Andrezinho e a Patrola

No final da década de 1980, em meio as dunas se desenvolvia um bairro com casas de madeira dispersas em caminhos tortuosos. A cada dia brotava uma nova moradia entre os cômoros. O bater dos martelos, as carroças passando carregadas com tijolos e aterros e algumas casas atravessavam os arroios e sangas pairando sobre os caminhões que andavam vagarosamente ou, por vezes, em carros de boi. Semana após semana, crescia o amontoado de gente em uma área litigiosa onde ocorria uma acirrada disputa fundiária. Ao sul da cidade, uma região privilegiada pelos monumentais atrativos turísticos e as belezas naturais exuberantes. Antes um deserto banhado pelos mananciais hídricos que afloravam da Mata Atlântica que dava lugar para a expansão urbana desordenada com a invasão do território por posse e usucapião. Por um lado a reivindicação dos proprietários, por outro a Prefeitura e no meio os moradores. No início dos anos de 1990, os terrenos eram limitados por cercas de arame farpado no cume das dunas e poças d’água onde não havia o delineamento das ruas, iluminação pública e água encanada. Era comum a construções das patentes e as pessoas colaboravam umas com as outras, entregando baldes com água e combatendo as pulgas e “bichos de pé” que se alastravam na comunidade. No conflito pelas terras muitas famílias perderam suas casas que eram destruídas rapidamente sob o flagelo e desespero das mulheres e crianças enquanto nascia a revolta dos homens diante dos poderes instituídos e a brutalidade e desrespeito que eram tratados. Quando a situação entrava em acordo, a Prefeitura resolveu fazer o regramento do bairro e das desapropriações em que decidiam por onde passariam os logradouros. Mais uma vez os moradores sofrem com a imposição e muitos têm que se deslocar para manter os traçados das quadras. Testemunhando esse cenário de incertezas e desolação, as crianças inventavam um mundo de brincadeiras, contrariando a realidade que vivenciavam. Em meio a criançada que corria nas areias, subindo em árvores, coletando frutas e jogando futebol no campinho estava Andrezinho. Menino de baixa estatura, loiro de olhos castanhos, adorava jogar bolita, brincar de “garrafão” e “sela” e dar piruetas nos cômoros virando “flic” e “mortal”, um malabarismo com o corpo que aprendeu com um amigo mais velho, o Carlos “Kung Fu”, assumido discípulo de Bruce Lee. Nos dias quentes tomavam banho nas sangas e ia à praia pela trilha no meio do mato. Andrezinho estava sempre com a turminha, os amigos que moravam nas redondezas, com afeição especial pelo Leo Árvore, Flávio Cachorro Louco, Giovani Cabeça de Formiga, Gelsinho, Moisa, Juli, Marcelo Coxa Colada e o Sotia. Nas ruínas das casas abandonadas faziam fogueiras, brincavam de “bang- bang” e “polícia e ladrão”. Após os períodos de chuva, faziam as “fazendinhas de girinos” nos alagados imersos no lamaçal com as calças arremangadas. Andrezinho era um dos caçulas da turma e todos caçoavam dele pelo seu problema de dicção, na sua fala muitas palavras ficam inteligíveis por causa da sua “língua presa”. No bairro era incessante a remoção de areia com o auxílio de caminhões e tratores que subtraiam as dunas e alinhavavam o loteamento. Era um fascínio para as crianças subirem nas caçambas e na cabine dos tratores que chamavam de patrolas. Andrezinho quando ouvia o barulho do motor saia correndo, largava tudo que estava fazendo e gritava: “Óia a Patóia, óia a Patóia!!!” Era um menino fascinado pelo estrondoso labor e a robustez das máquinas elaborando brinquedos e miniaturas em madeira dos caminhões e tratores. Quando completou 11 anos de idade, o garoto brincava despretensiosamente atrás de uma patrola e o condutor fez uma manobra inesperada e não o viu. Ao longe, gritos de uma mãe chocada e incrédula com o ocorrido: Andrezinho veio a falecer atropelado pela máquina. A comunidade ficou de luto com a precoce morte de um menino criado em meio aos “combros” em um bairro da periferia, colecionando bolitas e amizades cativando a todos com seu jeito meigo, simpático e inocente. Andrezinho e a “Patóia” que ele tanto gostava encerram o triste e trágico desfecho que ainda sobrevive nas memórias dos moradores mais antigos. Passado mais de duas décadas edificam condomínios de luxo e impõe a segregação social a uma localidade com muitas histórias e identidades. A população das areias se enfeitiça pelo asfalto, porém não esquece suas raízes. Uma homenagem ao Bairro São Francisco localizado na cidade de Torres/RS e ao amigo de infância Andrezinho que subiu aos Céus na sua transcendental “Patóia” patrolando as nuvens, brincando com os anjos e sorrindo para as estrelas.

Publicado no Jornal Litoral Norte RS e Jornal A Folha/ Torres.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 02/12/2015
Reeditado em 02/12/2015
Código do texto: T5467882
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