A MODERNA IDADE MÉDIA

O assédio afetivo daquela pessoa que nos quer tão bem que não conseguimos crer, nos confunde. É afetivo, mas o nosso temor nos arma e decide que é sexual. Especialmente pelo excesso de confiança depositada em nós, que faz crer numa confiança igual como resposta, quando não temos a mínima condição de corresponder. É aquele conjunto de atitudes e olhares sinceros que fazem bagunça em nosso porto seguro. Fazem ruir o muro da solidão confortável que se tornou rotina doentia, por ser excessivamente providencial.

Temos um medo incomum de quem chega sem rodeios, meias palavras, camuflagens, e com a mais franca ousadia de manifestações extraquadro. Com presença ostensiva cujos fins não sabemos discernir. Enxergamos nas amizades desarmadas e gratuitas o mundo que um dia nos feriu. A sociedade que desmantelou nossos conceitos de boas intenções e nos fez desistir do ser humano, como se fôssemos a preciosa sobra do que havia de bom sobre a terra. Por isso nos guardamos para comungar tristemente com pessoas portadoras das mesmas marcas que trazemos na alma. Indivíduos temerosos de tudo e todos, como nós. Uma sociedade anônima comprimida. Prisioneira dos freios, das permissões previamente combinadas e dos alarmes antissurpresas. Medrosas do caráter diverso e das expectativas sobre o outro.

Não estamos preparados para o bem querer informal. Para romper o fundo imensurável do poço acomodado em águas imutáveis. Apostar no afeto imprevisível que pula nossa janela; confiar na irreverência dos laços que avançam sinais e avisos, e no fim das contas fazem bem, porque tudo foi por bem. Não houve o que atentasse contra nossa integridade física, psíquica e moral. Nada foi como adivinhamos que seria e por isso julgamos, condenamos e resolvemos aplicar precocemente a pena do afastamento, a frieza ou retaliação.

Os desempenhos sociais deste século confuso que se transformou numa espécie de moderna idade média nos deixaram assim. Fecharam todos os olhos para os bons espíritos ainda existentes. Os tesouros que se ocultam em seres de caráter inesperado para os preconceitos que os excessos do pânico produzem. O maior dano destes tempos é o de não vencermos o dano de achar que tudo é dano e transformarmos nossas trajetórias em uma sucessão de perdas humanas que a generalização não perdoa.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 19/08/2018
Reeditado em 19/08/2018
Código do texto: T6424023
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