Josemar, o Tarrafeador das Torres

Num agosto frio de muito vento em 1948, no vigor da Lua Cheia veio ao mundo Josemar pelas mãos da parteira Maria em um casebre de pau a pique entre cômoros e tiriricas no Canto da Ronda. Nas proximidades do Rio Mampituba, na parte baixa da cidade morava a família do Seu Pedro e Dona Ernestina. Josemar era o caçula entre os irmãos sendo o mais velho Lucas, Inácio o segundo e Laura a do meio. Ernestina era natural de Araranguá/SC e era considerada uma exímia e talentosa artesã no trato dos cestos, tapetes e balaios e na manufatura de tecidos, dividindo seus dias entre as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos. Pedro era descendente de uma família de pescadores e marisqueiros que transmitiam seus ensinamentos contando e recontando estórias. Aprendiam os cuidados no manejo dos pesqueiros e quais eram as melhores épocas para determinadas espécies de peixes. A observação do clima e das marés e a consciência natural de responsabilidade com o meio ambiente. Sabiam como fazer para sempre garantir a fartura. Como era de costume residiam numa pequena área onde cultivavam um roçado de mandioca, milho, feijão e batata-doce e tinham um galinheiro, uma cabra, um boi para ajudar nos deslocamentos e nos trabalhos com a terra e uma vaca leiteira. Recentemente, Seu Pedro negociou um leitão com seu compadre Zefino para o Natal em troca de ferramentas, sal e redes de pesca.

Tudo era passado de forma hereditária, de pai para filho, mediante a posse dos antepassados que usufruíam das terras adjacentes as curvas do rio desde a comunidade das Salinas até a Ronda. A relação com o rio propiciava a pesca, o banho, a água de beber e lavar as roupas e louças. As famílias que se instalavam nessas áreas ribeirinhas desenvolveram uma cultura própria, aperfeiçoando seu modo de vida por meio do extrativismo das fibras vegetais, as técnicas de navegação e os saberes da pesca. A vida de Josemar não foi diferente, aprendeu tudo o que precisava auxiliando seu pai durante as empreitadas na busca de caramujos e mariscos, nas incursões além-mar nas embarcações e na feitura das redes e das tarrafas. Um aprendiz de pescador conhecido como “catingueiro” por carregar o pescado e ficar com o forte cheiro, um odor marcante, uma “catinga” de peixe. Conhecia desde a juventude as técnicas para fazer uma canoa utilizando um grosso tronco de árvore. Como todo bom pescador acordava na madrugada, bem cedinho para aproveitar o dia de trabalho. Sem dúvidas, de todas as tarefas, a que tinha mais paixão e satisfação era o trabalho artesanal de fazer o “pano” para uma tarrafa. Iniciou quando criança fazendo remendos, pontos e ajustes com precisão para o peixe não escapar. Josemar produzia tarrafas de “rufo” ou de “argola” algumas “miuderas” outras com mais de vinte braças confeccionadas com variados tipos de linha, verdadeiras obras de arte. Entre os pescadores locais a família do Seu Pedro tinha reconhecimento e prestígio por manter as tradições no conhecimento profundo das redes e tarrafas. Josemar tinha fama de ser especialista, ultrapassando o legado do seu mestre. Como diziam: “Tarrafeava só com um braço!”

Em tempos antigos, na Barra Velha centenas de pessoas se aglomeravam para ver e auxiliar os pescadores na puxada de rede. Entre os anos de 1967 e 1973, durante a vigência do Governo Militar, as comunidades que sempre acompanharam a dança do rio, testemunharam uma drástica transformação no fluxo natural das águas: a fixação da barra. A construção dos molhes tinha como objetivo facilitar a navegação aprofundando o canal na foz do Mampituba. Neste processo nasceu o “Braço Morto” e o bairro Pasárgada no município de Passo de Torres/RS. Josemar e seus conterrâneos testemunharam as modificações do encontro do rio com o mar. Os velhos pescadores lamentam que a expansão da cidade e os agrotóxicos estejam ameaçando o rio que sempre deu vida à todos. Apesar da poluição e maus tratos, o Mampituba exibe sua vitalidade e beleza na tonalidade das suas águas e visuais únicos recheados de fartas pescarias.

No século XXI, os descendentes dos pescadores não conseguem se sustentar do trabalho na pesca e procuram outros ofícios manuais como profissão, em sua maioria migram para a construção civil. Contrariando o fluxo dos mais jovens, no trafegar de mais de seis décadas de experiência e muitas estórias para contar, Josemar ainda pega sua tarrafa predileta ao amanhecer e vai esperar os botos entrarem na barra trazendo as “malhas” (cardumes) de tainhas. Uma cumplicidade que se desenhou no milenar “ato de pescar”. No horizonte as barbatanas brincam na penumbra da aurora e o vigilante pescador, imóvel com a tarrafa “paneada” respirando vagarosamente debruça um olhar atento no movimento do rio. Na primeira aproximação do cardume, no fervilhar e burburinho da lâmina d’água a agitação toma conta. Na sincronia de movimentos, o vai e vem do quadril e na extensão dos braços surge a tarrafa pairando no ar e cai arredondada sobre o cardume. Um majestoso movimento que carrega a simplicidade e riqueza da cultura pesqueira. Josemar, o Tarrafeador das Torres segura firme na “fieira” (corda) para não deixar escapar nada. Uma briga danada e quando recolhe a tarrafa aparece como um milagre dezenas de tainhas aglomeradas. Uma gargalhada e a felicidade de uma criança diante do público de curiosos e companheiros da pesca. Josemar sabe que ganhou o dia, separa as melhores para a família e o restante já sai negociando com quem aparece. O peixe mais uma vez garante o sustento do povo que entrelaça sua vida na poesia da imensidão líquida que inunda o litoral. Um modo de vida peculiar e tradicional que exala a sabedoria da cultura popular que está impregnada no DNA, no sangue e na alma do torrense marisqueiro que paira sobre as águas.

Publicado no Jornal Litoral Norte/RS e Jornal A Folha - Torres.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 01/03/2016
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