A segunda vida

Há um conto do velho Machado que se chama “A segunda vida”. Trata-se, supostamente, de um maluco que procura um padre e lhe conta uma história mirabolante e tão fantástica que começa com o relato da sua própria morte, ocorrida algumas décadas antes.

Bem, apesar de tudo, alguns relatos feitos por ele já não parecem tão disparatados assim, à luz do conhecimento que temos hoje, sobretudo das Experiências de Quase Morte. Diz o sujeito ao contar a sua morte:

“Minha alma voou pelo espaço, até perder a terra de vista, deixando muito abaixo a lua, as estrelas e o sol; penetrou finalmente num espaço em que não havia mais nada, e era clareado tão somente por uma luz difusa. Continuei a subir, e comecei a ver um pontinho mais luminoso ao longe, muito longe. O ponto cresceu, fez-se sol. Fui por ali dentro, sem arder, porque as almas são incombustíveis”.

Ora, esse bem poderia ser o relato de uma EQM, pois há quem passe pela sensação de se afastar da Terra e voar pelo espaço – o próprio Jung relatou essa experiência. E a relação com a luz ou com um ponto luminoso é uma das características mais citadas em relatos de EQM.

Assim como o personagem do conto entrava na luz “sem arder”, os que chegaram a enxergar uma forte luz, brilhante como o sol, no momento que estavam morrendo também relatam que essa luz não lhes faz mal nenhum, e que se pode inclusive olhar para ela diretamente, sem risco de ser cegado pelo seu brilho intenso.

Descreve ainda o personagem que, à medida que subia, ouvia “uma deliciosa música”, e que foi levado por “um enxame de almas”, que o conduziram em um palanquim feito de éter e plumas até o “novo sol, que é o planeta dos virtuosos da terra”.

Machado certamente estava a par das ideias espíritas que, a partir da década de 1860, começaram a se difundir no Rio de Janeiro (o conto foi publicado em 1884). As ideias espíritas não eram nem um pouco do agrado de Machado, que as combateria ferozmente em suas crônicas. Mas é de se imaginar que venha dessa doutrina a ideia de um planeta de virtuosos, e mesmo a de um novo sol.

Hoje são conhecidas EQMs que relatam a existência de mundos paralelos ou coisa que o valha, e eles supostamente são habitados por pessoas, se não virtuosas, ao menos em um estágio de evolução maior que o nosso. A transcomunicação experimental chega a esmiuçar esses mundos, através de relatos que, assim acreditam, viriam dos próprios mortos que os habitam.

O fato é que a existência de outros mundos foi uma ideia que cresceu desde o tempo do Machado, e hoje já chega a ser cogitada pela própria ciência, embora, naturalmente, sem as implicações espirituais que a religião lhes dá. A condução do personagem por um grupo de almas também se assemelha a aspectos da doutrina espírita e a relatos de EQM, com a diferença de que, nesses casos, a pessoa que conduz costuma ser conhecida do quase-morto.

É possível aventar que, além da influência espírita, o que Machado retrata seja também produto de muitos relatos de vida pós-morte que acompanharam a história da humanidade. Desde sempre, afinal, o ser humano conta histórias muito parecidas sobre o que acontece com a pessoa depois que ela morre.

O que a ciência pode demonstrar um dia é que há nelas um fundo de verdade, e já se chega bem perto disso, mas, novamente, sem que disso resulte uma adesão à crença de vida após a morte. O que EQMs por todo o mundo sugerem é que pessoas que estão perto de morrer sentem coisas parecidas entre si e que talvez tenha sido assim ao longo da história. De toda forma, o personagem do Machado acaba, pelo menos no que diz respeito a isso, não se saindo tão louco como parece.

Mas ele continua: “Poeta que fosse, não poderia, usando a linguagem humana, transmitir-lhe a emoção da grandeza, do deslumbramento, da felicidade, os êxtases, as melodias, os arrojos de luz e cores, uma coisa indefinível e incompreensível. Só vendo”.

Isso é o mesmíssimo relato que quase todo mundo que passou por uma EQM faz. É sempre uma sensação indescritível de felicidade, de pertencimento, de união com o cosmos, impossível de se descrever por meio da limitada linguagem humana: só vendo.

E o personagem também faz uma alusão à diferença de tempo entre aquele mundo e a Terra, falando que aquilo que lá durou dois séculos correspondeu a 48 horas terrestres. Também é comum a perda de noção do tempo em relatos de EQM. Tem-se sempre a impressão de que passou uma pequena eternidade “do lado de lá”, e há casos em que se pode confirmar o tempo exato em que a pessoa “ficou morta”, e foram sempre alguns poucos minutos.

Até aí vão as semelhanças do relato do personagem machadiano. Mas ele diz ainda que, sempre que se completa mais um milheiro de almas naquele lugar maravilhoso, há uma grande festa e o número mil é convidado a tornar à Terra para uma vida nova. Foi exatamente o caso do personagem, mas ele não quis voltar. Soube então que ele não tinha o que querer, que era “uma lei eterna” e que não podia recusar.

A história do milheiro, naturalmente, não é comprovada de nenhuma maneira, e certamente nunca foi nem ao menos aventada, seriamente, por quem quer que fosse. No entanto, a recusa inicial do personagem em retornar à Terra, e a decisão imperiosa de que ele voltaria de qualquer jeito, também se parece com o que relatam pacientes que passaram por uma EQM.

Muitos deles puderam ouvir pedidos para voltar, e a maioria deles não queria, de tão maravilhoso que lhe parecia aquele mundo. Foram então impelidos, e às vezes com alguma energia, a voltar ao seu próprio corpo, obedecendo a uma espécie de lei superior que não se pode nunca violar.

Tudo isso parece loucura, é verdade. Mas ela já não se restringe à ficção.

Frederico Milkau
Enviado por Frederico Milkau em 20/01/2018
Reeditado em 20/01/2018
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