A Invisibilidade Virtual Nossa De Cada Dia

A Invisibilidade Virtual Nossa de Cada Dia

(Uma visão analítica, pelo olhar literário)

“A gente não quer só comida

A gente quer comida

Diversão e arte”

(Titãs, “Comida” - 1987)

Paulo Orestes Eustáquio Tavares Andrade, antes de ser um nome pomposo ou trabalhoso para os preenchedores de cadastro, sua identificação civil guarda um acróstico significativo, substanciado pelas letras iniciais: P-O-E-T-A. Essa é decerto a face mais aparente, porém há uma outra, oculta em razões de representação nominal materna e paterna, agregada ainda por pesquisa genealógica empreendida pelos próprios genitores, e também por homenagem constituída, ainda nos exórdios do relacionamento a um amigo daqueles que viriam a ser seus pais, os do Paulo, obviamente.

O início desta narrativa, configura-se um pouco nebuloso, confesso, oferecendo uma indesejável substância para uma possível, ou provável, deserção do leitor. Desta forma, antes que tal barafunda do entendimento crie sustança e interdite a rodovia da leitura, a qual desejo que aqueles que agora nela estão trilhem até o fim, vou prestar alguns esclarecimentos necessários.

Paula e Orestes eram dois simplórios trabalhadores do campo, acostumados, pelo dever de ofício, a caminharem pelas estradas de barro que os levavam aos seus habitats agrários profissionais, em bom português rural, para a roça onde trabalhavam. Num desses dias de périplo caminhante, eis que se coincidem no trajeto dos seus passos e iniciam prosa amena, que evolui para conversa mais séria e que fecunda uma amizade. Novas e calculadas “coincidências” diárias de percurso, acalentam o relacionamento social e o conduz para uma relação afetiva: namoro, mesmo. As referidas caminhadas que antes eram pontuadas por mãos no bolso por parte dele e mãos na bolsa por parte dela, numa demonstração de sincero constrangimento, bastante comum aos mais humildes, cederam lugar agora ao entrelaçamento de uma mão masculina em uma feminina, ou como gostam os mais diretos na prosa romântica, passaram a andar de mãos dadas, exalando um amor ainda incipiente, mas já consistente. Nessas andanças enamoradas, de idas e voltas, dentro e fora do expediente de trabalho, diga-se, conheceram um amigo, o Eustáquio. Era um poeta dos bons, pelo menos para os padrões ruralistas, e costumava oferecer suas poesias ou de outrem aos destreinados ouvidos dos companheiros transeuntes. De tanto ouvirem o que não entendiam, mas que apreciavam pela simples “boniteza” das palavras, passaram a gostar da tal poesia e, sendo assim, combinaram que o futuro filho seria poeta e ponto. E assim decidiram. O nome completo da criança teria a seguinte formação: Paulo ou Paula, da mãe; Orestes do pai; Tavares e Andrade de um ancestral poético materno e paterno respectivamente, que só descobriram, com a ajuda do compadre caminhante e, é claro, Eustáquio em homenagem ao amigo poeta. Este ainda lhes explicou a ordem correta dos nomes para a formação do tal acróstico, que seria constituído pelas iniciais de cada nome, naturalmente um conceito difícil de ser tanto compreendido como pronunciado pelos apedeutos namorados enamorados. (). Os meses se precipitaram velozmente e, como era de se prever, Paula e Orestes se casaram e estreitaram ainda mais a amizade com o Eustáquio. Não tardou para que ela engravidasse, e depois de alguns meses, menos do que suporiam a inocência bucólica dos mais conservadores, nasceu um menino, a nossa personagem central, de nome, repito, Paulo Orestes Eustáquio Tavares Andrade, ou simplesmente Poetinha, apelido, sugerido pelo amigo fazedor de versos e deferido pelos enlevados pais. Foi nesta atmosfera que o Poetinha cresceu. Com o novo desfolhar das páginas do tempo, Poetinha com idade mais apropriada para o entendimento das coisas, tomou conhecimento dos pormenores da formação do seu nome e consequentemente, munido de uma pertença poética, estampada oficialmente na sua certidão de nascimento, e, existencialmente, na alma, introspectou ainda mais o desejo pelo ofício dos versos, das métricas e das rimas. Com a ajuda valiosa do seu “tio” Eustáquio, amigo já consolidado na família, aprimorou a arte e rebocou as paredes de suas construções poéticas com um verniz das palavras que conferia um brilho todo especial aos olhos e ouvidos do seus pais e do seu tio de coração, quando liam ou escutavam seus escritos, embora os primeiros ainda continuassem na obscuridade do conhecimento literário. Para o tio adotivo, uma certeza foi sendo cada vez mais pavimentada: o aluno brevemente superaria o mestre. Isso, no entanto, não configurava ao Eustáquio, razão de ciúme, inveja ou coisa que o valha. Pelo contrário: era motivo de orgulho. Embora sua poesia de veia campestre fosse marcada pela singeleza das palavras, a nobreza e a percepção de que tal gênero é passarinho arisco que gosta sempre de voar cada vez mais alto, prosperava sobre qualquer outro possível sentimento de menor valia, que o tio arranjado pudesse vir a ter. No entanto, nem tudo eram flores no jardim da adolescência do Poetinha. Sua refratária paixão pelos versos foi ganhando contornos preocupantes para os pais e até para o tio, que via inconfessavelmente em tal obsessão, uma reedição da sua própria vida: de um amante inveterado pelas estradas das letras, mas um fracassado nas estradas do amor real, físico, revés este que esculpira em sua vida uma solteirice irreversível. O menino de tanto amor que desenvolvera pela poesia, se esquecera de interagir com o mundo exterior, com os meninos e, principalmente, com as garotas da sua faixa etária. Com o perdão do trocadilho, ele era de menos conversas e de mais com versos. O Eustáquio, que não queria de forma alguma vestir o manto da culpa, afinal fora o principal incentivador, professor e lapidador do talento do sobrinho afetivo, tentou de todas as maneiras integrá-lo no meio social rural da região, mas todo o seu esforço mostrara-se inócuo. O que fazer, o que fazer? Pensavam os três adultos com ares e rugas de preocupação. (). Decorridas tímidas semanas, eis que a providência digital, tratou de oferecer uma alternativa bastante viável para a solução, ou pelo menos, remediação do problema. Chegara galopando nos fios e cabos da modernidade a tão esperada internet, e com ela, o advento da rede social pelas bandas largas e estreitas daquela região agrícola. A novidade atiçou a curiosidade de toda a gente jovem, filhos dos colonos, lavradores, roceiros e de outras categorias do populacho até então virtualmente desfavorecidas. O vilarejo que ficava a menos de 1 km de onde moravam, ganhou um espaço de convivência física e virtual, que eles os jovens e novos usuários aprenderam a chamar de Lan House, tal qual os meninos e adultos da cidade grande o faziam. Mesmo com a velocidade ainda reduzida, era possível, com alguma dose de paciência e várias outras de persistência, começar a interagir com esse mundo desconhecido que se lhes afigurava na tela do computador. Eustáquio com o perspicaz argumento de que as abelhas da rede social poderiam polinizar os versos do garoto para o mundo, conseguiu, deste jeito, convencer o Poetinha a navegar neste oceano de bits e bytes e conhecer pessoas, virtuais ou não, da sua idade, já que afluência juvenil na recém-inaugurada "lan house" predominava. Não é que o neófito gostou do negócio? Aliaria o útil ao agradável, na sua concepção. Passaria a divulgar seus versos por meio da rede social e também entre os seus vizinhos de computador na tal da “lan house”. Quem sabe até poderia arregimentar o coração desvalido de alguma possível poetisa carente, alvoroçou-se. Ledo engano. Ninguém se interessou pelos seus versos, tanto os interlocutores presenciais quanto os digitais. O tempo e a amarga experiência lhe ensinaram que a banda que tocava na internet, não compunha lirismos. Observara que meninas vestidas de minúsculos shorts e generosos decotes que realçavam seios e outras partes mais íntimas da anatomia feminina é que costumavam atrair comentários e os famosos “likes” e “curtidas” da comunicação digital. Da mesma forma, jovens com abdomens e bíceps definidos em academias, não literárias, mas de musculação também monopolizavam o jogo virtual, por parte desta mesma garotada do computador e da sala na qual estava. Por mais que ele primasse na confecção das poesias, além dos lascivos corpos há pouco mencionados, também as manifestações de ódio coletivo, emanadas pelos já conhecidos “haters”, fofocas do cotidiano, “selfies” indecorosas infinitamente repetidas em roupas sumaríssimas ou invisíveis, dentre outras amenidades eram o que canalizavam todos os tipos de atenção. Paulo Poetinha, decepcionado com a ordem natural do mundo artificial, após algumas incursões fracassadas na busca de um público, durante alguns pares de dias, resignou-se e retirou-se para o seu casulo poético, para tristeza do Eustáquio e dos seus pais. Só anos mais tarde, já adulto, ainda vivendo no campo, é que conseguiu desintoxicar-se do excesso de poesia, que lhe roubara a preciosa adolescência e o início da fase adulta. Desenvolvera alternativamente moderada afeição pelo pop rock nacional, também desembarcado naquele torrão. Gostava particularmente da banda Titãs, e de uma música, ou melhor, de um trecho da música deles, que sempre que ouvia na rádio cantarolava, cometendo um ato falho que não se sabe se intencional ou involuntário, como se fora uma constatação tardia em forma de "deja vu". O determinado excerto da canção, o mesmo que inaugura este ensaio, o agora homem-poeta, vacinado contra o vício poético, cantava à sua guisa:

“A gente não quer só curtida,

A gente quer curtida,

Interação e like. ”

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Desnecessário seria alongar-me muito mais nesta narrativa, já que a aquarela literária que sempre precede meus ensaios já pincelou, creio eu, com alguma propriedade o retrato que pretendo desenhar desta questão tão hodierna e facilmente perceptível: Os critérios de inserção de alguém no mundo virtual. Entretanto, o diletantismo pelo ofício da palavra me oferece, desta vez, um fôlego extra para apresentação de mais algumas considerações.

A observação continuada tem demonstrado que cada vez mais jovens e adultos moldam as suas preferências, notadamente as digitais, mais pela forma, sinuosa dos corpos dos interlocutores virtuais, pela aspereza vazia de determinados tipos de comentários ou por qualquer outra razão não essencial, do que propriamente pelo conteúdo postado. Numa linguagem direta e pouco refinada: se uma adolescente dessas aí de peitos grandes e bunda arrebitada, realçados por vestimenta intencionalmente provocativa, postar na rede social algo do tipo “batatinha quando nasce se esparrama pelo chão”, ela, pelo seu “talento” ganhará muitos likes e comentários elogiosos de toda a espécie, considerando que para tais meninas, sem querer generalizar, é claro, a concepção do termo “elogiosos” agasalha outros adjetivos além daqueles mais comuns à acepção da palavra, ou seja, “gostosa”, "cachorra", "tesão", ou similares também entram neste rol de elogios. O seu público, naturalmente será de homens e mulheres jovens, voluptuosos, de antropófagos olhos digitais, cultivadores de desejos sexuais, acobertados pela hipocrisia de um comentário erótico, camuflado de aparente simpatia, como por exemplo “linda”, “deusa”, etc. Muitos até vão dizer: “que lindas palavras” em referência à “batatinha quando nasce...”. Entretanto, se um Poetinha da vida literária ou real, por exemplo, postar a sua poesia ou um ensaio como este aqui, nesta mesma rede social, estará invariavelmente exercitando a sua invisibilidade, perante os desinteressados internautas, em geral. A predileção da plateia da informática também é dirigida aos haters, que destilam e fermentam seus ódios irracionais e rasos na esteira digital. A este respeito, esclareço que não estou condenando ou deslegitimando qualquer manifestação de indignação por parte dos internautas. Estou apenas enquadrando-as numa determinada perspectiva: a do mero ódio pelo ódio, sem argumentos consistentes, sem elementos propositivos, como por exemplo “globolixo”, “intervenção militar já”, “golpistas”, “coxinhas”, “petralhas” e tantas outras ilustrações, apoiadas fundamentalmente em modismos ou alimentadas pelo perigoso fenômeno da inconsciência coletiva, apregoada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, lá no início do século passado. Figurinhas coloridas, mensagens excessivamente infantis, descontextualizadas do verdadeiro objeto da questão, humor duvidoso ou tosco, para dizer o mínimo, selfies em profusão, preferencialmente em banheiros diante de espelhos, e tantas outras amenidades, erotismos e futilidades, sempre serão os campeões de likes e curtidas, agigantando a invisibilidade daqueles anônimos e ingênuos solitários como eu, que acham que escritos como esse, por exemplo, vão aparelhar uma legião de seguidores. Outra coisa que salta aos meus olhos: o ativismo exacerbado, religioso, político, sexual, dentre outros, tende cada vez mais a ganhar novos adeptos assim como novos cliques em botões de “likes”, e comentários e curtidas, quanto maior for a virulência das mensagens, enquanto que textos não enquadrados nas categorias mencionadas, ainda que de grande relevo continuam a trajar a capa da invisibilidade.

Eu me lembro claramente, como se hoje fosse, de uma experiência pedagógica que um professor de literatura do meu colégio fez com a minha turma e com outras, por certo. Ele dividiu a sala em dois grupos. Ao primeiro grupo entregou fichas com pensamentos de poetas, escritores, filósofos, cientistas, e demais figuras célebres, entregando também outras fichas com pensamentos de anônimos, corretamente identificados, todos eles, quanto à autoria de suas frases. Por seu turno, ao segundo grupo distribuiu os mesmos pensamentos, porém com a identificação da autoria invertida, isto é, frases das mesmas personalidades célebres atribuídas a anônimos e vice-versa. Em seguida pediu aos estudantes que elegessem na opinião de cada um deles as frases que mais gostaram. O resultado apurado foi bastante didático. A maioria esmagadora dos alunos, independentemente do grupo nos quais estavam inseridos, optou pelas frases identificadas como sendo dos famosos, em detrimento daquelas identificadas como sendo de anônimos. Vale ainda ressaltar que as frases dos anônimos foram construídas deliberadamente com uma retórica rasa, até mesmo contraditória. E estes dizeres no segundo grupo, o da autoria invertida prosperaram também sobre construções frasais lapidares de personalidades célebres, só porque estas últimas estavam associadas a pessoas anônimas. Conclusão: os alunos também repercutiam o espelho da sociedade na qual viviam, na definição de suas preferências, por critérios que privilegiavam a forma em prejuízo do conteúdo. O importante é quem falou e não o que se falou. E se quem falou tiver um corpinho sensual, então navegará desimpedidamente nas redes sociais com o seu "potente" barquinho abarrotado de likes e outros mimos, enquanto os transatlânticos dos não eleitos continuarão encalhados nas pedras da indiferença. E vamos em frente, pois a invisibilidade pede passagem.

É meu caro amigo, Poetinha! Se possível fosse, eu, algumas vezes, gostaria de penetrar no seu mundo literário e, no seu recôndito recanto bucólico, me aboletar, perguntando para ti: “tem um lugarzinho aí no seu casulo para mim? ”

© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves

01 de junho de 2018

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Leonardo do Eirado
Enviado por Leonardo do Eirado em 02/06/2018
Reeditado em 30/06/2018
Código do texto: T6353105
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