Arrependera-se de nunca ter levado Emília a conhecer o quarto secreto. Mas agora era tarde. Estava crescida e não queria mais ser vista com uma boneca. Abriu a porta, e entrou  sozinha, e logo, sentiu que  uma luz a levava a  paisagens paradisíacas: praias, rios, montanhas, vales  e campinas. Mas tudo aquilo lhe parecia familiar. Podia jurar que tinha visto aquele cenário antes!... Por fim, viu uma menina, e a menina era ela mesma, debruçada sobre a mesa, escrevendo livros. Sua memória auditiva trouxe-lhe a voz de seu pai, reproduzindo Toquinho: ‘Numa folha qualquer. Eu desenho um sol amarelo. E com cinco ou seis retas. É fácil fazer um castelo...’ O pai dissera-lhe: ‘Tome! Este é o túnel do tempo. É só  imaginar e podes antecipar tua festa de debutantes, casar,  ter filhos,  e voltar a ser menina outra vez. Se quiseres, podes contar muitas histórias, e como Serna, terás um livro com mais de cem asas para voar’.
Relutou.
Não arriscaria apresentar os originais a alguma editora. Tinha muitos escritos guardados, mas não lhe pareciam coisa de publicar em livro. Eram sonhos, apenas sonhos nos quais se via de vestido longo, maquiada. Bonita, linda, maravilhosa, a valsar com o namorado na festa  de seus quinze anos. Em seguida, via-se sozinha numa ilha. Encontrava um náufrago e caminhava com ele  na orla, deixando pegadas na areia.  Adiante,  a montanha se lhe mostrava  como cenário muitas vezes  visto. E como em alocução interior, ouvi a voz de um anjo: ‘Não ultrapasse a parede dos  muros abissais.’
— Robert! É você?
— Ravenala!...
—Como  você chegou aqui, Robert?
— Sonhei que estava no quarto secreto, e o homem pregado na cruz apontou  uma porta estreita. Entrei. Acho que estamos perdidos numa ilha.
— Perdidos? Isso aqui, isso aqui é meu mundo!
— Queres dizer um paraíso, não?
— Sim, o paraíso perdido.
— Não mais perdido. Nós o encontramos.
— Olha aquele paredão azulado! Céu bonito, sol crepuscular!
— Não há parede. 
— Parece neve luminosa.
— Nebulosa difusa? Estamos no princípio, na criação do universo.
— Não sinto o calor da explosão. Sinto frio.
— Somos náufragos. A algidez vem das vestes molhadas. Precisamos aquecê-las. 
Catou gravetos e folhas secas. Misturou as folhas   com resina de mico e filetes de algas ressequidas. Fez faísca com o atrito de duas pedras. Mas a faísca não foi suficiente para fazer subir labaredas.
— Use a lente da máquina fotográfica!
— Que máquina?
— O celular.
— Perdemos no naufrágio.
— Não! Está em teu bolso.  
Estavam dois metros abaixo de uma abertura de pedras que dava para uma gruta. O acesso parecia inacessível, um paredão liso e escorregadio tão extenso que sumia de vistas. 
— Estamos no purgatório.
— Talvez não. Quem sabe, no primeiro céu!
A base úmida, lavada pela maré alta dificultava a combustão dos gravetos e das algas secas que recolheram.
— Tente outra vez o atrito das pedras... Faça uma cama com espaçamento para o oxigênio circular.
— Sim, sim...assim será melhor.
Levantou-se uma pequena nuvem de fumaça.
— Olhe o trem...
Que trem?
— Repare bem na linha  da orla.  Não estamos só. Há um homem de terno azul com uma pasta de executivo na mão.
— Não o vejo.
— Tomou o trem.
— Cadê o  trem! 
— Já foi.
— E os trilhos?
— Não há trilho, nem estação.
— Então, estamos sonhando.
— Talvez não! Talvez tenhamos ultrapassado as barreiras dos muros abissais.
— Como?
— Viagem astral.
— Não lido com essas coisas.
— Mas, estás em viagem pelo invisível.
— É uma ilhalinda!
— Deve ser triste não ter o que fazer numa ilha deserta.
Até encontrar uma ilha, o náufrago lotou para salvar a vida, e quando alcança terra firme, a solidão enche-lhe de tristeza o coração. Grita, mas sua  voz não encontra eco. Seu grito não ultrapassa os vitrais azulados do céu. Sobreviver. Lutar para pela vida. Afora isto, nada mais  tem a fazer numa ilha, senão olhar o horizonte. Ter miragens, ver nas espumas flutuantes a borda falsa ou o castelo de um navio; o monstro do lago Ness ou um xaveco pirata. O náufrago conta as horas em sua sombra. E morre de  sede olhando a imensidão de água salgada.
      
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Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."