Extremas contradições urbanóides

O barulho das ferramentas nos andares superiores e o caminhão atravessado na rua fornecendo toneladas de concreto denuncia o que os transeuntes já desconfiam: “estão construindo mais um prédio!” Na vizinhança rola o burburinho que fulana vendeu seu terreno de esquina e no outro dia erguem-se os tapumes. “Será que vai surgir mais um edifício?” é a dúvida que paira no ar. Os comentários na padaria afirmam que já foi plantada a “semente dos espigões” regada a recursos inestimáveis e licenças descabidas. O saneamento básico é assunto posterior e os impactos na comunidade são “mitigados” com ações pontuais. O dano imaterial e afetivo da relação das pessoas com o lugar e a paisagem que são cristalizados pela história tornam-se uma preocupação irrelevante. O importante é que gera empregos temporários contribui com a geração de renda das famílias dos trabalhadores, fomenta a economia local e garante lucros exorbitantes aos financiadores e empreendedores. A fisionomia da cidade e seus contornos refletem as relações sociais engendradas nestes espaços dinâmicos recheados de vivências, culturas e saberes. Revelam a ideologia dominante, os costumes e as práticas sociais de um determinado período, como as pessoas se comportam ou tomam suas decisões e, principalmente como é sua relação com a urbe, os territórios comunitários que compõe a cidade. A paisagem é um direito coletivo e suas alterações modificam os laços identitários e como as pessoas interagem e concebem a cidade em que vivem. Os lucros da deturpação do patrimônio natural e histórico destinam-se a um setor minoritário da sociedade enquanto os prejuízos são coletivizados. Uma urbe privatizada onde suas torres oferecem uma vista inimaginável do alto dos apartamentos de luxo em detrimento da fragmentação do sentido de acolhimento dos cidadãos para com suas referências afetivas e simbólicas com o lugar. Ao transitar sob os prédios as pessoas sentem-se oprimidas entre os horizontes edificados e limitados. Paralelo ao esgotamento dos marcos paisagísticos, a destruição avassaladora dos remanescentes históricos sejam eles as casas “velhas”, os monumentos, os sítios arqueológicos e o total abandono dos lugares de memórias e pontos privilegiados. Os extremos do embate entre a modernidade e a tradição e a nova “cara” da cidade vai se moldando onde as perdas podem ser irreversíveis. Nos idos de 2008, testemunhei a destruição de um casarão construído nas últimas décadas do século XIX onde funcionou o Hotel Sartori localizado no Centro Histórico de Torres nas imediações da Igreja São Domingos. Olhei ao redor, um “paredão” de prédios invadindo o núcleo da vila, local que resguarda as origens e raízes que conectam as pessoas a sua cidade. No local do antigo casarão, um condomínio que exalta um canhão como um monumento ao Forte São Diogo das Torres de 1777 construído naquelas imediações. Destruo uma edificação histórica para mencionar outro elemento da história local com uma nova “roupagem”? Uma contradição explícita que revela a amnésia coletiva que paira sobre todas as instâncias da sociedade. Nesta mesma parte alta da cidade, brotam 3 “espigões gigantescos” que reivindicam o seu lugar com o título das “Torres de Concreto” mais imponentes da cidade. As Torres Naturais que batizaram a região estão minimizadas no horizonte e não conferem mais a singularidade e beleza em seu conjunto paisagístico. Torres, a Mais Bela, está comprometendo o que tem de melhor em prol de sua verticalização ambiciosa e sem regramento. Estamos perdendo o bom senso em meio a paranoia desenvolvimentista? Construir aleatoriamente para quê e porquê? Certamente, não é para coibir o déficit populacional ou para cumprir a função social das moradias. Nesta mesma cidade que sobram construções, edificações e apartamentos aumenta gradativamente a população de moradores de rua. Uma população desassistida que caminha na perene invisibilidade entre os prédios de luxo, se escorando entre uma marquise e outra. Vivendo de doações diárias procuram se acomodar nos lugares menos insalubres e que forneça um certo “aconchego”. Muitas vezes são expulsas por serem percebidas como uma ameaça para a vizinhança. E assim, vão fugindo do frio e da fome, vagando não importa se de dia ou de noite. Pessoas marginalizadas e sem lar, nômades na cidade das edificações “sem memória” se torna uma das mais extremas contradições urbanóides.

Publicado no Jornal A Folha/ Torres e Jornal Litoral Norte RS.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 09/06/2016
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