O POEMA CIRCUNSTANCIAL

Posso fazer um pedido ao meu adorável amigo poeta e escritor renomado? Com este meu nome "Sibilla" me farias um poema? (Sem entrar na história das Sibillas!) Gostaria de ser personagem de algum filme, seriado, mas acho que os autores têm algum preconceito, então lendo teus poemas e escritos, tomei a liberdade de te fazer este pedido! Sei que vais elaborar algo bem significativo!

(SD, via Facebook, em 21/06/2018).

Perdão, mas não posso me comprometer contigo. Tenho pouquíssimos “versos dedicados” nesses meus 43 anos de Poesia. Sabes, este tipo de poema é, via de regra, um "poema de circunstância", vale dizer, uma peça poética que nasce momentaneamente, quando duas ou até mesmo mais pessoas, têm a oportunidade de vivenciar determinado momento de convivência, seja de alegria ou de contrariedade, na qual o espiritual se manifesta pela palavra, gesto ou ação. Acho que temos de conviver mais, e esta é uma missão que se poderá confiar ao Senhor Tempo e aos nossos amigos em comum. Acho que se deverá proporcionar um conviver mais intimista entre tu e eu, de modo a que o poema exsurja. Vamos ver se “pinta” qualquer dia desses. Sei que és uma pessoa doce, afetiva e sedutora, por teus dotes, exemplar virtuoso, culto, amiga de fino trato. De repente, não mais que num repentino acesso, num afloramento de sensibilidade, pode ser que a inspiração faça nascer o poema a ti dedicado e ficarei muito feliz em assiná-lo para a posteridade. Não é a gente “que encontra a Poesia, é ela que nos escolhe”, diz o Mario Quintana, e é assim mesmo. Porque o poema (é obvio que todos deveriam saber) por ser uma peça de arte com proposta de universalidade, não é um simples bilhete. Até pode ser, como no caso de intenso lirismo entre dois aficionados, afeiçoados e/ou enamorados trocando intimidades e confissões, todavia este tipo de manifestação restringe-se ao recado amoroso, dificilmente chega a se constituir num poema em que a Poesia se faça presente E é mais uma manifestação gozosa ou íntima que documenta um determinado instante ou situação. É evidente que no caso de troca de afetos, o polo homenageado (aquele que tem o recado amoroso a si dirigido) só pode ficar feliz, encantado, e aí cumpriu-se a missão da palavra, espargiu-se a sua carga emocional. Porém, um poema apreciável esteticamente, com plenitude de conteúdo poético é uma proposta escritural imagética que impressiona os sentidos em que, mercê do eventual relato fático (ou não) ou a troca afetiva subjacente, a peça poética tem de servir como parâmetro e/ou sugestão que funcione como proposta de universalismo e não meramente "o eu e tu", como propunha o escritor/poeta francês Paul Géraldy, lá por 1913, em seu livro célebre, o “Toi et Moi”, traduzido para o português por Guilherme de Almeida com o título de “Eu e Você”, em 1932. No caso em voga, e que estamos explicitando, particularmente nos doces e desejosos convites ao jogo do amar – situações em que ocorre o predomínio do sexo e da lascívia – inexiste, a rigor, o poema com Poesia: estaremos frente a um recado amoroso, que serve apenas como relato de fato ou situação, mas que não chega a ser – verdadeiramente – uma peça em que a Poesia se faça presente. Por ter esta concepção é que concebi poucos poemas-homenagem, e, quando os produzo, são normalmente dedicados a pessoas que já mudaram desta margem para o plano espiritual superior e a saudade delas (de uma ou de mais de uma) constrói o poema dentro de meu coração disparado. Será que consegui explicar bem como surge o ‘poema dedicado’ cá dentro de mim? E, se o poema (segundo me apercebo) é a materialidade da Poesia e sedimenta-se em dois momentos conjunturais, primeiramente a emoção – o instintivo do qual promana a centelha criativa – a chamada INSPIRAÇÃO OU ESPONTANEIDADE, e em laivos imediatos ou a posteriori, a intelecção pautada pelo racional, assentada no trabalho individual – no exercício a que denominamos TRANSPIRAÇÃO – funcionando ambos para a colimação estética, o Belo espargido na peça poética, realmente o Tempo – o genuíno senhor da Razão – nos apontará o caminho dos sentires pousados nos escaninhos da epiderme e da memória. Peço escusas por não conseguir, por ora, ao menos, fazer-te um poema eivado de matéria poética. Porque a Poesia, como a concebem os “condenados ao pensar”, como é o meu caso, não é matéria de fácil convivência. E, enfim, é ela quem nos escolhe, naqueles dignificantes momentos em que é dona de nosso espiritual também condenado ao verso e às antíteses circunstanciais, como queria o filósofo Hans Hegel.

– Do livro inédito OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2015/18.

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