Transição capilar: a força do cabelo na identidade negra

O cabelo é um dos pilares estéticos na vida da mulher. Na vida da mulher negra esse pilar é especialmente doloroso.

Décadas atrás, quando o ideal de beleza já era branco, mas a tecnologia ainda não havia evoluído o suficiente, as mulheres negras se arriscavam a todo tipo de produto que prometia fios lisos. Processos dolorosos e muitas vezes perigosos, iam desde ferro quente à soda cáustica. Todo esse esforço em nome de um padrão que não as representa em nenhuma camada.

Recentemente, porém, algumas mulheres negras, cansadas da dor e das imposições sociais, resolveram parar com os processos químicos de alisamento. À essa volta ao cabelo natural, popularizou-se o termo transição capilar.

A transição capilar, contudo, passou a ser muito mais que uma escolha estética, tornou-se uma questão de identidade. Muitas daquelas mulheres sequer se reconheciam como negras. A transição capilar não só é um reconhecimento da própria negritude, mas de sua essência como mulher. Muitas começaram a alisar ainda na infância e malmente se lembravam de seus cabelos. Outras consideravam a modificação capilar uma iniciação na vida adulta, no ser mulher. De uma forma ou de outra, a transição representava muito mais que só cabelo. Era um ato de amor próprio, de liberdade e um ato político. Usar seu cabelo negro era também afirmar um discurso por trás dele, era fazer gritar a voz de todos os negros silenciados no caminho.

Ainda que o alisar não fosse feito especificamente e conscientemente com a intenção de parecer branca, a padronização de cabelos lisos era mais um instrumento do eurocentrismo estético e sobretudo, do racismo. A boca carnuda, o nariz largo, a pele preta e o cabelo crespo são inferiorizados, deteriorados e apagados. Em seu lugar, os traços brancos são escritos e idealizados. A mídia faz o papel de reforço, bombardeia o público com produtos que vão do cabelo à unha do pé e a pressão estética é enorme. O ódio a si mesma é uma vantagem para a indústria, que transforma esse ódio em produto, oportunidade de venda.

O ideal capitalista aliado ao racismo e ao machismo são munição suficiente para que a sociedade oprima mulheres negras dentro de seus próprios corpos. Na contramão, as mulheres que reafirmaram o crespo depois de uma vida de alisante mostram a força que seu cabelo pode ter.

HISTÓRICO

O esforço de modificação capilar é um passado extenso. Há décadas as mulheres negras se sacrificam para alcançar um ideal branco inalcançável de beleza.

Pelos anos 30 foi criado o cabelisador, um instrumento de metal com formato semelhante a uma tesoura, mas com duas chapas no lugar das lâminas. O instrumento devia ser aquecido ao fogo e em seguida passado no cabelo, moldando - e queimando - os fios. Posteriormente o cabelisador foi substituído por um pente também de metal com o mesmo princípio de uso.

Pela década de 50, começaram a surgir produtos químicos com a finalidade de alisar os cabelos. Esses produtos eram inclusive feitos a base de Soda Cáustica, hoje usado para desentupir tubulações.

Esses processos eram, e continuam sendo, não apenas desconfortáveis, mas perigosos também. Externamente, além de quebrar os fios e queimar o couro cabeludo, podem causar também Alopecia, a queda brusca dos cabelos. Internamente, mudam o pH do cabelo e produtos com formol podem causar intoxicação. Todo esse esforço para se adequar a um padrão branco que perdura até hoje.

Mesmo nos anos 70, quando o movimento hippie impulsionou uma valorização do volume crespo, a Lye Relaxer, empresa conhecida pelos químicos alisantes, lançou um produto novo, com hidróxido de potássio. Afinal, ainda que essa temporária valorização não fosse nada mais que uma moda, mulheres negras usarem seus cabelos naturais era mais que um risco às indústrias, era uma afronta.

A TRANSIÇÃO

Somente na segunda década dos anos 2000, as mulheres resolveram dar um basta no alisamento. Cansadas de todo esse esforço físico, mental e financeiro, começaram a fazer transição capilar. A transformação consistia basicamente em parar com os alisamentos químicos, esperar o cabelo sem química nascer e cortar o restante alisado.

Apesar de libertador, não é um processo fácil e muitas mulheres não conseguem concluí-lo. Se ver completamente fora dos padrões machuca a auto estima. Os olhares de julgamento dizem que são desleixadas, “não alisar” é “não arrumar”. O cabelo afro não é visto como uma outra opção paralela ao liso, é visto como inferior, e nenhuma mulher quer ser inferior.

Ao anular uma característica negra tão forte, tiram de si o reconhecimento de sua negritude. Elas passam a ser morenas, não negras. Não se ver como negra tem muito mais impacto que uma nomenclatura. Pois não se declarar negra é também se desvencilhar de todas as situações de racismo que um negro passa. Elas passam a não se sentir parte desse grupo e isso implica num sentimento de “não é problema meu”. Elas não sentem, portanto, que devem ser agentes da mudança. Muitas vezes sequer percebem que estão sendo discriminadas. Essa é mais uma estratégia do racismo, é muito mais fácil ganhar de quem não sabe que está jogando.

A cultura do liso é tão forte que mesmo com todos os riscos dos produtos químicos, muitas mulheres começaram a alisar o cabelo com 6, 7 anos de idade. Ao chegar na fase adulta, mal se lembravam de como era seu cabelo natural. Ficavam presas a velhos paradigmas, “era muito cheio”, “muito armado”, “muito rebelde”. E supondo que essas fossem realmente características ruins, elas sequer se lembravam se isso era verdade, mas foi isso o que ouviram a vida toda..

As mulheres negras sempre tiveram que conviver com esse bombardeamento de julgamentos. Eram submetidas a aceitar como verdade absoluta que o seu natural era feio, que alisar era um hábito normal como passar desodorante. Sempre tiveram que se alinhar a um padrão de beleza que não era belo, era branco.

O cabelo negro traz consigo um preconceito velado. Em se tratando da pele, há um consenso geral de que ojerizar a pele preta é um ato de racismo. Mas ofender outros traços físicos advindos da afrodescendência muitas vezes é tolerado. Por isso, mesmo a mulheres negras sempre tendo sido nutrida de ofensas ao seu cabelo, não se davam conta que na verdade estavam sendo nutridas de preconceito.

Felizmente, nos últimos anos o movimento negro ganhou força e trouxe a tona várias dessas questões. O movimento fez mais do que debater o racismo, fez sentir na pele que era possível lutar contra esses paradigmas. A estética negra vem, pouco a pouco, sendo valorizada pelas outras pessoas, mais importante, valorizado pelo próprio negro.

Ainda que a transição seja um processo longo e reflexivo, cada mês é também uma deliciosa surpresa. Cada centímetro novo de cabelo é um misto de medo e ansiedade pelo resultado. Aquelas que conseguiram terminar a transição e chegar finalmente ao cabelo natural, experimentaram uma sensação única de emancipação. A liberdade da transição não era só a de não estar mais presa a procedimentos capilares, mas sobretudo liberdade de ser quem se é, de saber quem se é.

Bárbara G Leal
Enviado por Bárbara G Leal em 09/12/2018
Código do texto: T6522734
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