Na ponta do Lápis

Mergulhei nas memórias de infância para perceber em que momento conheci o real significado da palavra cidadania para além da sua herança clássica na política das cidades – estados gregas (a pólis). Imediatamente, recrio as imagens de um bairro de periferia onde residia com minha família em meio as dunas e os banhados sob o clima tenso da disputa fundiária. As precárias condições de infraestrutura impunham a falta de saneamento básico, iluminação pública e ruas pavimentadas. Os moradores construíam as fossas sépticas e aterravam os logradouros com cascalhos para evitar os alagamentos em épocas chuvosas. Certa vez, meus pais e um grupo de moradores começaram a fazer suas reivindicações na prefeitura e inúmeras diligências ao poder executivo acabavam dando em nada, apenas promessas. Desamparados, iniciaram um abaixo-assinado e organizaram reuniões sistemáticas no salão comunitário para mobilizar a população. Os moradores exerceram sua cidadania e por pressão popular conseguiram a desejada iluminação pública e as ruas pavimentadas propiciando bem-estar e qualidade de vida ao bairro. Percebi, na ingenuidade de criança que as pessoas comuns podem tomar as rédeas das situações e decidir o que era melhor para as suas vidas. Que lição maravilhosa: uma aula de cidadania!

Muitas pessoas conhecem a cidadania dentro da escola, nas escolhas dos representantes de turma ou no grêmio estudantil . A escola torna-se um espaço democrático onde cada um tem sua opinião valorizada. O debate entre posições divergentes alicerça as aspirações democráticas em que os interesses individuais são diluídos pelos desejos da maioria. A educação é uma virtude humana e a escolarização é um dos caminhos para o aperfeiçoamento pessoal e profissional. “Como fulano é educado!” é um dos adjetivos mais apreciado pelas pessoas, principalmente para os pais orgulhosos. É unânime e consensual o poder da educação e da cultura como eixo fundamental para o desenvolvimento de um povo e na transformação de paradigmas de uma nação.

O pedagogo e filósofo Mário Sérgio Cortella afirma categoricamente que a escola auxilia na educação e não vice-versa. Recebemos a educação no ambiente doméstico e a instrução nas instituições escolares. Para isso, investimentos não devem ser poupados para alcançarmos uma educação de qualidade. Atualmente sofremos retrocessos em todos os segmentos com inúmeros ataques aos trabalhadores da educação e suas instituições que colocam em risco a escola pública como sinaliza alguns projetos de lei que tramitam nas casas legislativas a exemplo da PL 44/16 e tantas outras. A luta pelos direitos constitucionais se acirram em território nacional e no caso do Rio Grande do Sul o movimento estudantil encaminhou de maneira brilhante as ocupações das escolas. Romperam o currículo, ocuparam seu espaço por direito com arte, música, cidadania, reformando suas escolas e tomando aquilo que lhes pertence. Demonstraram para o governo que a omissão não faz parte do seu vocabulário. Aos educadores, os estudantes indicaram o caminho de mobilização e resistência que se propagou na dividida categoria dos professores da rede estadual. A greve é um direito dos trabalhadores e me orgulho desta categoria aguerrida de lutadores e lutadoras e daqueles que apoiam o movimento. Também sinto vergonha dos meus colegas que por motivos individuais não aderem o movimento e ficam à mercê dos desmandos do governo. Esses “não fedem e não cheiram” e são como “plumas ao vento” totalmente desmoralizados perante seus colegas. Os demagogos e hipócritas não tem o direito de criticar ou opinar no chão da escola, pois estão acovardados e totalmente alienados do que está acontecendo. A História da classe trabalhadora comprova que só a luta e as greves conquistaram melhorias nas condições de vida; férias remuneradas, jornada de trabalho 8 h diárias, acesso ao sistema de saúde e inúmeros avanços sociais. Lutar por uma educação pública e de qualidade é um compromisso ético, estético e político buscando na balança os valores de justiça. É momento de denunciar as atrocidades e a repressão aos que exercem sua cidadania e romper com as deturpações da mídia e a falta de informação da sociedade em geral.

Na ponta do lápis, registro a data da próxima atividade sindical e a assembleia de um dos maiores sindicatos da América Latina, o CPERS (Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul) enquanto absorvo com sangue nos olhos a tristeza pelo Massacre de Caarapó em Mato Grosso do Sul e a chacina do povo Guarani Kaiowá, a contradição que revela o assassinato da onça-pintada Juma na passagem da Tocha Olímpica na região norte e a invasão de terras nas imediações no Parque do Balonismo em Torres. As injustiças me ferem profundamente e creio que aí mora o combustível para o espírito revolucionário.

Publicado no Jornal A Folha/ Torres e no Jornal Litoral Norte RS.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 07/07/2016
Reeditado em 07/07/2016
Código do texto: T5690248
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