PALAVRA, VIDA E VERDADE

Paulo Timm, economista por profissão, historiador e filósofo, surpreende-me muito favoravelmente com a publicação de um antigo e longo poema que trazia desde 2002 em sua mala de garupa, tudo também ao gozo de seu longo andejar como criatura jogada ao mundo neste plano terreno há 74 anos. E me entrego ao estudo analítico, nesta ainda sonolenta manhã primaveril, deixando de lado o desjejum, tanta é a vontade de conviver com o estro de seu multi formatado talento.

“LIÇÕES POÉTICO-FILOSÓFICAS

Paulo Timm

A Filosofia,

amiga do saber,

numa disputa pactuada pela verdade,

os rivais confraternizam

na ágora da razão ,

É prima da Poesia,

Ambas plasmadas na consubstanciação

Da substância,

Do objeto,

Em projeto cevado na helênica pedra,

Ambas suplicantes,

Ambas contorcendo-se na rebeldia com os significantes,

A Poesia

Contra a palavra instituída,

destituída de vida,

de sentimento:

a pura ideia .

É a metáfora impondo-se como uma nova linguagem,

sintaxe do absurdo estético...

A Filosofia,

Contra os conceitos articulados à racionalização da ordem,

destituída de bom senso, mera desordem,

destituída de “vir-a-ser”:

totalitarismo do real.

É uma nova razão que se expressa como possibilidade,

sintaxe da esperança.

Ambas tratando de dar ao mundo,

Com seus recursos linguísticos e sintáticos,

um sentido ao próprio mundo,

radicalmente crítico ,

criticamente cósmico,

cosmicamente humano...

A poesia invocando a Filosofia

Para propor ao (viv)ente,

uma essência como “ser”,

Uma essência

pulsante,

pensante,

sentinte;

plena de significações poiéticas,

heterogêneas,

conflitivas,

inseparavelmente unidas,

irremediavelmente divididas.

Uma essência definida como indefinida,

como uma eterna dúvida ambulante,

peregrina de suas origens e destinos desconcertantes,

ontologicamente condenada à liberdade,

Uma essência conquistada pelo exercício de auto-reflexão

alimentado por um imaginário incognoscível,

no qual nem sua própria onipotência escapa,

menos ainda seus contrários.,

Uma essência conduzida pela descoberta da consciência,

e dos fatores que o condicionam

como vítima de razões externas e internas que desconhece,

superiores a ela própria,

e como tal reprodutoras de um livre arbítrio enclausurado,

encerrado em si mesmo,

como descentramento :

alienação, loucura de si mesmo...

O ser poieticamente invocado,

metafisicamente justificado,

transitando para a corporificação social da imanência,

Inaugurando a cidadania,

na generalização da igualdade de todos perante a lei,

A lei impondo-se gradualmente como razão consensual

na praça do Direito.

A tribo, a comunidade, a polis inaugurando o Estado,

recorrendo à força para impor-se

Mas condicionada ao espírito de justiça para legitimar-se.

A Filosofia mais uma vez chamada a pensar este momento crucial:

Não como mera reflexão,

mas auto-reflexão crítica;

Não como contemplação,

mas como “problematização” do visível;

Não como “sistema de comunicação”

mas produtora de conceitos poiéticamente evocados.

A “amiga do saber” substituindo o “sábio” que tudo sabe por revelação,

o secularismo impondo-se ao milenarismo,

a “essência “ ao “fundamento”,

Oscilando entre a pretensão enciclopédica clássica,

quando se perde em elucubrações, e

A vulgarização mercadológica contemporânea,

quando chafurda na lama comercial,

reduzindo as categorias em produtos empoleirados nas prateleiras,

e os acontecimentos às feiras e exposições;

A Filosofia constituindo-se como sublime sintaxe do espírito criador,

na produção de conhecimentos,

por puros conceitos,

sem os quais

nada é jamais conhecido,

Verdadeiramente.

E, assim, de sujeito universal de direitos,

ao cerne do próprio sujeito descoberto pelo pensamento

nas fronteiras internas do próprio ser.

Sempre no rumo do inalcançável projeto de autonomia humana...

De emancipação da alma de seus algozes...

Do (viv)ente que é ao mesmo tempo,

uma herança da espécie,

simples elo de uma poeira genética estelar,

um produto do imaginário da cultura que o cerca

no tempo e no espaço.,

uma singularidade na apreensão subjetiva deste complexo,

na arena de liberdades vigiadas que o aprisionam,

Nasce um sujeito do século que se inaugura,

responsável pela preservação da espécie que lhe convém,

pela cultura humana que acumulou e retransmitirá,

pelo alargamento das liberdades que anseia,

Valendo-se, para tanto, neste projeto,

da Poesia,

capaz de dar um sentido estético para a existência

e da Filosofia,

nela inspirada,

de forma que esta existência seja:

irremediavelmente crítica,

irremediavelmente única,

irremediavelmente bela...

Olhos d´Água/MG, 30 de novembro de 2002”.

Leio o texto, recomponho-me do que me causou de estranheza e vamos ao estudo. Estamos frente a um texto muito longo para funcionar como materialidade da Poética: O POEMA. Ainda mais na contemporaneidade formal da modernidade líquida, em que tudo é volátil e frugal. Um poema cuja densidade imagético-formal se desgasta à medida em que o andamento rítmico se torna intermitente, devido à árida natureza do discurso nada convencional e seus meandros verbais e linguísticos. Desta forma o escrito tem altos e baixos quanto ao tonus e o corpus poético. No entanto, o texto que se pretenderia poético é como a fênix ou os cabelos da medusa: encaracoleia-se e volta ao leito rítmico-verbal, fazendo a retomada dos significantes e significados (do Teseu mítico) e seu labirinto espiritual indivisível. É o homem em seus questionamentos, em sua saga estética formatada para lhe dar mínimas respostas e jogar ao leitor o universo da espontaneidade que o sufoca à busca de saídas de enlevo, e, por elas, tornar o cotidiano mais brando e palatável. A fênix retorna no fio de Ariadne, ritmado, menos tenso e questionador a partir de "... A Filosofia mais uma vez chamada a pensar este momento crucial: ...", sétima estrofe da peça, e o discurso coerente e nem tão aberto devido à natureza da temática, é resgatado, retomando teor e curso. Trata-se de uma peça densa de questionamentos e rarefeita em propostas ético-morais. É o humano ser explicando-se e tentando escrever o que o gregarismo lhe concede, sempre à busca de um receptor. Como todos os longos haustos de inspiração, na introdução da peça textual predomina o prosaico, e mais a seguir, (reitera-se o nexo causal e temático do poema, na sétima estrofe) ao desenrolarem-se os cabelos da mítica figura. E, sem muito escorço podemos perceber que o poema toma corpo e vai ao final carregando o fio pensamental que auxilia na não perdição do rumo de entendimento do poético. Para mim, o poema começa ali e adentra ao espiritual tal um rastilho, mantendo-se forte em ritmo e prazerosa estética para o leitor culto. Afinal, sempre digo que o bom poema tem de conter três elementos constitutivos, e me recordo, figurativamente, da alegoria das três moedas dispostas sobre a mesa, lado a lado, unidas por seus limbos, formando o delta no pequeno triângulo que exsurge na junção das moedas quanto ao que emerge aos olhos. E está instalada a egrégora mítica. Ali, naquele delta simbólico emerge a Poesia, fruto palpável (porém não formal) composto pela Filosofia, a Vida e a Poética. Todavia, o que exsurge é o mito pessoalizado, surpreso, inconfesso e confuso: o Teseu helênico que perde o pai (Egeu) e se subssume dentre o mundo dos fatos e os mistérios de continuar vivo. É isto o que o longo poema me diz, na interação de Vida e Verdade, bem ao gosto de Goethe. É sempre assim: o bom poema tem inúmeros caminhos para achegar-se aos vértices. Em mim fica o vórtice de me saber vivo e condenado à impotência de abrir a obra de arte em mim e, então, por este querer fazer intencionalmente, vir a negá-la como farsa, fantasia e sonho. Fico com ela, exultante, babando como se tivesse um filho ao colo, mesmo que choroso por estar à margem, na solidão dos condenados ao pensar. Parabéns, poeta Paulo Timm!

– Do livro inédito OFICINA DO VERSO: O Exercício do Sentir Poético, vol. 02; 2017/18.

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