As lagoinhas das Pedras

Na vida litorânea as comunidades se confundem com o movimento das areias e das águas, numa dança ensaiada nos limites tênues da urbanização. Como num ciclo, esses dois elementos naturais avançam e recuam, disputam espaços no território da urbe, reivindicam seus domínios originais. Num conflito acirrado, inventamos alternativas para desviar as águas revoltosas nas enchentes que transtornam e inundam as moradias e agimos para conter as areias que invadem os loteamentos e fazem uma barreira natural, um ambiente inóspito, entre o “mundo dos homens” e o “mundo da natureza”. Nas primeiras décadas do século XX, as areias invadiam a Rua de Baixo (atual Júlio de Castilhos) e era costume o plantio de eucaliptos e pinheiros. A partir de 1990, intensificavam-se a remoção das dunas de areias na porção sul da cidade de Torres, nos arredores do Parque da Guarita, num intenso trânsito de caminhões e retroescavadeiras. Nesta expansão urbana estava em questão uma complexa disputa fundiária, proprietários, posseiros e poderes públicos numa intrincada relação do direito à terra. Entre enormes “combros de areias”, patrolas, e cercas de arames se desenvolvia o bairro São Francisco e suas moradias de madeiras, carroças e as crianças brincando nas ruas de terra. Essa “meninada” que testemunhou a derrubada das casas em virtude do novo desenho das ruas combatiam o duro cotidiano e driblavam o sofrimento com o doce mundo infantil: gostavam de brincar com os “girinos” nas imensas poças d’água que se formavam com as chuvas, dar “piruetas” e “mortais” e descer de “tampa de patente” nas dunas. As crianças exploravam os campos de areia com naturalidade, indo coletar frutos silvestres, como o butiá e o maracujá-do-mato, fazendo piqueniques nos capões de matos ou simplesmente se refrescando nas águas das sangas, arroios e lagoinhas.

Uma das lagoinhas mais profundas e cristalinas era a das Pedras Vermelhas. Num cenário paradisíaco os “lençóis arroienses”, esbranquiçados areais entremeadas por verdejante vegetação acompanhado por um longínquo horizonte dos contrafortes da Serra ou a grandeza inigualável do Oceano Atlântico. Pegadas nas areias evidenciam uma rica biodiversidade; aves, roedores, cobras e anfíbios. Vestígios dos sítios arqueológicos revelam a ocupação humana em períodos pré-históricos, artefatos são descobertos pela ação eólica (vento) e pluvial (chuva). Com essas evidências surgem muitas histórias enterradas pelas areias do tempo, caminhos escondidos, casarios, aldeias e paradouros indígenas. No sentido à Pedra da Itapeva, atravessando áreas alagadiças chega-se na faixa de praia. Um local privilegiado na orla que ainda mantêm suas caraterísticas e aspectos originais e resguarda a riqueza natural que em outrora foi dizimada da paisagem das Torres.

Em tupi, o topônimo ITAPEVA, (significa ITA = Pedra e PEVA= Achatada) nos traduz o ambiente; o suave declive do morro que adentra ao mar, como uma rampa. No Morro das Furnas, abruptos “paredões” e na Itapeva, a pedra achatada, sinuosidades radicais no cenário litorâneo torrense conferem a dimensão da planície costeira sul-riograndense. No sentido sul, posterior à Pedra da Itapeva, somente em La Coronilla no Uruguai, cerca de 730 km, encontram-se formações rochosas naturais à beira-mar. Nas reentrâncias da Pedra da Itapeva, formam-se piscinas naturais pela oscilação das marés, “aquários” com pequenos peixes, conchas que se acumulam entre as algas marinhas, siris, mariscos e caramujos. Um banho de água salgada protegido pelas escuras rochas basálticas como uma fortaleza contra a força das ondas.

As lagoinhas das Pedras: Vermelhas e Itapeva estão localizada no Parque Estadual de Itapeva (PEVA), criado em 2002 com o objetivo de preservar os ecossistemas costeiros, a fauna e flora silvestres e os sítios arqueológicos e históricos numa área aproximada de 1.000 hectares. Alguns anos o Instituto Curicaca desenvolve projetos no PEVA e no seu entorno, assim como centros universitários de pesquisas de grande relevância científica, como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. São desenvolvidas ações de educação ambiental e trilhas monitoradas para o público estudantil, acadêmicos e turistas. Muitos são os dilemas que envolvem a integridade do PEVA, da disputa fundiária ao trânsito de veículos na faixa de areia, porém a sociedade torrense deve pautar suas decisões partindo do princípio da preservação desse santuário ecológico com políticas sistemáticas de fiscalização e regramento do tráfego e usos nos limites e nas imediações do parque. O sentido da preservação é coibir a ocupação inadequada e os impactos ambientais e garantir as futuras gerações um desenvolvimento sustentável. Em Torres, a população é guardiã e responsável pelos “tesouros naturais da humanidade”: o Parque da Guarita, conhecido como Parque José Lutzenberger e o Parque Estadual de Itapeva (PEVA) e não deve se omitir diante dessa inalienável missão.

Enquanto isso, gosto de recordar das crianças tomando banho nas lagoinhas das Pedras Vermelhas e na Pedra da Itapeva, subindo e descendo as dunas, rolando, rindo, pescando, comendo frutas, correndo e quem sabe, usufruindo de uma Torres que ficou congelada no tempo ou poderá um dia se extinguir...

Publicado no jornal A Folha.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 11/06/2015
Reeditado em 11/06/2015
Código do texto: T5273818
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