Artifícios da Sedução

Há muitos anos meu amigo Lindolf Bell, poeta e crítico de arte escreveu - “Definição, clareza, sobriedade e sutileza : estas são as características da fase atual de Vera Triches. Suas pinturas são de leitura acessível, sem serem óbvias, e asseguram na comunicação pela segurança formal.” “As figuras femininas [ ….] uma celebração do frágil e do permanente, re-aparecem em propostas sempre re-novadas”.
Coube-me reencetar esse diálogo com a artista, e , por que não,com Bell, buscando aprofundar a visão, obter o insight para ir além da forma, compreender seu processo criativo. Artista de longa carreira, ceramista, vidreira, designer em arte aplicada, pintora, Vera Triches pode ser vista formalmente como neo-expressionista na tradição francesa do L'homme-Témoin ( o homem-testemunha) dos anos cinquenta, porém sob um prisma positivo existencialista da fruição da vida, e não da vulnerabilidade humana do movimento de então, já foi abstrata, porém o que lhe fala é a figuração, principalmente a mulher, que retoma após dez anos na exposição “Elas”.
Ao confrontarmos a série antiga e a atual, embora pareçam ser idênticas o tratamento é outro, houve acréscimo de textura, o óleo antes uniforme agora em certas áreas é fluido, com tênues veladuras evanescentes, noutras surge encorpado, as filigranas dos rendados tais como colagens respiram outros tempos, enriquecem as vestes, os cabelos em toucados elaborados respiram cascatas florais, surgem símbolos eróticos femininos como jóias e frutos.
Independente de qualquer análise, existe entre os dois tempos um denominador comum: nos rostos das figuras surge um estilema, aquela unidade mínima que possibilita identificar e isolar um estilo, a característica marcante de uma autoria. Dessa maneira, embora o estilema seja citação de uma época e evoque um autor, como metalinguagem entre convenção e invenção torna-se uma referência, tem valor estético.
E, qual o estilema que vemos nas mulheres de Vera Triches? É o pescoço alongado, usando um adjetivo: “modiglianesco”. Conversei com Vera sobre isso, é lógico que ela sabe da referência possível ao grande artista do modernismo, mas ele não é seu ídolo, não bebeu na sua fonte, quanto ao motivo íntimo que a conduziu a isso, como me afirmou, é mera questão de elegância formal.
As pinturas e esculturas de Modigliani tem rosto oval, pescoço longo, olhos amendoados e narizes afilados algo em comum com as obras de Triches, ficando marcante de início como forma os pescoços, entretanto, nele as bocas são finas, retas, como traços labiais desprovidos de sensualidade, enquanto nas dela são minúsculas, em formato de coração, uma promessa implícita de paixão. A estilização recorrente em Modigliani como figura central da École de Paris advém do contato com a então novidade da arte africana, mas se refletirmos o pescoço alongado que tanto o impressionou não é único na História da Arte, aparece pela primeira vez como estilema no busto da rainha Nefertiti em Amarna ( 1345 a.C.) possivelmente executado pelo escultor Tutmés, obra considerada realista, uma vez que aparecem rugas próximas aos olhos e nas bochechas, o pescoço alongado seria então verdadeiro, e não um ideal abstrato de beleza. Modigliani se inspirou nas estatuetas africanas da tribo Baule da Costa do Marfim, em que a cabeça é considerada o assento da liberdade e da inteligência, o pescoço alongado um modo de nos direcionarmos à ela, o mesmo ocorrendo entre os Ndebele da África do Sul, próximos a Pretoria. Ainda na arte etnográfica os Padaung, etnia Karen da Tailândia ,enxergam o pescoço como centro da alma, o ideal de beleza é o pescoço alongado, uma vez que a cabeça representa a individualidade física, porém o pescoço é a presença de algo extraordinário, de caráter metafísico.
Chegando ao Renascimento temos de Piero del Pollaiuolo o “Retrato de jovem mulher” executado em 1465, descrito como “con il collo bello come un cigno” ( com o pescoço belo como um cisne), lembrando que seu irmão Antonio era mestre em anatomia e escultura, conviviam e ali não fora uma liberdade artística, mas uma beleza real, uma das mais belas representações da forma feminina.E Parmigianino em 1534 irá pintar a “Madonna com o pescoço longo”, algo incomum no Maneirismo, com a intenção não ortodoxa de criar uma Nossa Senhora que fosse graciosa e elegante, com o pescoço longo como o de um cisne, portanto uma imagem recorrente.
Entretanto , se esse atributo do pescoço alongado é raro na anatomia humana, se constitui num ideal na Estética Facial, e, por extensão na cirurgia plástica onde são pontos de referência: Rostos ovais bem marcados com queixos pontiagudos em formato de coração, quando de perfil visualmente uma torção no topo do pescoço em relação à base, pescoços longos, e linha diagonal da musculatura do pescoço bem visível ( musculatura esternocleidomastóide) que acentua o pescoço.
Quanto aos lábios, como disse, nas obras de Triches são minúsculos e em formato de coração, nos fazem lembrar as divas do cinema dos anos vinte, como Gloria Swanson, Claudette Colbert e Theda Bara entre tantas outras, personagens “ingênuas” quais Lolitas, esse modismo por sua vez advindo de raízes orientais do Japonismo então em voga impulsionado por Fougita, originado na maquilagem das geishas como garotas sedutoras, que por sua vez foram um aprimoramento sensual da milenar pintura labial chinesa de corte.
Voltemos então àquela apresentação de Lindolf Bell, realmente as mulheres de Vera Triches são a representação do frágil e do eterno, o belo eternizado pela arte através do tempo, idealizações estéticas como artifícios de sedução e jogos do olhar,e quedamo-nos perplexos diante dessas figuras que povoam nossa imaginação.

Walter de Queiroz Guerreiro, Prof.M.A.
Historiador e Mestre em Arte
Membro da Associação Brasileira
e Internacional de Críticos de Arte (ABCA/AICA).
Walter de Queiroz Guerreiro
Enviado por Walter de Queiroz Guerreiro em 28/10/2017
Reeditado em 31/10/2017
Código do texto: T6155359
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