Recife

Recife. Sempre senti ao mesmo tempo calor e ar fresco agradável vindo do mar. O ar de Recife sempre teve cheiro de fruta madura, manga, caju, sapoti ... Lembrando do motorista ele era gordo e loiro. O apelido dele era Porca Russa. Lembro da corda que comprei na favela em frente da Vila para descer do quarto e fugir para o Clube à noite. Na mesma favela comprava, atiradeiras (em Recife conhecidas como "badoques), pipas e futebol de botão. Lindos os botões de osso de boi, muito caros. Mas vou falar de torneio de futebol de salão com 8 times que organizei no nessse Clube sem me preocupar com o detalhe de pedir permissão ao Diretor. Levei uma bronca! A piscina do clube era um lava-pé, com um metro de profundidade. Tinha antes sido um lago com plantas e peixes, de onde eu (e a torcida do flamengo) roubava peixes ornamentais, que se reproduziam com suficiente celeridade para compensar as desapropriações. Na tal piscina. uma vez pulei de cabeça da borda, bati o queixo com toda força no fundo e fiz um corte profundo no queixo. Felizmente não desacordei. E dizem que burrice não mata ... Lembro também que nesse clube dançávamos o "Twist" com grande entusiasmo, ao som de Chubby Checker. Lembro dos soldadinhos de chumbo que fazia um Capitão que morava na Vila e tinha os moldes. O chumbo nós conseguíamos roubando munição de pistola dos respectivos pais, enterrando com o chumbo para baixo na terra e fazendo uma fogueira em cima. Detonava tudo. Aí era derreter e formatar numa caixa de fósforos. Não dava para entregar os projéteis ao Capitão Os remédios milagrosos que se tomava VI-Kelp e KH 3 (esse quase um nome de mau gosto.). O fuzileiro com metralhadora deitado no chão à espera de supostos revolucionários comunistas em frente do portão do clube. Isso foi em 1963. Os caranguejos que eu pegava na beira do cais usando bola de carne como isca. A Babá cozinhava os caranguejos... O encanto que eu tive com minha primeira “sandália japonesa” (tipo havaiana) e minha primeira camisa de “elenca”. etc., A sandália não era adequada ao chão irregular das calçadas, vivia com os dedos feridos com as topadas que eu dava. (Teria sido melhor “tênis”, ou melhor “basquete”, mais comum então, mas a sandália era a moda, que fazer...). A caxumba que todos tiveram, e por causa dela fui exilado por seis meses na casa da minha avó na Rua das Graças, na Capunga, não longe do Rio Capibaribe ( o que explicava as enchentes que na estação chuvoisa tinhamos que enfrentar). Alí, só com minha avó e meu avô, tratava de encontrar algo para matar o tempo, sobretudo durante as férias. Nunca fiz tanta introspecção. Mas eu gostava muito de jogar futebol com um pessoal que aparecia em terreno baldio em frente da casa. Muito informal, alguns fanáticos, que chegavam sem calção, jogavam de cueca. Mas minha avó já sabia desse futebol, e me controlava de vez em quando. E fim do futebol naquele dia. A crise dos mísseis em Cuba rolando na semana do meu aniversário (12 anos) em outubro de 1962, e meu pai elevando o moral comentando que se houvesse uma guerra nuclear ia sobrar muito pouca coisa. A Pé de Palito, menina magrinha filha da cozinheira, apanhando da mãe mais do que uma escrava romana. A praia de Boa Viagem. Linda praia, quase virgem na época. Meu tio e a criação de galinhas - acho que só perdeu dinheiro... Tom, nosso primo, com ar de James Dean, com maço de cigarros preso na manga da camiseta, fazendo pose em cima do jipe Willys. E o "preto", o cachorro, que tratou minha mãe sem nenhum respeito, a dentadas. Isso eu não vi. Só vi meu pais entrar na casa da Rua da Graças como o carro, rolando em cima das pedrinhas, brancas e pretas, tentando atropelar o cachorro, que, sem nenhuma sensibilidade, foi acolher o carro na entrada. O carro entrou furioso, perseguindo loucamente o cachorro, que, muito habilmente, "TIROU O TIME DE CAMPO", rapidinho. E ficou por isso mesmo. Lembrei as injeções, provavelmente na barriga, que a minha mãe estava tomando, e, enquanto tomava, recebia aulas de “tortura” do farmacêutico, que foi o autor intelectual da surra que levei com galho de goiabeira, não sei mais porquê. Um dia eu estava no banheiro no primeiro andar da casa na casa dos meus avós e sem ter muito o que fazer. Um dia lindo de sol. O banheiro com um cheiro típico agradável que não me sai da memória. Resolvi fazer alguma coisa e enchi uma jarra grande, esmaltada de branco com água e joguei no teto do terraço abaixo da janela. A água escorreu e procurou a calha e daí jorrou telhado baixo. Coincidentemente, meu avô estava abaixo da goteira da calha, de terno branco de puro linho, gravata, sapato bicolor, branco e marrom (se me lembro bem era o que ele usava). Tomou um banho; não esperava tanta água num dia de sol. Meu tio intelectual junto, tomando café. O Vovô começo a gritar, tendo já adivinhado quem era o autor da façanha: "Eu vou torcer o pescoço desse menino,". Eu sei que tratei de sumir do mapa, mas a partir daí não me lembro mais. Meu tio intelectual era assim, avoado. Funcionário público do IAPTEC (ou do IPASE?), era também crítico literário no jornal de domingo . Muito lido e instruído, como se dizia então, era de fato muito talentoso. Escrevia bem, mas livro só escreveu um, bem fininho, que não gastou muito papel. Conhecia idiomas sem ter pisado fora do Brasil, e era íntimo dos grandes nomes da literatura mundial. Mas não deixava de fazer suas trapalhadas. Quando entrava na farra, que durava pelo menos três dias, enchia a cara e, como dizia minha avó, "entrava em órbita", numa linguagem emprestada aos feitos espaciais do momento (sputnicks, etc). Acontecia de ser finalmente "entregue em casa" por um motorista de taxi, que nem precisava pedir o endereço: já era bastante conhecido nas noites do Recife. Uma vez bateu o carro do meu avô, um Chevrolet 1948, cinza, muito preservado. Parece que tinha muitas namoradas, mas não conheci nenhuma. Nunca casou e entendo que nenhuma mulher aguentaria um homem desses. Às vezes nem ia trabalhar. Não sei o que pensavam lá no IPASE, mas deviam conhecê-lo bem. Possivelmente seguia a tradição no serviço público brasileiro de pindurar o paletó na cadeira e pronto. Quando tomava cafezinho, jogava metade fora, e tomava o resto. Ou era para esfriar ou para o santo. Fui do Rio para Recife de carro com meu pai em 1959. A viagem, lembro de trechos, não dela como um todo. É fato na tenra idade não nos lembramos de tudo, mas apenas daquilo que te causa uma forte impressão. E a viagem causou. Lembro-me de algumas coisas. Primeiro saímos do Rio, pela Rio-Petropolis, subimos a serra, até chegar no Planalto em Minas. Primeira lembrança. Um frio que nunca imaginei existisse; nunca senti tanto frio na minha vida. Na verdade, não devia estar muito frio, mas para um carioca postoseiszense era frio pra burro! Andamos por uns hotéis modestos, que não deixa de ser um "understatement", mas minha lembrança era de que havia bichos nas camas, pulgas e, sobretudo, percevejos. Travei conhecimento com essa fauna (até então só conhecia baratas que, no nosso apartamento eram gigantescas). Os hotéis eram conjugados com postos de gasolina, e os clientes caminhoneiros. Outra coisa interessante era que no Rio havia Chicletes ADAMS, amarelinho e vermelho (tutti-fritti). Na estrada, encontrei um ADAMS todo verdinho, de um sabor diferente, e fiquei encantado. O mundo fora do Rio era diferente! Outro problema foi que com a comida na estrada - não me lembro - tive uma tremenda prisão de ventre, a ponto de deixar papai preocupado. Poderia ser a comida ou temor dos banheiros sujos. Mais um confronto com uma nova realidade. Lembro que em dado momento a estrada era péssima, e o carro não avançava mais que uns 20 km por hora. Em dado momento, o carro começou a consumir muita gasolina, e, finalmente, descobriu-se que havia um furo no tanque. Não sei como não explodimos...Foi preciso encontrar uma oficina para fazer o conserto, com trabalho especial de solda, para não detonar o tanque. Depois de Minas, passamos por Vitória da Conquista, cidade que em, 1999 voltei a percorrer os subúrbios. Lembro-me vagamente de um terreno muito árido por muitos quilômetros, que deveria ser no interior da Bahia. Passamos perto da hidroelétrica de Paulo Afonso, mas não sei se cheguei a vê-la. Não era viagem de turismo. Depois, não me lembro de muito mais, nem da chegada. Na viagem estavam um senhor, nordestino, de idade elonga barba branca, vestido de jeans barato e calçado com sandálias de couro, sem meia. Aladel. E um pintor, artista, com o apelido de Pardal . Eles sentavam na frente com meu pai, e dividiam a direção. Eu ficava sozinho atrás, e dormia boa parte do tempo. Havia em Recife a casa do meu bisavô (falecido), enorme mansão do século 19, mas bem decadente. Eu não gostava de ir lá, detestava. As duas tias-avós, filhas dele, solteronas, por mais bondosas que tentassem ser, eram feias e me davam susto. Idosas e supermaquiadas. Muito feias. E todos aqueles cachorros. Mais de quarenta. Cruzes! Eu seguia a lógica do desenho animado. Gente feia é má, perigosa. Pena que no meio dessas emoções negativas, não prestei a menor atenção à casa em si, que deveria ser linda e pitoresca, mas não existe nada na minha memória. Pintei depois um quadrinho para fazer penitência da casa a partir de uma foto, e um outro de desenho da decoração interna, Minha terceira tia-avó morava em frente e na casa dela, bem menor, me sentia muito bem . O marido dela, Alberto, ficava o tempo todo sentado numa cadeira de balanço lendo, além de jornal, um "pocket book" e tomando cerveja. Acho que o nome dele era Albert, porque ele era inglês, ou se não era, estudara na Inglaterra. . Apesar de calado, tinha uma inspiração digna de Vinícius de Morais, quando disse que o whisky era o “cachorro líquido”. Para o Alberto, a cerveja era o "pão líquido". Mais tarde, já no Rio, cheguei a trocar livros com ele: ele me mandava, eu lia, e devolvia pelo correio. O título de um desses livros era as "Doze Cadeiras", se não me engano, e toda confusão do enredo era porque havia umas joias escondidas dentro do assento de pano de uma delas. Lembro que a comida na casa dessa tia era boa e tinha uma árvore de azeitona roxa no fundo do jardim que eu gostava muito. O jardim tinha um cheiro típico de jardim pernambucano, aroma de frutas misturado com perfume de flores.... Uma vez instalaram um quebra-molas na estrada, em frente da Vila. Mas não colocaram nenhuma sinalização. Aí foi um espetáculo. Os carros vinham e quase voavam no obstáculo. O caminhão de leite saía derramando o precioso líquido depois do confronto. Os veículos paravam. Os motoristas desciam furiosos. Mas não havia por perto ninguém para reclamar. Até hoje não sei quem mandou construir o quebra-molas. Só sei que logo depois demoliram o famoso obstáculo. Na época do carnaval, a garotada, eu inclusive, ficava na beira da estrada com uma lata grande de biscoito Piraquê cheia d’água. Quando vinha um ônibus, a água era jogada direto dentro pelas janelas. Era divertido ver as pessoas tentando desesperadamente fechar as janelas, sem sucesso, emperradas como sempre estavam, para evitar o indesejável banho. Uma vez, alguém que vinha de motocicleta também levou água. Parou, depois de respingado, se abaixou, agarrou uma pedra e acertou com precisão minha mão direita. Mas nessa altura eu já estava longe e o tipo foi embora. Ossos do ofício. Sempre fui muito criativo e com fértil imaginação. Imaginem o que fiz. Pedi ao pai de um amigo para trocar o cheque que recebi do meu pai para pagar as aulas particulares de Português. Com o dinheiro, comprei uns tantos brinquedos de plástico e soldadinhos de chumbo, estes na Loja Sloper. Tudo estaria muito bem se não houvesse futuro. Mas o futuro me alcançou e tudo veio à luz do dia. Conclusão do meu pai foi de que eu era um “bandido refinado”. Quase um elogio! Vê se eu me aguento! Lembrando, uma vez fingi estar doente para não ir à escola. Era também uma maneira de fazer minha mãe ficar mais próxima. Colocava algo, que não me lembro, debaixo do braço para aumentar a temperatura. Então o termômetro registrava febre. Fiquei assim deitado na cama com minha mãe até que, sem querer, rasquei a revista que estava lendo. Foi o que bastou para que ela virasse uma fera e eu me arrependesse estar ali. Em Recife, aliás entre Recife e Olinda, deixei de ir à escola, por uns poucos meses. Ia passear no cais, pescar siri, visitar amigos. Ficava na expectativa de que um dia tudo seria descoberto: e foi..., mas até lá ia vivendo o presente, porque o futuro não parecia cor de rosa. Sempre tive pânico do futuro. Um dia achei que seria melhor fugir. Tomei um ônibus em direção de Olinda, só que ele não entrou na cidade; logo na entrada virou à esquerda e seguiu uma estrada em direção a... Deixei o ônibus seguir pela estrada um tanto e deixei-me levar por uns tantos minutos, um bom tempo. Afinal, achei que isso não fazia sentido. Para onde iria? Sem dinheiro, sem nada. Puxei o fio de parada para acionar a campainha e o ônibus parou no ponto seguinte com um rangido de freios novos. Saltei, atravessei a rua, e peguei um ônibus de volta. Resolvi afinal enfrentar o futuro de frente. Pegar o chifre pelo touro! Ou melhor, o touro pelo chifre! A moral da estória é que não queria continuar a viver em casa. Não era feliz. Mas com meus treze anos não tinha coragem, ou não estava equipado para mudar minha vida. Afinal, quando veio a crise, foi apenas uma pena de prisão: seis meses sem sair de casa. A surra fenomenal que esperava não se materializou. Entendia que se o castigo tivesse sido proporcional ao crime deveria ser a pena de morte.

Ugly
Enviado por Ugly em 16/08/2018
Reeditado em 04/09/2022
Código do texto: T6420990
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