O que é arte - Quem é o artista

O consumo de arte da minha vida é muito irregular. Houve épocas em que li com alguma frequência, gostava do Realismo Fantástico dos latino americanos, amava as crônicas do Luís Fernando Veríssimo, amava José Saramago. Uma vez minha mãe notou que eu não ouvia música. Ela me mostrou o que tínhamos em casa, passei a ouvir com todo o carinho a seleção músical que ela construíra em sua juventude. Ainda hoje amo Caetano, Chico, Janis, Mutantes. Nossa, eu passava horas ouvindo Jimi Hendrix, especialmente uma determinada música que praticamente só tinha instrumental. Mas as fases de literatura e de música passaram. É estranho o que nos leva a mudar. A literatura que consumi me marcou, passei a escrever contos. Lembro que era muito claro para mim que o caminho mais curto para a alma é a música. Raramente um filme me afetava com tanta intensidade do que as músicas que eu curtia na época.

Seria de se supor que abandonei o consumo de arte em favor de algo muito importante. Algo disputaria meu tempo com tanta urgência que eu, apesar de resistir muito, abandonaria a literatura e a música. Ocorreu algo diferente. Suponho que em uma das minhas mudanças (da casa da minha mãe para a casa da minha vó) desenvolvi outros hábitos. Deixei de consumir arte sem me dar conta do que eu perdia, sem me dar conta de como era importante para mim.

Atualmente leio muita teoria: Nassim Nicholas Taleb, Thomas Pikety, Daniel Galeman, Charles Duhigg, Oliver Sacks, Daniel Kahneman, Mariano Sigman… A negligência com um hábito cultural ficará no passado. Continuarei lendo teoria. É encantador ter os horizontes ampliados. Mas é pouco, há sabores emocionais que são reservados à literatura, à música, aos filmes, à dança… Curtir este lado da vida é minha nova prioridade.

Há uma pessoa que catalisa esta ambição, alguém que me tira da zona de conforto emocional do qual eu já queria sair. Só ouço música estudando ou escrevendo. Percebendo a maneira pobre que disfruto música atualmente ela me provocou. Me pediu para fazer uma playlist para tocar em um jantar. Já fiz pastas e coloquei músicas dentro. Tenho uma para estudar. É de músicas animadas, em inglês e com poucas variações harmônicas. Músicas lentas me de deixariam letárgico. Letras em português e uma rica composição harmônica me distrairiam dos estudos. Mas basta isto para criar uma playlist?

Estou convencido de que dispor músicas em ordem, quando feito com carinho, é uma forma de arte. No meu aniversário de 30 anos uma grande amiga, Lygia, me disponibilizou uma casa de casamentos. A casa era gigante e absolutamente maravilhosa. Era no Park Way, longe de onde meus amigos moravam. À noite caiu uma tempestade absurda! Meia noite pouquíssima gente havia chegado. Aluguei um som e o cara que cuidava do som também se dispôs a deixar um DJ. Preferi usar uma playlist que um amigo havia feito. Era de músicas legais, mas não envolveram os poucos convidados. Acabou que o DJ/técnico de som assumiu o comando e passei a me preocupar apenas em beber e a receber as poucas pessoas que aos poucos iam chegando. Relaxei.

Lá para duas da manhã o salão ficou cheio! Eu já estava bêbado e chegou uma pessoa que contribuiu muito para tornar aquela uma das noites mais especiais da minha vida: Emídio comprimentou algumas pessoas e logo se pôs a botar o som. Ele fez a ressalva de que trabalharia no dia seguinte de manhã, então tocaria pouco tempo. Então fez sua mágica: através das músicas ele tocava o público e o entusiasmo do público carregava o Emídio. Ele tocou até amanhecer. As vozes usadas eram de outros cantores, os instrumentos de outros músicos. Ainda assim era ele que estava dando o show. Há algo de extremamente pessoal que ele nos passou através de uma experiência artística. Há certa similaridade com a sétima arte. Tal qual o Emídio usou o talento de outros músicos um diretor usa a interpretação, o roteiro, a direção de arte, a trilha sonora de outros artistas. Ainda assim o diretor consegue harmonizar as diversas contribuições individuais em um olhar próprio através do qual passa algo extremamente pessoal.

Um violoncelista em uma orquestra toca uma música composta por outro e é regido por um maestro restringe a ainda mais sua liberdade. Ainda assim ele dá sua contribuição pessoal ao espetáculo. A música seria diferente se outro violoncelista estivesse eu seu lugar. Uma menina que confere o romantismo das músicas ao seu dia é uma artista. Uma menina que ao acordar te canta ‘Palavras ao Vento’ e, após o café da manhã, na rede, te chama a cantar ‘Mania de você’ é uma artista. Ainda que faltasse técnica ou que errasse a letra ainda seria uma artista. Ela se investiu na escolha das músicas e no seu canto. Desta maneira ela confecciona uma porta para algo extremamente pessoal. Esta porta é a obra de arte. Se eu tenho a capacidade e o interesse em abrir esta porta, isto já é assunto para outro ensaio.

Uma obra de arte é uma porta construída através do investimento de algo muito pessoal. As vezes ela é confeccionada através de versos ou melodias originais. As vezes ela é talhada nas escolhas harmônicas de uma arte já elaborada por outro artista. Assim é com bandas cover, com um violoncelista de uma orquestra, com o DJ que transformou uma noite em uma das melhores da sua vida e da menina apaixonada ao seu lado. Ao se investir, ou seja, ao investir algo extremamente pessoal em uma criação, uma obra de arte é criada. Qualquer um que o faça é um artista. A experiência de abrir esta porta é assunto para outro ensaio.

Ando por aí­ querendo te encontrar

Em cada esquina paro em cada olhar

Deixo a tristeza e trago a esperança

em seu lugar

Que o nosso amor pra sempre viva

Minha dívida

Quero poder jurar que essa paixão jamais será

Palavras apenas

Palavras pequenas

Palavras momentos

Palavras, palavras

Palavras, palavras

Antonio Pires / Marisa De Azevedo Monte

Chico Acioli Gollo
Enviado por Chico Acioli Gollo em 28/08/2018
Reeditado em 28/08/2018
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