o amarelo-ouro do céu. Finalmente, embora a forma bi-ogival na obra recorde um projétil boat-tail de bala de fuzil, como foi explicado pelo próprio artista, também recorda os diagramas das cartas de marear ou navegação. Mir, um amante do mar, sem dúvida viu inúmeras vezes esses diagramas básicos para o ensino da navegação, a posição do barco em relação às águas, e essa imagem ficou no inconsciente.

Poeticamente, me é cara a idéia de barco levando a semente, a distribuição da abundância gerada pela terra: o barco em lugar da bala, a vida em lugar da morte.

Walter de Queiroz Guerreiro

Historiador e Crítico de Arte (ABCA/AICA).

Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 24/06/2014
Reeditado em 25/08/2018
Código do texto: T4856315
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