Ensaio sobre Ana Cristina César, regras, suicídio e pleonasmos

MOCIDADE INDEPENDENTE

Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra

cima sem medir mais as consequências. Por que

recusamos ser proféticas? E que dialeto é esse para

a pequena audiência de serão? Voei pra cima: é

agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem

uma graça atravessando o Estado de São Paulo, de

madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta

contramão.

(Ana Cristina César, A teus pés, 1982.)

Quem nunca cometeu um pleonasmo na vida que atire a primeira redundância. Essa insistência desnecessária feita de forma intencional ou viciosa da escrita a que chamamos pleonasmo diz muito sobre quem o escreve. Entrar para dentro, sair para fora, subir para cima, descer para baixo são exemplos clássicos de expressões condenadas de pleonasmo vicioso e que pode causar dor aos ouvidos mais letrados, mas que são recebidas com complacência por aqueles indivíduos menos afetados pela ditadura linguística.

Mas o que há de mal em dizer “Pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei pra cima sem medir mais as consequências”, versos do texto Mocidade Independente da poetisa brasileira Ana Cristina César, um dos principais nomes da década de 70 pertencente à geração da Poesia Marginal ou poesia de mimeógrafo que era o equipamento que produzia as cópias dos textos escritos a partir de matriz perfurada ( estêncil ) afixada em torno de pequena bobina de entintamento interno e acionada por tração manual ou mecânica num período de ditadura militar no Brasil.

Penso que, assim como essa poetisa que viveu “em estado de emergência”, nas palavras de Florência Garramuño, argentina estudiosa de sua obra, e, desse modo, transitou com avidez por áreas distintas, desde a poesia, passando pelo cinema, pela crítica literária e pela tradução, uma pessoa que resolve infringir “a regra de ouro”, seja ela em que contexto for, está pouco preocupada em saber o que o outro pensa dos seus atos, está em estado de emergência, na iminência de uma condição circunstancial que pode justificar procedimentos em razão de uma nova realidade. Estar “em estado de emergência” é chegar ao limite da exaustão. Querer sair do convencionalismo e de um casulo confortável e se perder para se achar. Esse jogo de palavras, paradoxo gramatical, rompe com um sistema voraz que desprende o indivíduo das rédeas que o aprisionam em nome de uma falsa segurança de felicidade.

As regras, sejam elas de ouro ou de papel assinadas em cartório, são sacramentadas. Elas pressupõem que existem acordos e as palavras neles ditas ou escritas são como fios de bigode, expressão antiga que remete à ideia de que a honra está em cumprir a palavra empenhada. Mas a pessoa que quer “voar pra cima” dá um salto quântico na vida. Rompe com padrões estabelecidos e por isso é duramente criticada. Mas ela “segue o baile” como dizem hoje muitos jovens, a mocidade independente, cuja existência breve não lhes conferiu ainda tamanha fidelidade com a ditadura do convencionalismo e que, por isso, permite-lhes esse “seguir o fluxo” sem muita culpa. Aos de gerações anteriores o quebrar as amarras e seguir adiante confere um atrevimento e lança o aventureiro a um caminho sem volta. Dilata, expande a alma e a liberdade a ponto de não ser possível caber mais naquele espaço. Mas também não se conhece a dimensão atingida e por isso esse entre-lugar desmonta um padrão e o coloca em fronteiras perigosas. A impressão a partir daí é de se viver na contramão da vida e da sociedade. Um espaço de interstício e de deslocamento. Não se é nem uma coisa nem outra, mas com toda a certeza não é mais o antigo modo de ser. Acredito que, pelo pouco que sei da poetisa Ana Cristina César, ela sobreviveu a esse caos entre ser algo que se esperava dela e o que esperava de si mesma e, nessa confusão nada poética, culminou na trágica forma de encerrar uma existência: o suicídio. Um ponto final marcado com dor e que grita como um ponto de exclamação. Sempre pensei isso sobre grandes nomes da música, da literatura que foram embora precocemente: pessoas egoístas, mas corajosas. Muitos artistas morreram cedo ou tiraram sua própria vida num momento de desespero e de incompreensão diante da vida e do vício (muitas vezes). Ao sair da vida num ato de se atirar da janela do apartamento dos pais, no Rio de Janeiro em 1983, a poetisa não teria pensado no sofrimento dos pais, dos fãs, mas em si mesma. Abreviou talvez o que para ela estava sendo desprezível, uma vida sem sentido, uma melancolia.

Numa época em que a depressão não era ainda o mal do século e num tempo em que o nome de certas doenças eram impronunciáveis no seio de um lar, a dor da alma era velada, incompreendida e desafiante. Sabia-se da tristeza e do sofrimento quando o fato estava consumado. Não existiam ainda os fármacos antidepressivos como Cloridrato de Paroxetina, Fluoxetina, Sertralina, a Escitalopram, Prozac e tantas outros inibidores seletivos da recaptação da serotonina que aliviam os efeitos da depressão e dão uma sobrevida a muitos pacientes. Uma pena que esse avanço científico tenha chegado muito tempo depois. Pensamentos suicidas como os que provavelmente cometiam Ana Cristina César e tantos outros escritores como Virginia Woolf, Sylvia Plath, Ernest Hemingway, Jack London, Camilo Castelo Branco, Florbela Espanca, Antero de Quental não culminassem no ato final “como um carro em fogo pelos ares.”

Ao querer voar pra cima, Ana Cristina caiu pra baixo, despencou da janela do apartamento dos pais. Um pleonasmo. Quem quer subir pra cima não poderia ter caído pra baixo e encerrado uma vida às avessas. Pleonasmo vicioso. Ana Cristina César contrariou a principal regra de outro da vida: os filhos é que devem sepultar seus pais, pois enterrar os pais é mais do que um dever, um costume, um ritual. É uma das experiências mais marcantes da existência, mas a poetisa a quebrou “sem medir consequências” como diziam seus versos. Estava na contramão. Era momento de romper limites entre a vida e a morte. Fronteira perigosa que exige astúcia, treino de vida que ela ainda tinha pela frente. Pela primeira e única vez infringiu a regra de ouro e voou pra cima. Não conhecia ainda os livros de autoajuda que dizem que “se a vida te desafiar dobre a aposta.” Uma literatura considerada por muitos como um campo à margem da esfera cultural, um filão promissor no mercado editorial que vende muito mais que a poesia de Ana Cristina e de tantos outros poetas. Ana Cristina apostou na morte. E ela venceu.

SUELY ROMERO
Enviado por SUELY ROMERO em 02/12/2018
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