As Faces Ocultas da Embriaguez

As Faces Ocultas da Embriaguez

(O bêbado existencial)

[uma visão analítica, pelo olhar literário]

Um sujeito foi perguntado porque vivia sempre bêbado. Ele respondeu: “porque eu desaprendi a ser sóbrio. ”

Engana-se quem pensa apenas que a bebida é a única responsável por isso. A vida se encarregou primeiro da sua embriaguez. Uma trajetória de frustrações, de humilhações, de desajustes de toda ordem, elementos estes que somados, empurraram o homem para o abismo do álcool e de outros etilismos sociais e afetivos menos perceptíveis, por assim dizer. Ele, porém, não está sozinho. Tanto do ponto de vista quantitativo, quanto do ponto de vista qualitativo, este último, objeto destas minhas linhas, existe uma legião de embriagados pelo planeta afora.

A bebida é apenas uma das suas formas: a mais representativa, dada a concepção original do termo embriaguez. Existem outras menos etílicas, contudo, mais insidiosas, metafóricas ou reais, que transformam a existência de uma pessoa num lamentável espetáculo de torpor perante a vida e os viventes.

Rejeição, solidão, depressão, invisibilidade social, indiferença, todas estas e tantas outras de mesmo teor, embriagam e acarretam danos mais severos do que sequer pode imaginar uma parcela pretensamente ajustada e feliz das pessoas. Não agridem o fígado, propriamente. Atacam a dignidade, a auto estima, a vontade de viver, ou, ao menos, de sobreviver, nesta procela que chamamos de sociedade.

Esta grande enfermidade existencial, retira o homem da evidência das relações sociais, tornando-o não visível aos olhos dos “senhores da razão”, que sacam cotidianamente da algibeira de suas conquistas seus códigos de conduta e manuais de instruções para uma vida realizada.

Os ditosos e “perfeitos” cidadãos só os veem, os bêbados existenciais, quando é para pô-los na conveniente berlinda. As opiniões e pontos de vistas desses são absolutamente descartáveis por aqueles. Quem vai dar crédito a um bêbado existencial, mergulhado na escuridão da solidão e recluso do convívio com “os normais”? Se o ébrio tiver uma questão relacional envolvendo algum ser “socialmente ajustado”, devidamente protegido pelos seus “indestrutíveis” telhados de vidro, e amparado pelo seu exército particular e solidário de amigos e familiares, este indivíduo, certamente, terá a razão, afinal o bêbado, ah!, o bêbado existencial, é um fracassado, incapaz de produzir qualquer tipo de argumento que seja minimamente considerado numa avaliação qualquer, por mais superficial que ela venha a ser. O veredicto já foi dado. É bêbado existencial? CULPADO!!!

Muitos se esquecem que o bêbado da existência não morreu, está em hibernação, num estágio de observação comportamental, vendo tudo e, principalmente, todos. Ele bem sabe que é o maior responsável pela sua própria situação de momento ou de tormento, sem dúvida. Em sã consciência ele nunca a nega ou mesmo a delega. Todavia, também carrega o fardo da incompreensão e da crítica dos “perfeitos”. Enquanto é útil sob vários aspectos, é tolerado e até mesmo compreendido, em alguma dimensão deste sentimento. Não parece ser tão invisível aos olhos interesseiros daqueles que o cercam. Porém, quando o veio se exaure, é sumariamente descartado. Alguns se compadecem e querem ajudá-lo a viver a vida que eles gentilmente moldam para ele. Se possível, banham o seu encéfalo todos os dias, pois, a despeito da solicitude, não aceitam suas idiossincrasias, como se tal manifestação não fosse a expressão subjetiva de todos, indistintamente.

Nesta atmosfera, o sujeito, bêbado existencial, para se preservar se encasula, construindo uma espécie de bunker auto afetivo. Não tem repulsa por ninguém, acreditem, apenas não pulsa mais a veia do convívio social, pelo menos de forma mais contundente. Misantropia? Talvez, numa escala ajustada à área interna do seu casulo. O bêbado existencial, a exemplo dos não existenciais, ébrios ou não, por certo tem seus momentos de tristeza, mas quando eles aparecem ele já não verte mais as líquidas lágrimas que os olhos descortinam. Estas já se secaram pela aridez da sua vida. Quem assume o protagonismo do pranto é a sua alma. O choro é silenciosamente oculto nas instâncias da sua solidão. Como pretende demonstrar, modestamente, um pensamento meu: “O choro mais doído é aquele em que as lágrimas não tiveram a oportunidade de escorrer pela face. ”

O bêbado existencial não está necessariamente sozinho em todas as ocasiões, mas em todas elas, certamente, em alguma proporção, mínima que seja, está solitário. Muitos podem dizer: “mas ele não interage com ninguém”. É plausível admitir como verdade tal afirmação, contudo com o devido grau de relativização. Algumas vezes, ele bem que tenta a protocolar interação social, mas as “pessoas perfeitas” exercitam perfeitamente, em suas mentes e reações, a ausência dele, na sua forma mais cruel, já que a pior ausência é a presença ignorada.

Curiosamente, tal bêbado costuma comunicar bem com animais, notadamente os de estimação. Gosta até de passear com os cachorros, nutrindo, quem sabe, um desejo inconfessável de ele, o solitário, ao passear com o cão, depositar no animal a redenção da sua incapacidade de interação social.

Devo asseverar, que apesar do avançado das linhas, nunca é tarde para deixar claro que não estou advogando em favor da causa dos bêbados da existência, nem, tampouco, em causa própria. Os meus inebriamentos, os curo, no bar das estradas, as literárias, obviamente, bebendo e sorvendo aquilo que a minha pena e a minha lira podem me proporcionar. Apenas lanço uma luz no âmago da questão, para que esta mesma luminescência oriente um olhar mais de compaixão, de compreensão e menos de inquisição, por parte dos que me leem.

Quero ainda registrar, antes do meu encontro com o impaciente ponto final deste texto, que esta abordagem, acanhada tentativa psicoliterária de captar a gênese dos desvalidos de maior agasalhamento afetivo, não pretende esgotar um tema tão complexo e mais comum do que supõe a nossa indiferença. Este ensaio, como a própria denominação do gênero traduz, apresenta apenas algumas argumentações para uma reflexão e aprofundamento da questão, por aqueles que assim o quiserem.

Dito isto, despeço-me, com um resgate das duas primeiras linhas deste escrito, as quais reproduzo, novamente, desta feita com uma adequada adaptação:

Um sujeito foi perguntado porque sempre vivia existencialmente bêbado. Ele respondeu: “porque eu desaprendi a ser feliz. ”

© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves

24 e 25 de maio de 2018

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Leonardo do Eirado
Enviado por Leonardo do Eirado em 25/05/2018
Reeditado em 30/06/2018
Código do texto: T6346161
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