Ser um Autor

Ninguém pode imaginar quando vê um livro na livraria, com cheiro de novo, o quanto de trabalho, de frustração, de insônia, de crise de inspiração, ou de transpiração ele contém. Não existe nada pior para um autor do que enfrentar uma página em branco, uma após a outra, sem conseguir escrever sequer uma linha. Às vezes um copo de uísque ajuda a inspiração, mas não só seu efeito dura pouco tempo, como também a releitura sóbria no dia seguinte não encontra na prosa os grandes méritos que parecia conter.

A página em branco é o vínculo de solidariedade entre os escritores iniciantes, ou desejosos de iniciar uma carreira literária. Escrever um livro é um obsessão, o resultado de uma necessidade imperiosa e irresistível de comunicar alguma coisa importante numa forma que seja ao mesmo tempo eficiente e agradável. Cabe ao escritor escolher a melhor forma, e essa necessidade de escolher causa grande angústia. Em todo caso, é preciso que o autor tenha alguma coisa para dizer. Se não lhe ocorre nada, é difícil escrever. É difícil, muito difícil escrever se são muitas as idéias, pois umas atropelam as outras e nada sai muito claro. Mas não é só ter o que dizer, mas como dizer. De fato, existe mais de mil maneiras de representar algo que aconteceu, e, muitas vezes, o escritor se perde nessa escolha.

Lembra-se a propósito do personagem de Joseph Grand, do romance “A Peste” de Albert Camus, que não consegue ir mais além do que a primeira frase de seu romance: ""Em uma bela manhã de maio, uma elegante amazona percorria montada numa égua alazã os caminhos floridos do Bosque de Bolonha." Ao final do romance, Grand conclui sua frase simplesmente retirando todos os adjetivos. Suponho que teria ficado assim “Numa manhã de maio, uma amazona, montada em uma égua percorria no meio das flores os caminhos do Bosque de Bologna.” Não há dúvida que os adjetivos são as cores da liguagem escrita, e confesso que prefiro a primeira versão. Todos os escritores já se identificaram um dia com Joseph Grand, quando não conseguem progredir além da primeira frase, do primeiro parágrafo ou da primeira página. Esses são os desafios que se colocam diante de qualquer autor. Há sempre consolo quando outros autores, e mesmo muitos de renome, compatilham essa angústia. Supõe-se que até Camus compartilhou as angústias de seu personagem.

Muitos escritores em potencial sonham em reproduzir a frase inicial de “Cem Anos de Solidão: “Muito anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de lembrar aquela distante tarde em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Pergunto-me quanto tempo Joseph Grand levaria para chegar aí. O escritor estadunidense Stephen King, em entrevista ao periódico “The Atlantic”, opina sobre a importância da frase de abertura: "uma linha de abertura deve convidar o leitor para começar a história. Deve dizer: Ouça. Venha aqui. Você quer saber sobre isso." Depois completa seu pensamento, ao dizer que a frase de abertura “não é apenas um caminho para o leitor; é também um caminho para o escritor...” Por isso mesmo, não se deve submestimar os motivos da profunda preocupação de Joseph Grand.

Adorável também é a personagem “”Alice Sycamore” do filme “Do Mundo Nada se Leva”, que resolveu começar a escrever romances no dia em que entregaram por engano na sua casa uma máquina de escrever. Na sua estória, levou o personagem de seu romance para dentro de um monastério, mas não sabia como sair. E começa a pedir sugestões a todo mundo. Seu pai , familiarizado com todas suas estórias, diz: “lembre-se como você conseguiu sair daquela prisão!” O fato é que tem sempre uma saída, que os escritores iniciantes muitas vezes tem dificuldade de enchergar, deixando seus personagens presos num imaginado monastério..

Na verdade sempre gostei de escrever. Minhas primeiras estórias tem semelhança com a a personagem do “Do Mundo Nada se Leva”. Comprei um belo bloco de papel porque achei atraente. Depois vi que tinha que fazer alguma coisa com ele e comecei a escrever estórias de guerra que deveriam ser terrivelmente ruins. Só mostrei para minha prima, que disse ter gostado do que leu. Mas disse isso, claro está, porque não me queria decepcionar

George Well, em “Why I write” , afirma que uma pessoa escreve por quatro diferentes motivos:egoismo completo, entusiasmo estético, impulso histórico e propósito político. O primeiro para despontar na sociedade ou na posteridade. O segundo para criar algo belo, uma poesia ou uma estória bem ritmada. O terceiro, para fazer prevalecer a verdade dos acontecimentos. O último, como diz ele, pelo desejo de impulsionar o mundo em uma certa direção. George Well se diz mais motivado pelos três primeiros motivos. Mas, se eu tivesse que opinar, diria que ele, um escritor que pode ser considerado como essencialmente político, é mais motivado pelo último.

Há escritores concentrados em idéias, na estética ou em fatos, e ainda outros que convivem com as três coisas. A escritora norte-americana, jornalista, autora de romances, peças teatrais e roteiros, Joan Ddidion, confessa sua incapacidade de lidar com o mundo abstrato. Quando lê sobre a dialética hegeliana, afirma em artigo também intitulado “Why I Write” , que sua atenção é facilmente desviada para uma árvore de pera no jardim, ou seja, para o mundo tangível. Para mim, isso serve de consolo, porque o mundo de idéias, para ser abordado, exige um engajamento absoluto, uma atitude de paixão por ele, que nunca tive nem nunca vou ter. Ou seja, sem uma facilidade de compreensão do mundo abstrato, não há possibilidade de intimidade com ele.

Talvez se possa comparar um livro a uma pintura. No começo é tudo igual, uma página em branco ou uma tela em branco. O livro precisa de palavras para compor uma narrativa, uma crônica ou um poema. A tela precisa de traços e cores. O quadro tem uma moldura e livro uma capa. Tanto o livro como a pintura podem buscar o simples objetivo estético, com uma técnica sofisticada, ou podem transmitir uma mensagem, em que a estética assume papel secundário. O que há em comum entre os dois é a necessidade de propósito, inspiração e criatividade. Os adjetivos são as cores mais fortes e brilhantes, dão mais vida à estória; os verbos são a imagem do movimento; os advérbios sublinham os sentimentos, indicam intensidade espaço e tempo.

Mesmo que não confesse, todo escritor tem medo da página em branco. Mas além do medo, uma grande vontade de comunicação, nata no ser humano, que impulsiona desde sempre a criação literária.

O escritor precisa de inspiração; é muito difícil, ou impossível criar do nada. Muitas vezes a inspiração vem de outra obra de arte. Cópia? Pode ser. É plágio. Reproduzir o que está escrito ou uma idéia, sem citar a fonte. Mas pode haver variações. Essas são possíveis, não são cópia nem plágio. Variações do original são criações novas.

Quem já preencheu a página em branco, parabéns! Mas é importante ter em mente a frase do escritor francês Alain, para quem "enquanto o escrito não vira um livro (e eu diria, e ser publicado), ele é impotente".

Ugly
Enviado por Ugly em 05/04/2018
Reeditado em 04/09/2022
Código do texto: T6300602
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