Uma Rua Bloqueada

No cotidiano de Dona Maria o cantarolar dos passarinhos que habitam seu pequeno pomar nos fundos de casa é perturbado pelo incessante barulho dos motores dos tratores e caminhões. Do amanhecer ao entardecer, ruídos de ferramentas, o solavanco no “vai e vem” das máquinas e sirenes da “marcha ré” dos caminhões impõe um tom mais alto nas conversas dentro de casa, na cozinha, na sala e nos quartos as pessoas não se escutam. A família foi emudecida pelo excessivo barulho das máquinas que estão sendo operadas na implantação de um condomínio de luxo. Após o almoço, Dona Maria guarda o que sobrou da refeição, lava a louça, limpa o fogão e varre a cozinha. Pega uma xícara de café preto e vai assistir a televisão. Com olhar atencioso, observa uma rachadura que se aprofunda a cada dia na sua casa de alvenaria recém-reformada. Lembra-se das dificuldades de acesso e moradia da área em que reside hoje, mas em que sua paisagem original era habitada pelos perenes campos de dunas, os famosos “cômoros de areias”, e banhados. Eram casas de madeira dispersas no alto das dunas com cercas de arames fixando os limites dos terrenos, adquiridos por contratos de compra e venda ou por posse de “usucapião”. O terreno de Dona Maria custou 1.300 Cruzeiros com pagamento em 7 vezes sem juros porque era o último lote, solitário em meio ao nada.

Nesta época, a casa de madeira de Dona Maria tinha poucos cômodos e a cozinha era improvisada na área externa. O banheiro ainda era a “patente” que sua família conhecia como “tuco-tuco” e no bairro ainda não tinha iluminação pública, calçamento nas ruas e saneamento básico. Tinham casos das pessoas que morriam de “bicho de pé”, quando não havia tratamento adequado e se proliferava alguma infecção. O conflito fundiário era evidente, não se sabia mais quem tinha direito sobre o território ao sul da cidade, no entorno do Parque da Guarita e do Parque Estadual de Itapeva. A derrubada de casas e a remoção de famílias era prática comum, novos traçados para as ruas eram impostos para os moradores que não podiam demonstrar insatisfação, se perdiam um pedaço do seu terreno ou a rua atravessaria suas casas. As máquinas trabalhavam sem parar subtraindo e esgotando a barreira natural, os áridos areais e aterrando as restingas e banhados. Enquanto passava o tempo, promessas de escrituração dos imóveis e a invasão das propagandas políticas no bairro. Dona Maria testemunhou as transformações da sua terra natal, na rua da sua infância, no bairro que moram seus parentes e na cidade que pulsa o coração de seu povo.

Quando inicia o expediente de trabalho na construção do condomínio de luxo nas imediações de sua casa, Dona Maria sente sua residência tremer e lamenta com indignação o descaso com os moradores locais. Trabalhou a vida toda, economizou, contraiu dívidas e empréstimos para reformar sua casa, substituir sua antiga casinha de madeira por uma de alvenaria, para assistir o esfarelar da rachadura na parede nova do seu lar. O sentimento de Dona Maria e seus vizinhos é de exclusão em que a imposição de um grande empreendimento perturba sua vida cotidiana e o meio ambiente. É como se as comunidades que vivem no entorno não tivessem voz e nem representantes. Esses bairros têm uma história peculiar e aspectos socioculturais devem ser levados em consideração quando são mensurados os impactos de empreendimentos de grande porte nas áreas urbanas.

Dona Maria percebeu que as obras do condomínio estão afetando a qualidade de vida dos moradores e interferindo no direito de ir e vir dos cidadãos. A Rua São Pedro, uma das principais vias de acesso entre os bairros São Francisco e Guarita está bloqueada para as obras de implantação do Condomínio de Luxo Ilhas Park Pedra da Guarita. A grande maioria dos moradores não tem um veículo (carro ou moto) para percorrer o percurso do desvio para chegar em seus domicílios, trazendo transtornos para os trabalhadores e estudantes. Aos transeuntes que se aventuram passam com perigo por entre as máquinas pesadas e caminhões, buracos e valos durante o horário de expediente quando os operários estão trabalhando. Idosos e crianças, até deficientes físicos e pessoas com dificuldade de locomoção, Dona Maria já viu tentando atravessar o canteiro de obras. Como há vazão do lençol freático sob as dunas, foram instaladas bombas para a extração da água e consequentemente, drenar o manancial hídrico que emerge da Mata Paludosa do Parque Estadual de Itapeva e dá origem ao “Arroio”, topônimo que batizava a comunidade. Durante intensas chuvas que assolam a região, a enchente e inundação invadem as residências acarretando enormes prejuízos as famílias. Dona Maria recorda dos banhos no “Arroio” e da pesca da “traíra” nos valos e sangradouros e fica abismada com o projeto de canalização da sanga histórica. Num bate papo descontraído com a vizinha, Dona Maria afirma: “Olha Beatriz, eu não tive muito estudo, mas pra fazer tanta besteira quanto os “Doutor do Condomínio” tão fazendo não necessita diploma. Me diz aonde esses engenheiros compraram seu certificado que eu quero também!”

A Rua Bloqueada, o Meio Ambiente Destruído e os Moradores Desrespeitados. Qual é o tipo de cidade que queremos construir?

Publicado no Jornal Litoral Norte RS e Jornal A Folha.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 09/07/2015
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