A Dona de Casa

Na cidade do R., o inverno é muito bonito. Dias de sol, sem nuvens, e temperaturas agradáveis, como uma primavera européia. Isso se dá em forte contraste com o verão, sempre ensolarado, mas com muitas chuvas, e, sobretudo, umidade e muito calor. Qualquer movimento deixa a pessoa coberta de suor. Mas o calor carioca não era o pior problema da família.

A dona da casa era bastante alerta. A única menina junto a dois varões, com reluzentes cabelos castanhos claros e olhos azuis, muito querida por todos. E assim cresceu cercada de atenções e mimos, que lhe deram profunda confiança em si e sólida autoestima. Originária de uma família tradicional da Paraíba, ainda abastada, mesmo depois que as diversas gerações anteriores dilapidaram um respeitável patrimônio, que chegou a incluir duas fábricas de sabonetes, uma usina de açúcar e vários empreendimentos comerciais. Agora para o pai da dona da casa só restara uma farmácia, bem abastecida e de impecável reputação, e alguns imóveis espalhados pela cidade em que investira, e que proporcionavam uma boa renda de aluguéis. A dona da casa quando menina era conhecida por ser muito expansiva e brincalhona, “moleca” como se dizia então, e ninguém se atrevia a censurá-la. Assim, desenvolveu uma autoridade nata por detrás de seus olhos azuis e não admitia nenhuma crítica de seus familiares, e, por extensão externa de sua personalidade, de ninguém. Aos poucos, como centro das atenções foi-se achando a melhor das pessoas, pronta a encontrar mil defeitos em qualquer um. Era puritana e tinha muito orgulho disso, como se as divindades a tivessem encarregado de cuidar da moral de toda a sociedade.

Tinha poucas amigas, A..., R..., Ru...., H...., AR. ,L..., . H. Tinha medo de elevadores e de baratas, e estava sempre com um Hollywood sem filtro na mão, e , de tanto fumar, morreu com efisema. Era magérrima e não devia pesar mais de 65 kilos, cabelos curtos pretos com mechas esbranquiçadas. Quando chegava na casa da dona de casa, telefonava da portaria para que um dos filhos viesse escoltá-la na perigosa viagem entre o térreo e o 9ºandar. Às vezes ficava para dormir na casa da dona de casa, mas, se via uma barata no chão, recusava-se a dormir até que não só alguém a matasse, mas também apresentasse a ela a prova da barata morta. Dizia-se entre os filhos da dona de casa, não sei se faziam, que o negócio era guardar uma barata morta numa caixa de fósforos para mostrar a ela, quando necessário. Mas era uma mulher muito interessante e cultivada e usava óculos que lhe davam uma aparência quase intelectual., e, como ex-aluna do colégio Sion no R, falava perfeito francês. Al, de seu lado, era alta e magra, cabelos muito muito brancos e lisos. Já beirando os setenta, por conta de problema na coluna usava uma bengala, que, para ela era apoio para andar, e arma que, sem muito pudor, ela não deixava dúvidas de que poderia usar. Quando discutia com alguém, em vez de fazer largos gestos com as mãos, brandia a bengala de forma intimidatória. Enfermeira aposentada, tinha também trabalhado na dublagem de filmes, pois tinha uma voz maravilhosa, sedutora e quase juvenil. Com essa voz, fazendo-se de uma linda mulher de vinte anos, conseguia resolver muitos problemas difíceis por telefone, desde que tivesse um homem do outro lado da linha. R., irmã de Al. , e também enfermeira aposentada, era mais retraída e discreta, quase tímida. Ru., também pessoa muito interessante, de boa conversa, e o cigarro sem filtro sempre na mão explicava os dentes manchados de nicotina. Funcionária pública aposentada do IAPETEC, gostava muito de discutir política, e estava sempre comentando os últimos desenvolvimentos e defendendo seu ídolo preferido no Congresso, quase uma paixão cega, para quem contribuía com o pequena parte do magro dinheiro proveniente da aposentadoria. Ar. era uma loira que devia ter sido muito vistosa na mocidade. Mãe solteira, tinha uma filha de sete anos, o que demonstrava que até pouco fazia os homens perderem a cabeça, e sobretudo estes a dela. Mas agora estava com excesso de peso, e rosto marcado pela idade, e só o cabelo pintado de loiro brilhante dava falsa impressão de juventude.

Todas eram o que se chamava então de “mal amadas”, sem marido, namorado ou mesmo admiradores platônicos. Todas vivendo de magra aposentadoria, se declaravam “lisas, lesas e loucas”. De um modo geral, obedeciam a um padrão de comportamento: estavam sempre em volta da dona da casa, como satélites em volta de um planeta, fazendo-lhe companhia quando ela necessitava. Até porque para falar mal e criticar os outros é preciso um par de ouvidos que não sejam os próprios. A dona de casa gostava das amigas perto dela todos os dias, em geral, uma de cada vez. Era muito possessiva em suas amizades. Algumas dormiam na casa dela e continuavam a fazer companhia no dia seguinte. Muitas vezes, ficavam longos períodos na casa da dona de casa, quase como agregadas à família. E a dona de casa sempre falando mal de quem não estava. Como se Deus tivesse finalmente produzido uma criatura perfeita, com poder de julgar a todos. Tinha sempre de ser o centro das atenções. Assim era a dona da casa.

O chefe da casa, importante funcionário público, estava sempre sentado na cadeira de balanço, com seu caximbo na boca, óculos que davam uma aura de inteligência, careca reluzente, lia o seu jornal ou seu livro, parecia um mar de tranquilidade nunca pertubada por nada. Qualquer ameaça de pertubação era derrubada com uma profunda aspiração no pito. Quando a dona de casa resolvia se queixar das pessoas, e do mundo, na hora de deitar o chefe da casa, que tinha um tímpano furado num ouvido, deitava a cabeça no travesseiro sobre o ouvido bom e logo adormecia. O calor abafado do R. era sentido por toda a família com intensidade. Às vezes não era possível pegar no sono, tanto incomodava. O chefe da casa, que dizia gostar muito de frio, e que era “sueco”, mesmo moreno como era, passava o verão, sentado na cadeira de balanço lendo um livro ou o jornal, com uma ventarola no colo, com que se abanava de tempos em tempos. Dormia às vezes sem a camisa do pijama, tão agudo era o calor, mas nunca viajara de férias para um lugar mais fresco durante o verão, nem pensara em comprar um ar-condicionado para ele e a família gozarem de maior conforto. Férias ? A família podia ir à praia, a um quarteirão de distância, mas nunca viajar, ir a uma casa de campo, nem mesmo nos fins de semana. A inércia do chefe da casa era total, e não suspeitava que existisse um mundo por detrás das folhas do jornal ou do livro, ou da tela da pequena televisão em preto e branco. Apesar de católica, a família sob sua direção convivia todas as características da rigidez puritana do protestantismo. Mas talvez fosse pão-durismo mesmo.

Os filhos, dois meninos uma menina, viviam sempre temerosos de contrariar a mãe. Cada um vivia meio isolado em seu quarto, mas, na hora das refeições, o encontro de todos era inevitável. Sentada na cabeceira da mesa, de costas para a porta da cozinha, comandava o almoço ou o jantar. Nessa hora, o melhor era evitar a qualquer preço provocar uma discussão. A senhora dona de casa liderava a conversação, enquanto todos os demais escutavam calados, inclusive o marido que falava muito pouco, como se cada palavra custasse um centavo de imposto. A televisão ligada no canto ajudava bastante a todos a surportar aquele momento difícil da refeição. A voz do locutor informando sobre as novidades do dia servia de pano de fundo, e distraía a todos, enquanto a dona de casa fazia longos comentários sobre seu prato preferido, ou seja, a briga familiar em torno do inventário de seu pai, em que havia resistido como uma fortaleza ao ataque dos irmãos sedentos em se apropriarem da maioria dos bens do falecido. O inventário estava há tempo concluído, mas relembrar a rixa, como um general recordaria o desenrrolar de uma batalha que venceu, lhe causava especial prazer. A história, que não era novidade para ninguém na sala, obedecia a uma lei não escrita do eterno retorno. Nada traz à tona o pior de cada um do que um inventário, e esse caso, que não era exceção, foi um episódio do qual nenhum dos participantes se orgulhava. Só ela mesmo. Decerto, já preparava o arsenal para o inventário do marido, que antecipava morreria antes dela. Talvez o maior desgosto que tivesse fosse não participar do próprio inventario quando morresse. O inventário era também o prato preferido de todos os demais em torno da mesa, por que deles desviava da família próxima o foco do mau humor crônico da dona da casa.

Mas era comum que um dos filhos virasse alvo da dona da casa até mesmo por pecadilhos menores. Logo vinha uma ladainha quase infindável de queixas e acusações. Queixa-se também de eventos pretéritos, que ocorreram muitos anos atrás, como o dia em que um dos filhos arranhou um de seus discos preferidos, contrariado, porque queria ver televisão. Então, a conversa sobre o inventário era um alívio, e bastava desligar da conhecida narrativa e concentrar a atenção no noticiário. E isso tudo tinha uma história e os filhos reagiam como o cachorro de Pavlov, pois o discurso crítico de hoje era associado aos castigos físicos no passado, e criava um profundo mal-estar.

Quando pequenos, todos apanharam muito. Sempre assim: um copo quebrado, uma resposta malcriada, uma sopa derramada sobre a mesa, a luz que deixou acesa no quarto, a pasta de dente expremida no meio ou uma fruta guardada na geladeira, e outros motivos fúteis. O castigo podia ser desproporcional. Um surra com cinturão ou galho goiabeira, e, pior, abuso verbal, atitude agressiva e palavras desenhadas para diminuir a pessoa; "Você não presta, não serve para nada". Sem contar com a promessa de “outra surra quando seu pai chegar”, o que criava intensa ansiedade na criança, até voltar do trabalho o pai, que, normalmente, não tinha disposição para ministrar justiça a sangue frio.

Por causa de tudo isso, os filhos, sem instrumentos e impotentes para uma revolta, fantasiavam com uma fuga de casa. Revolta: a fantasia contemplava até a eventual morte dos pais; não que em qualquer momento tenham tido planos de matá-los, mas pensavam longamente no Deus e o que poderia fazer a respeito. A dona de casa tinha grande ciúme de sua filha mais velha, talvez porque fosse muito inteligente, até brilhante na escola, intelectualemnte superior. Criou uma rixa com ela que abalou os aliceres da família e criou uma ferida que nunca cicatrizou. De sua filha caçula, queixava-se que um dia, ainda de colo, infectou-a com caxumba. Um relacionamento em que “o inferno são os outros”, no caso, os outros era a dona de casa. É normal que uma mãe seja autoritária, mas ela passava dos limites aceitáveis para uma autoridade materna. É quando o ressentimento não vai embora, mesmo quando se quer passar uma borracha no passado. A dona de casa era muito habilidosa em jogar os filhos uns contra os outros, fazer pequenas intrigas que criavam grandes ressentimentos. No final, depois de adultos os filhos mal se falavam e nutriam profunda rivalidade. Não podia haver outro resultado.

Mas a dona de casa sempre se procupou só com ela mesma, nunca com mais ninguém. O que aconteceria com esses filhos depois de adultos não importava realmente para ela. Quando encontramos na vida um indivíduo complicado, doentiamente tímido, desonesto, mal -caráter, ou com fobia qualquer, não pensamos porque ele se tornou assim; a sociedade não entra nesses detalhes. Ela julga e condena. Ele poderia ter escolhido bom, mas escolheu ser ruim. E ponto final. Mas como poderia esse indivíduo desafortunado ser diferente com mães feito a dona de casa.

A dona da casa gostava às vezes de falar sobre a vida dos parentes e amigos. Falava também da vizinha, uma loura alta, forte, e muito descontraída e comunicativa. O marido, um político veterano e com mais de setenta anos, era baixo, magro e raquítico. Comentava como ela abraçava seus filhos varões em encontro fortuito no hall do elevador. Apelidou-a de “Abraça-me Forte”, e acrescentava que o marido dessa “não dava mais conta”. Sobre o cunhado, advogado, que julgava incompetente, costumava se gabar de que resolveu o impasse sobre ação de despejo do inquilino de seu apartamento, conduzida pelo cunhado, que não exergou, em sua opinião, as diabrices do locatário que tentava protelar o desfecho da ação. Sobre os sobrinhos, e depois os netos, não deixava de criticar a falta de educação e as idéias excessivamente liberais. Na realidade, porque não davam suficiente atenção a ela. E por que dariam ?

Ridicularizar as pessoas era seu passatempo preferido. Com isso, podia valorizar-se aos olhos dos outros. Um de seus alvos prediletos era um amigo de seu marido já idoso, dos raros que o visitava com frequência. Um dia dirigindo-se a ele chamou-lhe acidentalmente pelo apelido de “caxinguelê”, que lhe dava pelas costas. O pobre não entendeu que era com ele ou fingiu não entender. Tinha recebido como herança de seu pai um pacote de ações que lhe rendiam magros dividendos, mas que pelo testamento estava proibido de vender. Várias gestões junto à justiça para vender as ações foram infrutíferas. Assim era rico de capital mas vivia quase como pobre, impossibilitado que estava de se desfazer das ações para optar por melhores investimentos. Careca, com um par de fios de cabelo no meio da cabeça, óculos e guarda-chuva que não abandonava nunca, mesmo em dias de sol, era o retrato da infelicidade.

A dona de casa foi uma vez a um cardiologista, que elogiou o seu coração: "a Senhora tem um coração fortíssimo, deve ter amado muito na vida". E a resposta dela, que surpreendeu o médico: "Ora, nunca amei niguém". Reinava portanto do alto de seu ego. Mas nada disso dura. Mas foi envelhecendo e perdendo aquele antigo vigor, afetada por doenças e achaques diversos. Passou a ter consciência de sua fragilidade, e, pior, foi deixando de ser centro das atenções. Tudo passa, como gravado no anel do Rei David. Brigou com uma ou outra amiga de plantão, que não eram “perfeitas” no seu severo julgamento, mas que na realidade ficaram cansadas de se submeter aos caprichos da dona de casa. As outras que não a abandonaram foram morrendo. Então, as amigas de plantão não foram substituídas. O marido da dona de casa, o importante funcionário público, aposentou-se, e, depois de longa doença, morreu, tendo até deixado de merecer seu respeito: dizia a todos que ele também não prestava, tinha tido uma amante, etc... A rixa com os irmãos, que faleceram, desenvolveu-se em rixa com os sobrinhos, e antipatia pelos netos, que não a queriam ver nem pintada. Dois filhos casaram, mas ela se opôs aos matrimônios. E o que ela tinha contra com isso ? Nada realmente, só a frustração de não ver o mundo se desenvolver conforme sua vontade. O terceiro filho resolveu morar sozinho. No final, todos os filhos tinham alguma problema psicológico. Como último recurso para essa solidão forçada,a dona da casa jogava na loteria, na esperança de que um prêmio de milhões traria de volta os filhos e ela continuaria a ter o prazer de dar as cartas. O dia de inverno, seco, com temperatura amena, muito sol, estava muito bonito, mas indiferente ao sofrimento humano. E nesse dia, com o peso dos muitos anos vividos nas costas, e precisando da companhia amiga de alguém, ela acorda sozinha, com fortes dores nas juntas, sem muitas perspectivas de vida. Foi demasiadamente amada como filha, e muito querida como mulher, mas nunca benquista como mãe.

Ugly
Enviado por Ugly em 29/05/2018
Reeditado em 04/09/2022
Código do texto: T6349743
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.