Tolstoi e Jesus

Um dos argumentos para se criticar a visão de Tolstoi sobre o cristianismo é a tal da “afinidade eletiva”. Em português, isso quer dizer que o Tolstoi teria gostado de uma parte específica da Bíblia e a tomado como o todo, criando uma teoria inteira sem considerar o conjunto da obra.

Em outros trechos da Bíblia há, de fato, visões que contradizem a visão de Tolstoi sobre o assunto, na medida em que, sobretudo em Paulo, se passa a imagem de que as autoridades são constituídas por Deus e devem ser honradas como tal.

Bem, parece-me que, inicialmente, isso só representa um problema para quem tem a necessidade de fazer com que todo o conteúdo da Bíblia seja coerente entre si, por ser nisso que sustenta a sua fé. O próprio Tolstoi mostrava o seu desagrado com a maneira como Paulo interpretou a mensagem de Jesus, chegando ao ponto de classificar as opiniões de Paulo sobre as autoridades como as mais lamentáveis da Bíblia.

Mas sim, Tolstoi realmente “abriu mão” de alguns trechos da Bíblia, e mesmo dos Evangelhos, notadamente os que dizem respeito à natureza sobrenatural do Cristo. Isso levou a resultados dos mais bizarros, como um cristianismo que não acredita em ressurreição.

De toda forma, aquilo que preenche o pensamento de Tolstoi se encontra no Sermão da Montanha, descrito em Mateus e Lucas. A escolha de Tolstoi, portanto, privilegiou o cerne da mensagem cristã. Somente um cristão muito cínico seria capaz de dizer que as palavras de Jesus nesse sermão são um assunto periférico e secundário, que só terá o seu valor reconhecido se for referendado por algo mais no restante da Bíblia.

Um espírito independente é capaz de perceber perfeitamente que a mensagem daquele sermão está muito mais próxima do caráter libertário que Tolstoi deu a ele do que aquele que é comumente pregado nos púlpitos das igrejas. Pouca coisa há de mais distante das atuais igrejas que o espírito do Sermão da Montanha. Ou por acaso vemos alguém tentando aplicar o “dar a outra face” no dia a dia, alguém disposto a ceder a um ladrão até mais do que ele queria roubar?

A essência do Sermão da Montanha é das coisas mais constrangedoras para as igrejas atuais, pois expõe o abismo que existe entre elas e o pensamento de Jesus. Não é à toa que elas tentam evitar o sentido dado por Tolstoi, que é o que transparece facilmente pela simples leitura, e se defendem criando teorias mirabolantes cujo sentido é um só: relativizar o Sermão da Montanha.

Se o resto da Bíblia sugere interpretações diversas (e realmente sugere), parece ser antes um sinal de que há contradições no conteúdo bíblico, e que Paulo e Jesus divergiam em relação a assuntos importantes.

Há realmente uma “afinidade eletiva” em Tolstoi, que escolheu negar o sobrenatural dos Evangelhos. Mas uma igreja que nega o caráter libertário da mensagem de Jesus está praticando o “esquecimento eletivo”.

Frederico Milkau
Enviado por Frederico Milkau em 15/10/2018
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