Kardec etnocentrista

Os críticos com frequência se voltam, e não sem razão, para o que parece ser uma incrível manifestação de racismo de Kardec no texto “Perfectibilidade da raça negra”. De fato, há frases ali que, se postadas em uma rede social, nos dias de hoje, gerariam fatalmente o linchamento moral do seu autor, que seria não apenas processado, mas, também, perderia o emprego, pois as empresas não querem se ver vinculadas a quem pense semelhantes coisas. Diz o velho Kardec:

“Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior, isto é, primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já constitui um progresso que levarão para outra existência e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório em melhores condições”.

Qualquer um que lesse essa fala, isoladamente, diria: “Mas isso é um racista de marca maior!”. Como é o Kardec, no entanto, a tendência daqueles que são simpatizantes à doutrina dele (que, reforce-se, não possui o monopólio do mundo espiritual) é procurar certas justificativas, no que nem sempre são bem sucedidos. E, sobretudo, porque, mesmo livrando o Kardec da pecha de racista, não é possível livrá-lo, e geralmente nem se tenta, de uma outra: a de etnocentrista.

É a sua visão etnocentrista que faz Kardec usar palavras das mais horríveis (de “selvagens” para baixo) para se referir a todos os povos que não comungam da sua civilização branca, europeia e cristã. Na sua escala evolutiva, só existe uma única linha, e essa linha é a que conduz os selvagens a se tornarem brancos, por meio de miscigenação, e a adotarem os ideais de civilização praticados na Europa, de preferência da parte da Europa que aceita a Jesus.

Kardec acha que está fazendo uma grande coisa ao não considerar os selvagens uns completos inúteis. Acha que é um estágio primitivo que todos devem passar até chegar, depois de sucessiva reencarnação, ao estágio em que a Europa civilizada se encontra. É só por isso – por desculpar aos selvagens o fato de estarem “atrasados” no processo civilizatório – que ele os defende, e não porque tenham alguma coisa a oferecer para a sua visão de mundo.

Kardec não está interessado nos hábitos e nos costumes dos povos negros da África ou dos índios da América. Atrasados, selvagens, burucutus, é tudo o que o artigo sugere ser o seu pensamento a respeito deles. Se nos esforçarmos bastante, um dia eles chegarão a ser como nós. É só por isso que esses povos existem, pelo que se depreende de Kardec: para que cheguem ao mesmo estágio de civilização que nós. Nem por um momento passa pela cabeça de Kardec que haja algo errado com a sua civilização, pelo menos não ao ponto de ter que levar em conta alguma civilização “selvagem”.

Kardec acha que é uma grande coisa ensinar o cristianismo a esses povos “primitivos”, porque, na visão dele, isso significa que os estamos vendo como iguais, tão dignos quanto nós de conhecer a Jesus. Ora, mas Kardec não está vendo a esses povos como iguais: ao contrário, ele está vendo a sua própria crença como superior, única possível para que os selvagens cheguem ao mesmo estágio que nós.

Não ocorre a Kardec que esses outros povos tenham alguma crença que possa lhe servir de alguma maneira. É do alto da sua superioridade civilizatória que Kardec quer impor Jesus para que esses povos saiam do atraso. E ainda acredita firmemente que está fazendo um gesto de caridade.

A posição de Kardec, em verdade, não é estranha à época em que vivia. A diferença é que nenhum outro que tinha semelhantes ideias, em seu tempo, usou os espíritos para legitimá-las. Estando “fora do tempo”, como se imagina que estejam os espíritos, e conhecedores de “toda a verdade”, espanta que eles não tenham dito a Kardec que muitas das suas ideias envelheceriam, ou, ao menos, que iriam gerar uma controvérsia tal que poderia colocar em cheque a sua doutrina.

Houve evolução do pensamento e, nesse caso, ela não foi boa para Kardec.

Frederico Milkau
Enviado por Frederico Milkau em 26/07/2018
Reeditado em 26/07/2018
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