Sobre Democracia

Esse meio social em que cresci era essencialmente individualista, como na definição de Toqueville, de que “cada cidadão se isola da massa de seus similares para se retirar em separado e criar uma pequena sociedade para seu uso, abandonando a grande sociedade a ela mesma”. Pelo menos era assim que via o mundo. Atitude que contrastava com o que se ouvia na missa. Amar uns aos outros, amar o próximo como a si mesmo, rezar por toda humanidade. Sem problemas, já que amar em tese ou rezar não custa praticamente nada, a não ser um pouco de tempo. Porque amar aos outros de verdade implica em compromissos concretos com o bem-estar do próximo. Estava impressionado com a impotência da religião em de fato influenciar o dia a dia. Muita gente era uma peste, egoísta durante a semana, mas nunca faltava a missa aos domingos. Esse egoísmo pode ser explicado. mas não necessariamente justificado. Essa falta de solidariedade podia ser motivada por uma luta pela sobrevivência dentro da sociedade, uma vez que a própria existência de uma pobreza aguda no país representava uma prova viva do que o destino reservava aos fracassados. Não havia rede de segurança social, nada. A idéia do comunismo, poderia ser atraente, mas comparando a União Sociética com os EUA via-se que o capitalismo alcançava melhores resultados. Quem conhecia os EUA, via lá um mundo desenvolvido, sem pobreza, com muita liberdade; modelo que se impunha (a Europa empobrecida do pós-guerra não era ainda um modelo). Tal visão criava em nós a angústia de que uma sociedade melhor estava ao alcance, mas sem se saber como chegar lá. Resumindo, nascido nesse meio, evoluí para pensar na importância de uma sociedade mais justa, e que para enriquecer uns, não é necessário empobrecer outros, e que a democratização das oportunidades é o único caminho válido. Sem democracia e sem justiça social não pode haver estabilidade política. Na falta dessas qualidades, é uma democracia imperfeita e vai ser sempre berço de um conflito social crônico. Na Guerra Fria, o liberalismo político foi confundido com o comunismo. Mas hoje o liberalismo político está livre desse rótulo, desvinculado de suspeitas totalitárias.

Mas é quase consenso que a democracia no mundo está em crise. A revista "Foreign Affairs" de junho 2018 opina que os sinais de que a democracia está regredindo são "centralização de poder, politização do judiciário, ataques na imprensa independente e o uso de cargos públicos para proveito próprio". Todos nós já vimos esse filme, ou estamos vendo. Hoje, é comum observar esses fenômenos não só em países em desenvolvimento como também em países desenvolvidos.

Não se discute que a democracia é a melhor forma de governo, ou então, como Churchill colocou uma vez, “ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou totalmente sábia. De fato, foi dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as outras formas que foram experimentadas” Ainda segundo a revista “Foreign Affairs”, a democracia ao trazer uma legitimidade incontesta, e, ao “ permitir que o povo escolha seus próprios líderes, reduz a necessidade de uma regime repressivo.” Mas mesma revista adverte, “a desigualdade é incompatível com a democracia.” Assim sendo, ao persistir a desigualdade numa sociedade, a democracia apresentará inevitavelmente distorsões, e tenderia a ser disfuncional. Não só autoritarismo ganha força - os regimes autoritários estão crescendo no mundo - mas também o terreno se torna fértil para o populismo.

Outro aspecto, que sempre intriga, é por que o regime democrático definitivamente não funciona em certos países, onde a tradição autoritária é muito forte, seja ela de liderança tribal, seja de monarquia absoluta com longa duração.

Para corrigir distorsões nos níveis de renda é essencial uma política que enfatize o social, sem comprometer o vigor criativo do setor privado. A essência da democracia é a igualdade de oportunidades. Exemplo clássico são os países escandinavos, em que um estado previdenciário avançado favorece a baixa desigualdade. Moradia, saúde, segurança são assegurados, com impostos mais elevados para quem ganha mais. Tal sistema, no entanto, exige que a corrupção seja próxima de zero, pois todos os recursos devem esta disponíveis para benefício da população.

Como conclusão, podemos tratar do caso brasileiro. A mesma revista “Foreign Affairs” comenta que , no EUA, com a a maciça urbanização, em seguida ao fim da Guerra Civil, o governo falhou em tratar de problemas tais como moradia, qualidade dos alimentos, poluição, alta criminalidade, serviço de saúde abismal, educação precária, e mercados financeiros desastrosamente mal regulados. Portanto, a situação brasileira hoje é muito difícil, mas não deseperadora. Os EUA demonstraram que é possível dar a volta por cima, desde que cada cidadão olhe além do próprio umbigo, esteja pronto a defender os interesses do país e não só os próprios, elegendo políticos honestos. O que se vê acontecer hoje no Brasil é uma intensa luta por parte de grandes grupos de interesse para abocanhar a maior parcela possível da RENDA nacional, o que faz com que aqueles que não tem poder para entrar nessa disputa sejam não só completamente prejudicados, como também obrigados a contribuir financeiramente para a riqueza alheia.

No final, o que mais caracterizaria a democracia, quero dizer, uma democracia autêntica, que não fosse apenas votação de quatro em quatro anos, é a resposta positiva à pergunta seguinte que deveríamos nos fazer: você se sente representado no Congresso ?

Na democracia representativa, que se opõe à democracia direta ateniense, o que nós fazemos é permitir uma expropriação do poder. Escolhemos 300 pessoas para tratar de nossos assuntos durante cinco anos, e não temos mais nada que fazer, nenhuma participação, somos politicamente inativos, passivos. Mesmo no dia das eleições votamos em candidatos que foram escolhidos por outros em processo no qual não tivemos nenhuma intervenção. As convenções partidárias, pelo que vemos, não representam uma disputa real, mas apenas uma chancela de um candidato previamente escolhido. Comentários esses que faz Castoriadis. Uma discussão filosófica sobre democracia é cada dia mais necessária. Parece claro que a democracia representativa está esgotada. É inevitável uma reforma política, uma reinvenção da democracia, inspirada na democracia atenienese, que permita ao povo manifestar-se diretamente sobre assuntos, ou um grupo de cidadãos ter a possibilidade de iniciar um procedimento para afastar mal políticos. Isso seria possível graças ao grande desenvolvimento da informática, e por que não ?

Ugly
Enviado por Ugly em 12/07/2018
Reeditado em 04/09/2022
Código do texto: T6388128
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