Arte, Fruição e Lógica de Mercado

Santo Agostinho dizia, de modo didático, que as ações podem ser dividas em duas categorias fundamentais: fruição e utilidades. No que diz respeito à utilidades, a ação se configura incorrigivelmente como meio, como algo voltado a um fim que o transcendente. Sob a forma de projeto, o fim não está situado na própria ação em si mesma, é o que deve ser, ao final do labor, alcançado. É um adiamento do presente motivado pela cobrança de um dever que opera colonizando o futuro com expectativas. Para todo o tipo de ação em que há uma utilidade clara, objetiva, formal, podemos chamá-la de ação de utilidades. Já a fruição é o desfrute, é a ação não só como meio, mas também como fim. Na fruição, a ação se volta para si mesma, para o gozo das próprias sensações vividas. No início do século XX, com a intensificação mais evidente da sociedade burguesa, o princípio utilitarista se tornou um imperativo da cultura. Há duzentos anos atrás, uma jovem aprenderia tocar piano porque é belo. Isso é fruição, a ação pensada em seus próprios termos, pensada em si mesma enquanto desfrute. Hoje, o natural seria, diante do interesse de alguém em aprender a tocar piano, primeiro, perguntar: "para que?", "pode-se fazer algum dinheiro com isso?". Nesta hiper-modernidade, as ações são excessivamente pensadas a partir de uma expectativa de utilidade, de uma serventia futura. Com isso, o ato de fruir se tornou uma possibilidade menor do ponto de vista dos valores estabelecidos pela sociedade de mercado. Pode-se iniciar um projeto, desde que esse projeto tenha alguma utilidade evidente. E é exatamente esse tipo de ethos que tem como prática compulsória contestar a arte, acusando-a de ser inútil, e assim, fica implícito o julgamento da fruição como algo secundário, sem importância. Em relação à acusação, de fato, há culpa. A arte, é, em si, inútil. Nos aforismos introdutórios de "O Retrato de Dorian Gray", Oscar Wilde versou acerca da inutilidade da arte. Esteta como era, Wilde encarava a arte não como um ente das utilidades, mas enquanto pura fruição. Seus escritos estavam mais preocupados em termos estéticos, isto é, com as representações e suas sensações provocadas no leitor. Jorge Luis Borges, o escritor mais importante da primeira metade do século XX, dizia ser um escritor hedonista. Lia por prazer. Heidegger, Nietzsche e Schopenhauer partiam dessa mesma tradição de fruição ao teorizar sobre a arte. A arte, em si mesma, não deve ter utilidade. Arte é potência sob às formas da sensibilidade. E apesar da arte justificar a si mesma por ser, de fato, fruição, isso, em absoluto, não quer dizer que ela não possa vir a ter utilidade. A questão é que ela não tem utilidades intrínsecas. Doistoévski, por exemplo, com seus livros "Crime e Castigo" e "Irmãos Karamázov", serviu de inspiração para as principais teorias do psicanalista austríaco Sigmund Freud. Da mesma forma, Goethe, pai do romantismo alemão, foi para Carl Gustav Jung uma de suas mais fundamentais influencias. Gustave Flaubert, o escritor de "Madame Bovary", desconstruiu os estereótipos femininos da época através de sua personagem subversiva, o que abriu margem para uma reflexão sobre a mulher e sua representação social posteriormente. Os beatnicks, os escritores gurus da contracultura, mexeram com a cabeça dos jovens, e se hoje falamos de liberdade sexual em todas as suas dimensões: feminina, masculina, homoafetiva, isso se deve também a eles.

A modernidade parece ter esquecido que a fruição é o impulso vital da utilidade, sua motivação, e trabalha a utilidade como o próprio fim, não mais somente como um meio. Talvez daí venha parte do niilismo de nossa época, porque a utilidade pela utilidade é a mais clara expressão de vazio semântico. É o adiamento da fruição na expectativa de vivê-la após o cumprimento das tarefas utilitárias em um futuro que potencialmente pode não existir, até porque a liberdade é uma dádiva do presente, o único tempo no qual se pode fruir. Não à toa, o Niilismo surge forte é no romantismo, que é uma a reação à intensificação da sociedade burguesa e seu princípio excessivamente utilitarista (lógica de mercado).

Ivo Meirelles
Enviado por Ivo Meirelles em 02/02/2018
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