A TRAPAÇA NO REINO ANIMAL SEGUNDO UM DOCUMENTÁRIO IDEOLÓGICO DA NATIONAL GEOGRAFIC (*)

 
Abre o documentário o caso de uma ave, quiçá uma espécie de galo selvagem, com uma crista eriçada à volta de todo o pescoço, à maneira de uma juba de leão. Os machos fortes apresentam vistosas poupas, de cores escuras, e competem entre si pela preferência das fêmeas, exibindo tais equipamentos em danças de acasalamento. Entrementes, há machos fracos, que ostentam cristas de cor branca, muito acentuadamente diferentes dos penachos dos fortes, como fossem de uma outra espécie até, mas não são.1 E, para usar da mesma expressão empregada no documentário, de amplo interesse filosófico e nítido teor ideológico, estes últimos são: trapaceiros. Incapazes de competir no jogo franco da seleção sexual com os machos fortes, os fracos trapaceiros lançam mão de um expediente oportunista: enquanto os fortes executam os movimentos a que os instintos os chamam, profundamente enlevados, inebriadas pela química avassaladora dos hormônios, bem como se encontram as fêmeas que os observam e avaliam, o fraco oportunista, subitamente, se arroja sobre uma destas e força a cópula, garantindo, assim, a sobrevivência de seus caracteres. Se um dos machos fortes o percebe a tempo, pois a cópula das aves é muito rápida, surra brutalmente o macho fraco trapaceiro. Mas, não obstante, a genética do fraco impõe a sua permanência contra a lógica da evolução e à custa dos momentos de vacilo dos fortes.

 
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Leões
 
O exemplo seguinte, no curso do documentário, é o de uma espécie de sapos que, tal como a ave descrita, comporta, de um lado, os fortes, os mais selecionáveis sexualmente, mais aptos à sobrevivência, maiores, mais dotados de toda sorte de atributos cobiçados pelas fêmeas, que os apreciam, por assim dizer, com os olhos da evolução; e, de outro lado, os fracos de um grupo especial em a natureza: o dos trapaceiros, ladrões, vigaristas, farsantes, só para usar, novamente, de alguns dos termos que são repetidos, inúmeras vezes, ao longo de todo o documentário em questão. O sapo fraco oportunista, então, bem como o galo inferior do exemplo acima, acompanha de perto a dança reprodutiva do forte que, se fora humano, diríamos: ignora o fraco por vaidade: por se entender admirado também por este na sua exibição do amplo papo e das emissões maduras que sabe projetar de um coaxar hipnótico para as fêmeas. E, no momento da distração, da boa-fé, sem a qual não existiria a perfídia, e o logro e o lucro teriam pouco ensejo: dá-se o assalto do fraco oportunista, que rapta a fêmea e garante, mais uma vez, a sobrevivência involutiva de seus caracteres genéticos inferiores.

 
Os próximos casos de trapaceiros bem-sucedidos, outro termo que ajuda a conformar a estrutura ideológica liberal desse impagável trabalho de cinematografia, são exemplos clássicos de aves, como cucos, que depositam seus ovos nos ninhos de outras espécies de aves para tê-los chocados por estas, bem como aos seus filhotes alimentados e protegidos, enquanto os verdadeiros pais economizam suas energias, na mais primeva via de exploração da força de trabalho alheia. O filhote do cuco, ao deixar a casca do ovo antes dos filhotes do pássaro logrado por essa estratégia de sobrevivência, remexe-se no ninho, instintivamente, lançando ao solo os ovos de seus infortunados irmãos postiços. Enorme em relação aos pais adotivos, muitos vezes mais pesado que estes, o filhote do cuco ainda será alimentado por regurgitação durante um longo período, até estar apto ao vôo. Em seguida, vêm os insetos que dão a outros as suas próprias larvas para sustentar, como uma borboleta, muito — especializada, cujo laroz cheira qual o de determinada formiga, e esta o recolhe e leva para o interior do formigueiro, onde será alimentado e protegido até transformar-se em crisálida, e em borboleta. Há, ainda, o exemplo de uma espécie de cobra dissimulada que, para se fazer de morta diante de outra cobra predadora, se contorce de modo espantoso, se revira, de barriga para cima, e até emite um odor de carne podre tão vivaz quanto a sua capacidade de mentir: de fabricar uma representação do real desconexa do real mesmo, ardilosamente, para garantir interesses seus. Essas estratégias são chamadas, em dado momento, de inteligentes, no original em inglês, todavia, possivelmente se as diga smarts e não intelligents, pois o atributo que se enaltece é, deveras, a esperteza, outro termo recorrente no documentário, a malícia, diria Platão, ao descrever os sofistas, e não, propriamente, a inteligência, mensurável como Q.I.. Smart se traduz também como esperto; e o esperto, o espertalhão, o vivaldino é, em suma, o — escroque, exatamente como sugere o documentário, tanto na nossa cultura como na cultura liberal: é o fraco oportunista, em sua condição emocional especial, com a qual procura superar a sua fraqueza. Não confundamos a esperteza, entretanto, com a dita inteligência emocional dos indivíduos humanos íntegros: nestes, é a compaixão que se apresenta como forma especial de inteligência, possibilitando a convivência social harmônica, enquanto a smartness, a inteligência liberal, por outro lado, é instrumento do egoísmo patológico e, em si mesma, uma outra morbidade.

 
O filme termina, mutatis mutandis, com a assertiva seguinte: temos muito que aprender com esses seres, os espertos, os inteligentes no sentido liberal: os trapaceiros, os farsantes, os ladrões, os violentadores sexuais, afinal, os fracos oportunistas, pois suas estratégias de sobrevivências, — altamente especializadas, os fazem excepcionalmente bem-sucedidos no reino animal...



 

 
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Ressalte-se que o galo de crista branca é inexoravelmente mais fraco que o de crista escura; o trapaceiro não é “forte ao seu modo”, não descobriu um método universal para superar suas limitações, transformando-as em força maior que a força, embora seja isso o que a ideologia liberal procura vender. A fêmea possui aparato fisiológico eficaz na detecção dos traços do mais bem equipado para sobreviver, para obter alimento para os filhotes; do mais bem equipado para enfrentar predadores, doenças; do mais longevo, mais apto a liderar e conviver de modo salutar. E ela não seleciona o fraco, que, ratificando sua fraqueza, ao invés de elidi-la, não respeita a seleção sexual, i.e., a inteligência da evolução sobre o que deve ser, mas, ao contrário, passa por cima desse princípio natural, valendo-se de um subterfúgio, de um atalho inusitado, de um — artifício. Assim, o artifício em questão é elemento que deriva da fraqueza mesclada de oportunismo contra a genética e a força, contra a ordem evolutiva, de modo a, inclusive, preservar caracteres contraproducentes do ponto-de-vista da evolução.

 
Ora, um dos distintivos da espécie humana é, sem dúvida, a capacidade de criar artifícios para a sobrevivência e para a prevalência sobre animais mais fortes, sobre o ambiente físico e as dificuldades em geral. Por meio de ferramentas, técnicas e tecnologias, i.e., de artifícios, dominamos a natureza. Entanto esse mecanismo traz um problema inerente, uma espiral autofágica patente: se, entre os indivíduos humanos, os fracos oportunistas continuarem sempre, indefinidamente, encontrando meios de suplantar os fortes, os saudáveis, de modo a impor sua genética e cultura, não estaremos regredindo em direção, novamente, às formas menos elegantes de vida? Precisamos utilizar as tecnologias, de educação, sobretudo, para garantir o melhor aproveitamento possível das diferenças, rompendo a dinâmica cruel, selvagem da exclusão dos fracos; pois, no ambiente social humano, toda característica que amplie a multiplicidade, a — biodiversidade humana, por assim dizer, pode e deve ser aproveitado como salutar à evolução da cultura. As potencialidades individuais devem ser detectadas e direcionadas, desde a mais tenra idade, de sorte que os mais dotados para atividades específicas sejam encaminhados pelo Estado, no próprio processo de educação, para desempenhá-las de preferência aos menos dotados naquele campo. Porém, todo indivíduo humano, por ser único e dotado de especialidades que o diferenciam de qualquer outro indivíduo, deve ser conduzido a somar esse capital precioso, que é a diversidade em si, para o seu sucesso pessoal e, na mesma medida, para o bem de todos. Em suma: é de mister que as técnicas e tecnologias sejam empregadas com o escopo de catalisar a evolução individual e coletiva, e nunca a involução de quem quer que seja ou da sociedade.



Os samurais, soldados da tradição cavalheiresca japonesa, são um bom exemplo de guerreiros fortes, o que inclui, inequivocamente, serem honrados, leais. Sua destreza na arte do combate com armas, como a espada e o arco, é lendária. Para batê-los em missões especiais, foi criada, então, a figura e a arte do shinobi: o espião trapaceiro, desleal. Este não podia enfrentar um samurai no combate franco, mas valia-se da furtividade, da surpresa e de armas específicas para suplantar os oponentes mais fortes. O shinobi, por exemplo, carregava consigo, num continente, uma limalha de aço embebida em veneno que sabia atirar aos olhos de um samurai, antes de atacá-lo com sua espada retilínea e mais curta, mais prática de portar e manusear que a espada cavalheiresca, a qual desembainhava das costas.

 
Ora, a espada na mão do samurai é uma ferramenta, um artifício da força; nas mãos do shinobi, um artifício da trapaça. Destarte, as ferramentas, as técnicas e as tecnologias podem ser catalisadoras tanto da evolução como da involução, como se propôs acima.

 
É patente que não se podia ter um exército todo composto de espiões, pois sua arte não dava conta do mesmo tipo de misteres a que a arte cavalheiresca dos samurais se destinava; não se podia tê-los a defender a nação, era preciso que houvesse guerreiros fortes e valorosos dispostos a isso. Não se podia ter um shinobi, um homem desleal, falso, inclemente, um assassino frio, mercenário e sem princípios no comando de um exército ou de um Estado, por exemplo; assim, o status social do trapaceiro sempre foi muito baixo e limitado. O fundamento da trapaça sempre esteve presente, como opção, durante a vigência do sistema da força, no Ocidente como no Oriente; todavia, seu papel nunca deixou de ser o de princípio subalterno da força mesma. Apenas com a queda do Antigo Regime, após as revoluções burguesas, a dinâmica da trapaça passa a governar o Ocidente, tendo a força, inversamente, como sua subalterna; mas voltemos a isso adiante, depois de tecer algumas outras considerações.

 
A natureza não abriga apenas a tendência evolutiva, como se vê, de preservação e apuro dos caracteres dos fortes, mas também a tendência — involutiva, de preservação dos caracteres de certo grupo de fracos: os medíocres oportunistas.

 
Nietzsche avaliou como fortes os cavalheiros, os nobres, que passavam, de geração em geração, suas características genéticas e tradições atávicas, familiares. Era um mundo que prestigiava a elegância, o brio, a alteza de valores, de condutas e sentimentos, identificados à nobreza. Já ao cristianismo, o pensador alemão avalia como involutivo, trazendo má consciência aos fortes em relação ao exercício da força sobre os fracos, mas esta segunda parte de sua crítica precisa ser também criticada e testada a fundo.

 
O cristianismo dos nobres, que é o cristianismo romano, não é a mesma religião do pai de Nietzsche, tradição de sua família, a que este se opõe com vigor. A Igreja sediada em Roma ensina o cristianismo da misericórdia, este valor que só pode ser afirmado pelos fortes: os fracos, os que estão vencidos, não têm como exercer clemência, e esta é a primeira faceta da misericórdia. A segunda faceta da misericórdia é a compaixão, mais desenvolvida nos seres que possuem um eu coletivo, mas quiçá presente, em alguma medida, em todos os viventes. A clemência no reino animal se verifica quando os vencedores, uma vez obtida sua vitória, são chamados pela evolução a não desperdiçarem energias próprias nem o recurso da vida em si, massacrando desnecessariamente os que se encontram em situação de inferioridade. Essa sorte de atos é baixa à luz dos instintos e da pragmática natural que os informa. Sim: a sobrevivência envolve, por força, uma pragmática, pois que é essencialmente agônica; e essa pragmática é completamente — ascética, ou evolutiva: completamente dirigida à elegância e à fuga da brutalidade inútil, do desperdício e de tudo aquilo que os-homens assimilam, moralmente, como vaidades. Só a apreensão dessa lógica natural nos faz capazes, inclusive, de perceber o que seja a elegância mesma, a nobreza, a alteza de propósitos e perspectivas. Neste sentido, o cristianismo dos fortes não é involutivo, muito ao contrário: baseia-se, in totum, na apreensão da linguagem natural em questão, abstraindo, como princípios sagrados, os cânones da evolução.

 
Já o cristianismo mercantilista, concebido em apoio à empresa ideológica burguesa, de pôr o medíocre oportunista adiante do forte, este sistema, sim: deixa de recriminar a usura, como fazia a dogmática cristã originária, deixa de recriminar a mais-valia, ou seja: o roubo apoiado no logro, na mentira, na perfídia; e, em vertentes radicais — ao menos, nestas — chega a assumir o acúmulo ilimitado de propriedade, a riqueza — também malvista pelo Jesus bíblico —, e o sucesso no jogo da exploração como sinais da graça divina. Tal cristianismo é, pois, inequivocamente, uma doutrina involutiva e muitíssimo diferente do cristianismo originário ou do cristianismo medievo, dos nobres.

 



 
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Cães selvagens na savana africana

 
Existem, então, três tendências fundamentais em concurso na ordenação da História, como essa discussão nos permite flagrar: a força, a misericórdia e a trapaça. A força e a misericórdia cooperam com a evolução histórica; a trapaça é a forma pura da involução histórica.

 
A misericórdia, no âmbito humano, é visada pela razão e pelos instintos; na esfera instintivo-emocional, i.e., quando em bruto, observe-se: não se confunde à compaixão. Esta última é uma ferramenta de construção do Eu-coletivo, uma adaptação da empatia, que é, de início, parte do aparato da cognição e voltada, precipuamente, ao aprendizado da linguagem compartida. As formigas supracitadas, que salvam a larva da borboleta, depositada nas proximidades do formigueiro, porque o cheiro desta é especializado e imita o cheiro do laroz das próprias formigas; tais insetos experimentam compaixão por aquela criatura aparentemente perdida de sua sociedade, desprotegida, condenada. E é com isso que a borboleta trapaceira conta: com a misericórdia da formiga como um ponto-fraco, um afrouxamento, uma distensão da força. Deveras, as formigas tendem a ser animais dotados de imensa capacidade de compaixão em relação, especificamente, aos membros de sua comunidade, seus semelhantes, e disso decorre serem são capazes de autêntico altruísmo, i.e., do instinto de sobrevivência poderosamente dirigido à dimensão coletiva do seu eu, hajam vistas as pontes vivas que constroem sobre águas correntes para dar passagem à falange, e que vão desmoronando e sendo reconstruídas por esses seres, dotados, ainda, de intenso senso de dever. Tais ferramentas naturais, que poderíamos julgar humanas — a compaixão, o altruísmo, o senso de dever — estão relacionadas à subsistência de um eu coletivo que, cremos, já supôs a ciência indutivo-experimental antes de nós, esses notáveis animais possuem: o formigueiro mesmo. As abelhas, supõe-se também, são outro grupo de insetos que constituem um eu coletivo, e isso já foi um tanto discutido e associado aos regimes utópicos, inclusive. O Homem, essa espécie individual conceitual que se transforma, num passo adiante, em sujeito individual, é uma ficção, um artifício, e, pior, do ponto-de-vista moral, uma mentira; a menos que se definisse o Homem como um ser da ordem da colméia, e não da ordem da abelha solitária, a qual é impensável. Seqüestrado da sociedade desde o nascimento, um “homem” não seria racional, pois não poderia propriamente raciocinar sem conhecer a linguagem compartida; não seria sequer bípede, vindo a caminhar, quiçá, como ilustram alguns casos concretos de crianças perdidas nos primeiros anos de vida e sobreviventes entre animais, sobre os pés e as mãos, quando muito. Pois, deveras, não podemos sequer imaginar o que seria um “homem” sem ter tido qualquer contato com humanos depois do parto e sem ter tido, outrossim, como espelhar-se em outros seres vivos, que, por exemplo, locomovam-se de quatro. Vale conjecturar que se fosse mantido vivo através de... tubos, por extraterrestres, num experimento monstruoso, conhecendo apenas seres rastejantes, como ofídios, um humano potencial talvez — para não dizer por certo — rastejaria como as serpentes ao seu derredor... E, se os EETT mantivessem um outro humano potencial num viveiro onde jamais conhecesse qualquer outro ser vivo além de vegetais, quiçá a triste cobaia sequer se moveria, preferindo se fixar ao solo, como a relva, para continuar recebendo seu alimento dos tais tubos, sem gasto inútil de energia. Eis a potência tremenda da empatia humana: essa capacidade de espelhar em si outros viventes, sobretudo outros indivíduos humanos, e o quanto ela nos define e distingue. E é desse princípio, presente nas formigas sob a forma de compaixão, i.e., como ferramenta de construção de um eu coletivo que, repetindo: a borboleta trapaceira e especialista se aproveita, com grande êxito.

 
Entanto a misericórdia, retornando um passo atrás, tem outra faceta já aludida. Apóia-se na pergunta que se faz o senso de praticidade inerente à evolução: para que obliterar ou fustigar os vencidos, desperdiçando os recursos (sagrados) da vida e as ferramentas naturais da sobrevivência? Essa pergunta trava a espada do forte, em dado momento, chama-o à razão, com base na lógica da evolução, e rende ensejo, aí sim, no ápice do momento reflexivo, à possibilidade da compaixão em relação aos vencidos: de sentir o que sentem, projetando-se à sua posição histórica, espaço-temporal, e à dos seus, para repugnar-se da idéia de feri-los, quando indefesos, quando vencidos, quando não oferecendo risco imediato. Podemos falar em misericórdia de primeiro grau, como sinônimo de clemência, e em misericórdia de segundo grau, quando à clemência se some a compaixão. A compaixão segue a misericórdia nos-homens; mas, ainda que uma espécie animal não seja tendente à compaixão em segundo grau por não conhecer a necessidade de constituir um eu coletivo, experimenta, sem dúvida, a misericórdia de primeiro grau: a misericórdia enquanto clemência das formas derivadas, tal como ela própria, do processo evolutivo, guardando uma noção primeva, acrológica de que a base informacional e físico-química da vida, para usar de uma expressão de Leonardo Boff, não merece ser desperdiçada. Não há espécie animal conhecida que experimente o impulso de destruir tudo quanto viva à sua volta apenas por ser forte o bastante para tanto; e se a força, enquanto princípio, inclinasse a essa sanha, ao invés de acompanhar-se da contenção instintiva de si mesma que é a misericórdia de primeiro grau, a vida na Terra jamais teria chegado a se tornar possível.

 
O indivíduo incapaz de misericórdia em qualquer nível, não é um forte, mas um deficiente genético, que ameaça o equilíbrio natural da vida.

 
Se os mais fortes esmagassem os mais fracos por princípio, sem misericórdia, até o último, apenas para afirmar a sua superioridade, já se acabou de dizer: isso seria um círculo vicioso e a vida, claramente, não seria possível. Se sempre matassem e acumulassem mais do que podem comer, idem. Destarte, a natureza precisa comportar o fundamento em exame, de respeito e comedimento em relação à biodiversidade mesma. O princípio da trapaça, entretanto, afronta a esse arranjo, valendo-se, como brecha para o oportunismo, da misericórdia, por exemplo, do galo forte, de crista escura, para com o galo fraco, de penacho branco, e este, incapaz de misericórdia em relação à fêmea, faz o que em a natureza poderia ser intuído por alguns como impossível: violenta o seu poder de escolha e o fundamento da seleção sexual.



 

 
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Na História da Cultura Ocidental, o Regime da Força, i.e., o regime que tem este princípio como base das relações entre nações e, como reflexo, das relações entre classes e mesmo, freqüentemente, entre indivíduos, corresponde ao período que vai do surgimento da escrita até a assimilação pelos romanos do cristianismo, no auge do império dos mais fortes. A Idade Média e a sociedade do Corpus Christianum representam a fase do Regime da Misericórdia, com este fundamento proposto como arqué do pacto social, embora tal modelo nunca tenha deixado de ser varado, de todos os lados, pelas tendências da força e da trapaça. Com as revoluções burgueses e a queda do Antigo Regime, em França e na Europa como um todo, bem como na América do Norte, tem início o regime que guarda a trapaça como essência da estrutura político-social e econômica, e que corresponde à Era da Involução, quando se constata o correlato — Império da Mediocridade.

 
A linguagem do regime da força esteve, desde sempre, muito ligada a determinados símbolos, entre os quais o leão tem um lugar destacado. Os brasões da nobreza, símbolos das famílias dos fortes, ostentavam leões estilizados com grande freqüência; o imaginário dos antigos estava povoado de feitos míticos envolvendo estes felinos e criaturas formidáveis parcialmente leoninas. Héracles, que encarna a força dos dórios, e, mais além, dos helenos e dos ocidentais como nenhum outro herói, venceu o Leão de Neméia e carregava o couro invulnerável do animal sobre seus ombros, a protegê-lo, e a atestar a sua força. Ricardo, rei cruzado da Inglaterra, feroz e questionável, mas também temido e respeitado, ficou conhecido pela alcunha Coração de leão (Lionheart), e por aí vai.

 
Deveras, o leão está em toda parte onde o sistema dos fortes impôs a sua marca, desde a Antigüidade até as revoluções burguesas, como animal-símbolo da força.

 
Já na era da involução, quando passa a imperar o princípio da trapaça sobre o da força, com a elisão radical do princípio da misericórdia, em parte, sem dúvida, porque a antítese histórica do feudalismo o induz, o leão foi um tanto preterido, esquecido e relegado como signo no seio da linguagem.

 
A atmosfera psíquica do sistema burguês pede a eleição de novos animais-símbolo capazes de sintetizar esse modo de poder que os burgueses pretendem, por interesse próprio, propagandear como uma força além da força: a trapaça, e, no âmbito desta: a capacidade de jogar, i.e., de atuar num campo artificialmente regrado, tão-só para extrapolar as regras pactuadas, blefar, lograr, enganar até mesmo ao mais dotado de inteligência formal, e arrancar, a unhas e dentes, a vantagem, o lucro, a mais-valia e a supremacia na ordem capitalista.

 
E um dos animais escolhidos é o rato; outro é o cão e, como suave variação deste, mais um canídeo: o chacal. Os mais destemidos combatentes norte-americanos do Vietnã, que adentravam por subterrâneos escuros à caça de inimigos, por vezes, como se conta, apenas com a pistola Colt .45, modelo 1911, legado de João Browning, e que era padrão das forças armadas estadunidenses, eram apelidados — tunnel rats (ratos de túnel): o que poderia soar desonroso entre os cavaleiros cristãos do passado já não tem mais o mesmo peso e conotação. Militares experientes, selvagens e impertérritos em geral, com o aval de Frederico Forsyth, são chamados: cães de guerra. Os matadores altamente treinados do serviço de inteligência estadunidense são ditos chacais (jackels). Hitler, que não era favorável ao sistema burguês, mas respirou os ares do mundo capitalista, conquanto enaltecendo a era dos fortes, dos cavaleiros teutônicos, dos heróis da mitologia germânica, não elege para seu símbolo o leão, o tigre, o urso, mas o — lobo: seu quartel-general era chamado, a Toca do Lobo (Wolfsschanze). Deveras, o 3º. Reich, através da guerra-relâmpago, a blitzkrieg, sepultou um resíduo de elegância e dignidade que o regime dos fortes somara à guerra, atacando nações brutalmente sem sequer uma prévia declaração de guerra.

 
O cão, entre os gregos, era um animal sacrifical usado para aplacar as divindades ctônicas; era carbonizado, deixado em encruzilhadas ou enterrado, uma das razões por que foi associado, desde há muito, ao próprio Hades e, um passo adiante, passou a encarnar o diabo, o — cão dos infernos. O cão gozava, assim, do mesmo tipo de reputação atribuída, hoje, ao bode preto, ou à cobra: a de criatura relacionada ao sombrio, ao sinistro, ao malfazejo. Como a cobra, e mesmo o rato, o cão, sobretudo naqueles dias, rodeava as cidades, e era um animal perigoso, imprevisível, sub-reptício, traiçoeiro. Provavelmente, atacava e desfigurava os cadáveres humanos deixados ao léu, como ocorre, até hoje, em áreas de guerra e em povoações situadas à beira de algumas áreas florestais mundo afora. Ademais, o cão é trapaceiro, dissimulado; oscila momentos de covardia extrema com demonstrações de intensa ferocidade; emite ganidos frágeis, quando se arroja sobre ele um agressor, afeta submissão e, diante de eventual distração deste, avança e dá a ver que está disposto a tudo para sobreviver. O rato, bem assim, é um vencedor na ótica burguesa: um animal que, segundo alguns, sobreviveria ao holocausto termonuclear, em companhia apenas das baratas; também tende a correr e fugir, diante de ameaças, mas, se encurralado, transvasa toda a sua agressividade e capacidade de violência. No nível psíquico, o cão, o rato e o chacal são o mesmo símbolo, deveras. E esse símbolo do tipo de potência que o sistema burguês cultiva, ou seja: da trapaça dentro do universo regrado da sociedade, está em toda parte, substituindo o leão e outras orgulhosas e colossais feras, hoje vistas como ultrapassadas, pesadas, dependentes de enorme quantidade de alimento e de condições especialíssimas de vida para a sua subsistência.

 
Plácido e preguiçoso ao centro de seu mundo e de sua sociedade, o leão reinava sem esforço, emitindo o seu estrondo, que reverbera por oito quilômetros dentro da savana, para fazer lembrar que nada é forte o bastante para enfrentá-lo. Ao menos no combate franco, frontalmente. Mas os burgueses não pretendem ser esses colossos, senão, algo que muito repetem em relação aos que admiram: sobreviventes.

 
Para negar a misericórdia, também é comum entre as pessoas que vivem sob o sistema burguês, assimilando o liberalismo no nível moral e psíquico, o dizerem: eu não sou santo, não sou perfeito — nem pretendo me aproximar da santidade, da perfeição ou piedade, está implícito —, eu faço o que tenho que fazer (I do what I have to do) para garantir "o meu", i.e., o meu quinhão, para sobreviver no campo do ágon involutivo.

 
A inteligência do rato, ou do cão deve dirigir seus cultores a utilizarem a potência da adulação canina, sem limites, dos fortes; ou, senão dos autênticos fortes, dos que estejam em posição atual de superioridade. Deve dirigi-los ao recuo com semostração de fraqueza; deve conduzi-los ao ataque sub-reptício, à Blitzkrieg, à ferocidade sem garbo, sem ostentação de virtudes morais e éticas, e medida de modo a obter apenas o êxito concreto: a vantagem, o ganho. Reflexão, inteligência propriamente dita, aprofundamento, refinamento, gostos clássicos, sofisticação: tudo isso deve ser posto de lado em prol do pragmatismo ao modo liberal, que pede informalidade, simplicidade, muito mais ação e reação que brilho.

 



 
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O que realmente distingue os-homens dos demais seres vivos não é, obviamente, como possam querer alguns, a trapaça no jogo, repetimos: a inteligência do rato; nem, tão-pouco, com toda certeza, o pendor para o jogo: o ambiente maliciosamente regrado, criado a fim de ensejar a trapaça contra o mais forte; não é nem mesmo a inteligência propriamente dita, mas, com efeito, a — linguagem compartida, que nos permite o acúmulo do conhecimento através das gerações e esta depende da peculiar forma de inteligência, digamos, pré-verbal chamada: empatia.
 
Mamíferos marinhos, como os golfinhos e as baleias, são muito inteligentes; bem assim, segundo alguns, as fascinantes sépias; mas nenhum desses seres, — ainda que até mesmo se comuniquem muito bem e, de modo altamente sofisticado, entre si, funda uma cultura, acumulando as experiências individuais e o saber adquirido.

A cultura é a linguagem compartida, ou os seus objetos, sempiternizados em universais e em imagens possíveis; já os-homens, ou o sujeito coletivo da História da Cultura, são essa mesma linguagem, na sua dimensão subjetivada.

 
Destarte, somos superiores aos mamíferos marinhos e às sépias, principalmente, porque possuímos o Eu-coletivo, construído a partir de processos empáticos, de sorte que, apartados da sociedade, passamos a nos parecer com seres mais singelos e não demonstramos inteligência que sobrepuje a daqueles notáveis animais. Temos isso, um eu coletivo, em comum com as abelhas e as formigas, embora não sejamos insetos, como não somos, tão-pouco, feras, leões, tigres, nem, com certeza, ratos e cães. O nosso pendor para espelhar outros seres, somatizando seus caracteres, nos tem levado, desde há muito, a erigir uma antropozoomorfia constante, presente nos mitos, nos símbolos e nos hábitos. Entanto devemos repensar o mundo, tendo como fundamento primeiro a nossa própria forma fundamental, e o — humanismo, como deve ser proposto hoje, não é mais nem menos que a assunção de tal ideal como diretriz doutrinária.






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Pensar um sistema político-social humanista, ou, dito de outro modo, antropomórfico, importa em valorizar sobre a força e sobre a misericórdia, enquanto piedade e caridade — esses refinamentos da clemência dos fortes sobre os fracos, presente em toda animália, já se disse — a outra faceta da mesma misericórdia, de grau mais alto, a qual é estruturalmente distintiva do humano: a compaixão.

 
Esta não tem outra serventia, senão a de ser a ferramenta hábil e natural na construção do Eu-coletivo, do indivíduo cultural: a nação. Racionalizada, a compaixão ganha a feição de — solidariedade. E, na construção de uma perspectiva solidária atualizada, verificamos, inelutavelmente, que a concorrência é tão desnecessária quanto maléfica e degenerativa para os-homens. Consiste na mais pura barbárie a noção de que devemos competir entre nós, nos esgrimindo e trapaceando mutuamente, de modo voluntário ou involuntário, ao movermos as alavancas impostas da involução, terrível e dantescamente confundidas ao trabalho nesta época, para sobrevivermos individualmente, ao invés de colaborarmos, de cooperarmos pelo bem-estar individual e geral. A competição tem gerado um desperdício de energia incomensurável, que pode estar consumindo o planeta e certamente impõe injustiças ao ser humano — os-homens — num nível tal como nunca se viu antes, durante os Regimes da Força e da Misericórdia.

 
Toda utopia chã e defensável como modelo a ser concretizado deve ser pensada em relação a um povo determinado, tendo em conta a natureza do pacto social sobre que se apóia; entanto, se há um cânon que deve estar presente em todo sistema utópico para merecer a nossa defesa, este será o de ser concebido como doutrina de solidariedade e cooperação com vistas à ascese da Inteligência através do humano e ao fim do sistema da involução.

 

 
Igor Buys
02-07 de junho de 2012

 
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*Série, ou programa Planeta Nat Geo, episódio Truques da natureza.
1 - Esses machos, de penacho branco, me ocorre, podem ser, quiçá, apenas muito mais jovens que os de crista escura, mas isto não é explicado.
2 -  O que criticamos, nós mesmos, frontalmente, no cristianismo romano, ou católico está embutido neste último adjetivo católico (de katholikós): universal, para todos; mas esta é uma outra discussão.
Igor Buys
Enviado por Igor Buys em 02/08/2014
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