Terribilis est locus ist
 
 
De Paris a aldeia de Gisors, pela estrada de Pontoise, são cerca de 65 kms, passando por diversas vilas e aldeias, até as proximidades da fronteira com a Normandia, onde a fortaleza normanda, que o Duque Robert da Normandia, a pedido do rei Guilherme II, contruíra em 1097 para defender os interesses ingleses na região contra as reivindações do governo francês, dominava a alta colina, em torno da qual fora contruída o castelo.
O castelo de Gisors, com sua vistosa torre, era o marco mais profundo que as eternas querelas entre os reinos da Inglaterra e França deixara na Normandia. Essa fortaleza, agora controlada pela Ordem do Templo, fora palco de muitos e contraditórios acontecimentos opostos entre as casas reais dos dois países, e sempre estivera na mira dos soberanos ingleses e franceses pela importância que representava como estratégia militar. Ali acontecera o famoso episódio conhecido como o “corte do olmo.”
“ O corte do olmo”, foi a expressão que veio imediatamente à mente de Saint’Clair quando avistou a torre da fortaleza, que sobressaia em meio aos altos muros ovalados que cercavam o conjunto de edificações. Ela fora contruída em cima de um aclive rochoso, de cerca de vinte metros acima do nível da aldeia. Era um exemplo bem definido da arquitetura militar desenvolvida pelos maçons templários, em estilo romântico e gótico, onde a torre de menagem, com cerca de quinze metros de altura, construída sobre uma base de cerca de setenta metros de diâmetro, esprestava ao conjunto todo uma impressão de sobriedade e virilidade, como convinha a uma fortaleza militar. Em volta dela, a proteger sua cintura, um fosso com cerca de duzentos metros de extensão por dez de profundidade, aumentava a impressão de inexpugnabilidade que aquele formidável edifício passava ao observador.
O “corte do olmo”. Quanta lenda se criara em torno dessa expressão, pensava Saint’Clair, enquanto trotava com seu cavalo pela rampa do aclive que o levaria aos portões da fortaleza. A vetusta e majestática árvore ainda estava lá, imponente em seus quase trinta metros de altura, e nessa época de outono, meio descarnada, forrando o chão com um tapete folhas caídas, que se estendia até à porta da capela de São Tomás Becket, que o rei Henrique II mandara construir naquele local em homenagem ao santo que ele mesmo mandara assassinar.
Todas as lendas associadas à Gisors vinham temperadas por saborosas intrigas políticas e apimentadas questões amorosas. Uma delas era a de que esse olmo fora plantado quando o rei Henrique II, Plantageneta, e o rei Luiz VII, Capeto, fizeram um acordo para por fim a uma longa guerra que os dois países vinham travando pelo fato do rei Henrique ter roubado a esposa do rei francês, a famosa Leonor de Aquitânia. O acordo foi selado pela promessa de casamento entre o príncipe inglês Ricardo, então com um ano de idade, e a princesa francesa Margarida, com seis meses. Enquanto esperavam que as crianças crescessem e o casamento pudesse ser realizado, a fortaleza do Gisor fora entregue à administração do Templo, já que este fora o fiador desse acordo. Mas essa paz logo foi quebrada e dois reinos voltaram às hostilidades. Outro acordo logo foi celebrado anos depois, desta vez opondo o rei Henrique II e o então jovem rei francês, Filipe II. desta vez pela promessa de casamento entre o prícipe Ricardo, herdeiro do trono da Inglaterra e a princesa francesa Alice, meia-irmã de Filipe. Mas, segundo as más línguas, o jovem príncipe inglês gostava mais do irmão da princesa, ou seja, o rei Filipe II, com quem teria tido um caso nos anos em que os dois lutaram na Terra Santa durante a segunda cruzada. O casamento não se concretizou, pois o então rei Ricardo, que assumiu o trono inglês após a morte do pai, Henrique II, preferiu casar-se com outra mulher, a princesa Berengarda de Navarra. E assim, os conflitos entre as duas nações iam e vinham, ao sabor de muitas intrigas e fofocas. E no meio delas sempre a Ordem do Templo a mediá-los.
      A própria situação em que agora estava envolvida a Ordem do Templo tinha muito a ver com esse ambiente de intrigas, traições, ambiguidades e ignorância que o sistema político e social da cristandade feudal mantinha, e a própria Igreja de Roma fazia questão de reforçar com sua filosofia obcurantista e retrógrada.
      Saint’Clair sabia que o “corte do olmo” nada tinha a ver com as vicissitudes políticas criadas pelas duas casas reais em sua eterna discórdia. Na verdade essa expressão estava ligada à um episódio somente conhecido pelos irmãos do chamado “Circulo Interior”, ou seja, um pequeno grupo de cavaleiros que haviam atingido os mais altos escalões da Ordem e comungavam de informações secretas e exclusivas do círculo a que pertenciam. Eram poucos o que atingiam esse status dentro da irmandade, e este nunca passara de trinta e três cavaleiros. Saint’Clair era um deles.  
      Essa expressão representava, na verdade, uma ginada de cento e oitenta graus na vida da irmandade. Simbolizava a criação, dentro da Ordem, de uma seita de cavaleiros “especiais”, que teriam como missão a guarda e a defesa dos mais importantes tesouros da Ordem, constituída pelos seus documentos secretos, suas relíquias e principalmente pela prática da doutrina interior da irmandade, aquela que agora estava sendo exposta pelos ministros de Filipe, o Belo, e causando os constrangimentos que a Ordem enfrentava então.
      O “corte do olmo” foi a ruptura entre a doutrrina professada pela Ordem e a que era defendida pela Igreja de Roma. Acontecera justamente ali, em Gisors, em algum momento após o castelo ter sido entregue à admistração templária. Trinta e três cavaleiros, entre os quais o então grão-mestre geral do Templo, Robert de Creon, e os três monges-cavaleiros encarregados de zelar pela praça, Robert de Piron, preceptor do Templo em Saint-Malo, Othon de Saint Omer então mestre-visitador de França, e Richard de Hastings, então grão-mestre da Ordem para a província de Inglaterra, presidiram a seção na qual, em sua doutrina interna, a Ordem se afastava dos cânones pregados pela Igreja de Roma, que na visão desses cavaleiros havia ser provado falsa, injusta e manipuladora. Nessa ocasião o Templo deixou de ser uma seita de monges guerreiros, fundada e dirigida exclusivamente para a missão de proteger as conquistas cristãs na Terra Santa, para se tornar, externamente, uma organização multi-nacional com interesses econômicos e políticos em toda a cristandade, e internamente uma seita praticante de uma doutrina dissidente da Igreja.
     Dali para a frente a Ordem se concentraria, na prática, em consolidar seu poder politico e econômico nos reinos europeus e espiritualmente em desenvolver sua própria doutrina, a verdadeira doutrina que Jesus Cristo havia ensinado aos seus discípulos.  E principalmente, o “corte do olmo” coincindiu com a criação, dentro da Ordem, do chamado “Circulo Interior”, que na verdade, representava uma organização fechada e secreta, com crenças, rituais e objetivos que iam muito além daqueles para os quais a Ordem fora criada.
    Naquele momento em que a tropa templária para lá se dirigia, acompanhando os carroções carregados com feno ocultando o seu verdadeiro conteúdo, o castelo de Gisor era a sede da preceptoria da Normandia, administrada por Godofredo de Charney, o mais íntimo amigo e aliado de Jacques de Molay. Era pois, o lugar ideal para acoitar, provisoriamente, o tesouro da Ordem, enquanto o destino final dele não fosse decidido.   
     Guilherme de Saint’Clair, comandante da esquadra templária, membro do Círculo Interno Superior, era, daquele momento em diante, o responsável pela sua guarda e segurança. Uma missão que lhe dava calafrios e contrações no estômago toda vez que pensava na responsabilidade que fora colocada sobre suas costas. Dela dependeria, talvez, a sobrevivência da Ordem. Por isso ele teve aquela sensação de esmagamento no seu peito, em baixo da cota de malha, quando, ao passar e frente à capela de Santo Tomás Beckett, ali construída pelos pedreiros da Ordem, leu a inscrição que encimava o seu frontispício: terribilis est locus ist. Sem resistir à atração que a inscrição lhe provocava, freou o seu cavalo em frente ao arco em forma de ogiva e ficou, por um momento, a meditar.  
     Enquanto se persignava, olhou para cima e contemplou, demoradamente, a ilustração que acompanhava a frase latina. Era uma ilustração representando a Árvore de Jessé, símbolo da tribo de Israel e sua misssão no mundo. Ela simbolizava também o sonho que o patriarca Jacó tivera em Betel, no qual ele viu anjos subindo e  descendo uma escada, gravada em alto relevo, ali posta pelos maçons que a construíram, para dizer, a quem tivesse olhos para ver e sensiblidade para entender, que o caminho para o ceú é uma escada que se sobe, degrau a degrau na vida, pela prática das verdadeiras virtudes que fazem um homem santo. Nada tinha a ver com as pregações que levaram a ele e seus irmãos da Ordem para a Terra Santa lutar pelos princípios de uma religião que, na prática, a própria Iggreja contrariava no seu dia a dia. Nem por um Deus, que eles agora sabiam, tinha sido apenas e tão somente um homem. Um grande homem, um profeta, provavelmente um rei, mas tão somente isso.
      A Escada de Jacó. A Árvore da Vida, o sonho de um caminho justo e perfeito que pudesse levar o homem para o céu. De certo aquele não era o caminho ensinado pela Igreja de Roma. Por isso a Ordem “cortara” seus laços espirituais com aquela Igreja e começara a praticar, intramuros, a sua própria doutrina.
       Saint’Clair persignou-se, suspirando fundo. Ele  sabia que o caminho tomado pela Ordem não tinha volta. E que o Templo teria que ser forte para não ser novamente derrubado. Olhou novamente para a inscrição e pensou o quão terrível era, de fato, aquele lugar, pois fora ali que a irmandade dera o passo fatal pelo qual ele e seus irmãos estariam, em breve, sendo caçados como hereges, traidores, conspiradores e criminosos da pior espécie.

(do livro Templários, os Mosnges Malditos- no prelo)