Beleza, objetiva ou subjetiva?

É praticamente inevitável, ouve-se uma música, ela adentra os recônditos de nossa alma e reverbera. Lemos uma poesia e sentimo-nos em êxtase. Olhamos para uma obra de arte plástica e entramos, por momento que for, na unidade da perfeição. Ou ainda, não precisamos ir tão longe, ao encararmos aquela pessoa que por vias indeterminadas achamos proporcional, cândida e perfeita. Experimentamos o sentimento de beleza de diversas formas.

Cada época tem sua unidade particular, que se mescla ao todo elaborado e acumulado. E se em meu primeiro texto sobre a beleza eu exercitava o intelecto dizendo que ela era de natureza introspectiva, agora eu não desminto isso, apesar de ser muito mais cauteloso em relação a essa idéia. Dizia eu que se um homem só conhece uma mulher sua noção de beleza se reduzia ao amostral que ele está sujeito e se mais mulheres aparecem, então, ele seria capaz de fomentar uma noção mais elaborada do conceito que erigiu ao longo de sua vida.

Contudo esqueci de uma faceta obscura dessa hipótese. Seria capaz o homem que conhecesse mil mulheres achá-las todas feias? Seria o conceito de beleza de tal porte, mesmo que introspectivo e subjetivo, que transcendesse essa idéia da variedade que amplia o conceito? Não poderia mesmo que vivesse uma vida inteira e ao passar décadas ele não experimentasse realmente um uno consigo mesmo? Não poderia o homem estar diante de mil horrendas manifestações desorganizadas e desproporcionais a tal ponto de nunca se sentir completo?

Cedo, contudo, ao conceito de introspecção. A nossa noção de beleza é também grandemente influenciada pelo nosso ambiente, o social conta. E conta muito.

Cada época tem seu particular nas manifestações dignas de inserção na categoria de mais belas. Mas nem por isso elas deixam de perder sua característica intrínseca. Pois por mais que vejamos uma mulher roliça em um quadro antigo, que seria a mais perfeita manifestação do corpo humano feminino na época, ainda que não equivalha à nossa, continuaria numa coesão tão digna de admiração quanto na época que foi feita. Se por acaso olhamos para a representação egípcia temos como achar a beleza daquela forma, inocente muito mais que elaborada, mas de qualquer maneira não deixa de ser bela em si. Pois por mais que não admiremos a mulher em si, o quadro em si continuaria belo.

A beleza nesse caso depende de entendermos a noção da época, que sejamos capazes de sair de nosso eixo cultural para abranger noções mais amplas de representação. E se uma bela mulher egípcia vivesse hoje seríamos tão capazes de classificá-la como bela quanto classificamos nossas atrizes globais. Temos que separar, significativamente, o natural do representado.

Ver uma bela mulher é algo tão completamente diferente de apreciar sua foto que chega a existir um paralelo de obscuro entre uma coisa e outra. Ainda mais em nosso momento social que se valoriza tanto essa representação, dita real, que chamamos fotografia. Como um quadro a fotografia é um pedaço da existência de uma cena, em determinado instante e alheio a todo o resto. Uma pintura fotográfica é diferente. Por mais que saibamos que ela é fiel, um quadro nunca é pintado instantaneamente. E no processo de pintura o artista faz as modificações que achar necessária. A lente da câmera não. O Photoshop sim. (sei que podem questionar aqui que com lentes e filtros adequados podemos modificar a imagem fotografada, mas com algum conhecimento desse meio podemos dizer em uma fotografia quais elementos foram usados, e se foram usados, cabendo a nós nos precaver contra essa artimanha).

Basta recuperarmos uma foto de família que date uns 10 anos passados para que vejamos, com total simpatia a admiração, a beleza de nossa existência passada. Por mais que nos achemos feios, ridículos ou antiquados ainda sim vemos com beleza nosso passado, por ser nosso passado. Mas não podemos dizer que nos sentimos embelezados se pegarmos uma foto de uma família qualquer de Singapura. O contexto da foto é nulo e a avaliamos projetando nela conceitos e idéias que temos aqui em nossa cultura. O que não é preciso, de maneira alguma, quando vamos à exposição de um fotógrafo profissional e artista em que suas fotos por si só independentemente de qualquer plano social falam sozinhas e têm uma coesão única digna de apreciação. Daí vem a diferença entre achar a mulher do quadro bela, ou achar o quadro belo. Ao achar a fotografia bela ou a mulher dentro dela linda. O contexto faz diferença.

Como entender um livro de Kafka sem entender seu contexto sócio-político? Como apreciar a feiúra dos quadros de Goya sem que saibamos o que ele retrata de maneira tão bela, mesmo que horrenda? Inevitavelmente o entendimento interfere na fruição de uma obra de arte. E se em tempos atuais as artes plásticas descambam pro total abstracionismo é porque falta algo de interação entre autor e público. Tolstoi em sua exposição sobre a Arte diz que acima de tudo a Arte é um meio de comunicação, entre artista e fruidor, e se esse processo comunicacional falha, falha também a obra como Arte.

Porque falo de Arte aqui? Pois ela é comumente associada à noção de belo. E nada me tira a idéia de que para se esclarecer essa sensação de beleza que temos o melhor caminho é partir das Artes para chegar à vida. Mesmo que o caminho inverso tenha sido feito antes, quando saímos da natureza para as artes, por incompletude ou qualquer outra causa.

Praticamente todas as teorias da Arte conjugam de um fator primordial, guardadas as diferenças de pensamento: a Arte é uma integração do material com o espiritual, seja esse espírito uno com o corpo ou dual. Seja o mental decorrência do funcionamento do corpo ou seja um ente separado. A Arte aproxima esses dois lados, e quanto mais elevada a obra de arte, maior a fruição, ou potencialidade de...

Então, no momento, posso conflitar paradoxalmente essas idéias em que o amostral que temos de experiências agradáveis conta como fator primordial para nossa noção de beleza, aliada ao nosso âmbito sócio-cultural sem deixar de crer também que a beleza é algo, em parte, separada desses maquinismos e regras que parecem se impor sobre nós.

Tenho aqui que contar de forma resumida o que Ortega Y Gasset apresenta em seu ensaio “Adão no paraíso”. Ele diz, sucintamente, (coisa corroborada pelo livro Pintura e Sociedade de Pierre Francastel) que a arte parte ao longo da história da representação, nesse ponto ressalto que a arte comentada é a pictórica plástica, para a aproximação do ser humano. Explico. A representação plástica se pautava, em seu inicio, de uma busca para a melhor retratação das coisas como vemos, exatamente como vemos. Então a perspectiva foi criada com o intuito de aprimorar as proporções, as distâncias, o horizonte etc. À medida que o tempo passa essa representação vem se aproximando o olho humano, e assim chegamos às representações que buscam retratar não o que olhamos lá ao longe, mas como olhamos, como aquilo tudo é representado em nossa retina, daí o expressionismo. E mais, com o passar do tempo, a arte se retrai mais ainda para dentro da cabeça do sujeito artístico. O cubismo de Picasso nada mais é que a representação das percepções que ele tem através do tempo das formas brutas da paisagem que ele aprecia. E hoje em dia, essa parte já digo por minha própria conta, a arte se pauta não na representação da paisagem que se vê de forma abstrata e introspectiva, mas sim a arte se dá em nível de representação da própria idéia do sujeito, sem qualquer respaldo exterior. Se se faz uma escultura das seções de uma esfera ao longo de um percurso no espaço-tempo, isso pode até ter representação real, mas é puramente formal, é uma idéia. A arte se aproximou tanto do ser que cada peça artística passou a ser tão incompreensível quanto é cada ser humano.

Quando a arte se retrai a tal ponto e se distancia muito do público este vai buscar suas referências em outro canto. Quero deixar claro aqui que não foi por causa do distanciamento da arte que isso ocorreu, mas sim é uma das facetas do momento vivido pela sociedade, que engloba muito mais coisas.

Com o advento da fotografia, da mídia impressa e televisiva, a imagem passou a ser desvalorizada e valorizada em um processo bem paradoxal. E nosso conceito de beleza ficou à mercê dessa fábrica de sonhos.

Aqui volto ao conceito de espaço amostral para a elaboração do conceito de beleza. Com o advento de revistas, jornais, outdoors, busdoors, buildingdoors, panfletos, e-mails, fotografia digital, internet, celulares multifuncionais etc, ficamos imersos em uma sociedade em que a imagem está em todos os lugares. Como eu disse mais acima, ver a foto de alguém e ver alguém são dois processos abissalmente distintos. Idéia essa que acaba indo por água abaixo se considerarmos que vemos o mundo muito mais por imagens que por visão direta. Há uma inversão de valores. Hoje em dia mostra-se a foto para mostrar a pessoa, e se ela não corresponde à foto, é meramente um detalhe.

Conhecemos artistas em níveis corpóreos melhor que eles mesmos, já vimos as belezas do mundo inteiro, viajamos para continentes inteiros, sabemos diferenciar detalhes ínfimos de coisas aleatórias etc. Confesso que se alguém assistir um documentário da Torre Eiffel se encantará com a estrutura, sua história e demais encantos particulares desse monumento da humanidade, mas se chega-se ao vivo para vê-la, depois de cinco minutos já se cansa de ver aquele monte de ferro retorcido e sujo, tira-se duas ou três fotos e continua sua caminhada.

A vida passou a ficar mais vívida através das lentes, as coisas em si deixaram de significar. Repito, as coisas em si deixaram de significar.

Aqui eu entro com mais um detalhe ao paradoxo sugerido acima. Nossa noção de beleza nos fatores amostrais e sócio-culturais refletem nossa interação com o meio e como ele interfere em nós. Mas existe a noção de externalidade sobreposta. Para fugir ao determinismo da nossa formação como única integrante do nosso conceito de beleza, temos esta força externa que está fora do âmbito maquinal, a aleatoriedade da vida que incute nalgumas coisas essa sorte da beleza. À isso eu proponho o significado que damos às coisas que experimentamos como diferencial.

Se nosso conceito de beleza depende do significado que damos aos nossos sentidos, às nossas experiências, então essa significação exagerada, que temos a tendência hoje em dia de protagonizar, interfere sensivelmente no que vamos achar belo.

Em uma discussão com um amigo sobre o tempo, ele propôs de forma muito contundente o assunto da música. Que só existe se nos pautarmos em nossa memória do tempo em que a música transcorre e conseguirmos dar um significado ao todo ao rememorarmos o conjunto inteiro depois de executado. Um tom, uma nota sozinha de nada adianta e não conseguimos achar belo um dó solto. Mas se ao acompanharmos a execução de uma música e formamos em nossa mente todo o conjunto das variantes tonais que ouvimos ali podemos nos comprazer em apreciar a música como uno. Isso porque conseguimos dar significado ao que ouvimos.

Mas se sairmos do âmbito musical e caminharmos para o âmbito imagético será que poderíamos supor a mesma coisa?

Afinal uma representação, uma imagem, seja ela fotográfica ou plástica não nos obriga necessariamente a termos memória de suas partes para compô-la e apreciá-la. Numa olhadela em um quadro pequeno conseguimos apreender todos os aspectos ali representados e conseguimos fruir a imagem de forma inteiriça. O que então é necessário nesse caso para que achemos uma imagem bela?

Creio que é o significado que damos àquilo que experimentamos.

Mas esse significado não depende inteiramente de nossa noção cultural e de nossa espaço amostral de imagens significantes. A beleza se manifesta de forma independente. Ou melhor, nossa capacidade de olhar algo e dotá-lo com significado, independe de nosso âmbito cultural.

Nesse ponto tenho que ressaltar que a maioria das coisas que achamos belas está diretamente relacionada com a faculdade de associar a coisa vista ao nosso conceito sócio-cultural de beleza, mas que existem casos em que isso é extrapolado é fato, e esse fato conta mais que a regra usual.

“A verdade, como a arte, está no olho do observador.” Frase proferida lá pelo fim do filme “Meia noite no jardim do bem e do mal” do diretor Clint Eastwood. Se consentirmos com o fato do objeto a ser apreciado possuir propriedades inatas e por causa dessas propriedades é que o achamos bonito, deixamos que essa noção adentre em nosso conceito do que é a beleza. Como já dito, repetindo, nada melhor que a Arte para nos ajudar na idéia do que é belo. Daí consegue-se chegar a uma pergunta fundamental, mesmo sendo o conceito de belo subjetivo teria o objeto assistido propriedades independentes que nos fariam subjetivamente apreciá-lo como belo? Como se fosse uma conjunção de dois processos concomitantes. Pois se olharmos pelo lado do processo mental há dois tipos de estados que experimentamos (aqui grosso modo, pois existem muitos mais), aquele que olhamos um objeto, uma pessoa, e instantaneamente achamo-los belos, e aquele que através de um tempo, através de uma afetividade conseguimos ver a beleza no que olhamos.

Damos o significado à coisa que vemos. Fato. Nada que vemos deixa de ser filtrado por uma rede de valores que temos dentro de nós. Também nada nos diz de conclusivo que nossos valores são passados pela nossa cultura. A graça do ser humano está aí mesmo, em não ter regras, existem seres que mesmo imersos em uma realidade conseguem criar valores completamente diferentes dos vigentes ao seu redor. Não existe uma relação causal direta entre meio e formação, por o ser humano ser aessencial ele consegue fugir de determinismos desse tipo. A regra é uma, mas há exceções. A história de que o meio faz o cidadão é falácia, o tanto o meio quanto o cidadão estão existindo ao mesmo tempo, mas uma relação causal direta é impossível. Não existe essência, ou espírito a priori. Se fosse assim um chinês que nascesse e fosse trazido para o Brasil seria de mesma maneira um chinês, coisa que não ocorre. Um ser humano deixado junto com uma matilha de lobos, se incutiria na matilha como um elemento integrado, nunca aprenderia a falar, nunca andaria como um bípede. O espírito se forma, não vêm agregado.

Muitos afirmam a arte ser um contato do físico com espiritual, causando uma integração transcendente. Outros afirmam a arte ser a manifestação do espírito no sensível causando um sentimento de imanência.

Creio que as obras artísticas surgem de um sentimento de incompletude. O artista, só cria porque incompleto (regra que tem suas exceções). Diz-se que o sábio não se sente incompleto, pois não há nada mais a aprender e vive completo, imerso no conjunto do universo como peça perfeitamente ajustada. Nesse ponto o artista é o contrário do sábio. Cada peça artística serve de caminho para o aperfeiçoamento da existência humana, pois uma beleza artística só tem o fim em si mesma, e a finalidade dela é deixar o ser humano fruir dessa existência deixando-o próximo de uma completude, seja transcendente ou imanente. Não que um artista busque isso na elaboração da obra, mas que o resultado é capaz de ocasionar isso, é corrente.

Não sei se o leitor já protagonizou essa experiência fantástica que é viver um momento e durante aquele momento não querer mais nada a não ser viver. Não desejar que aquilo dure para sempre, não desejar mais nada que estar vivendo e vivendo daquele jeito. É um sentimento de euforia contida e completude tranqüila que ressoa pelo ser inteiro. E por causa desses momentos, raríssimos é que conseguimos ter essa completute. Que é similar na fruição da beleza. No momento em questão nada era mais belo que tudo o que existia naquele momento. Nada era mais perfeito que a beleza, bela e feia ao mesmo tempo, do instante de completude. E a beleza é essa tentativa sempre renovável de percorrer esse caminho novamente.

Mas a Arte é um auxílio, um artifício. André Comte-Sponville disse em um de seu livros, e a frase não vai exata, algo assim: A função dos livros é fazer-nos livrar-nos deles. A vida é o que importa e o que nos ajuda a viver é essa busca pela completude, que por mais imperfeita que seja, tende a satisfazer. Aqui não interessa o fato da dúvida eterna se o espírito é um ente externo ou algo decorrente e inseparável do corpo humano, mas o sentimento experimentado, que é de mesma grandeza para todos, independentemente da questão do espírito.

Como materialista ateu eu creio que a vida não possui um sentido intrínseco objetivo, coisa não compartilhada com pessoas religiosas e idealistas. A vida é desprovida de sentido e cada pessoa dá a ela o sentido que conseguir. Afinal cada um vive como pode com as ferramentas que têm. A beleza, partindo desse pressuposto, não é uma manifestação do espírito em um pedaço elaborado do sensível. Nem um pedaço sensível que mostra o caminho de integração com o absoluto. A beleza é a forma com que encontramos de nos adequarmos à falta de sentido da vida, uma desculpa para sentirmos completos aqui nessa vida que é a única que temos.

Somos aquelas bexigas de festa, murchas que são preenchidas por algo de ar, que vemos como nada. Poucos são aqueles que conseguem fazer desse nada, dessa falta de sentido, algo. Inflando-se em uma forma com significado, poucos são aqueles que conseguem se fechar, dar o nó no bico da bexiga, e suportar a pressão que faz com que a bexiga signifique algo. Poucos são aqueles que saem da mesmice de estar dentro do saco com as outras bexigas murchas, poucos se inflam. Essa forma, essa coesão, decorrente da pressão interna, é que faz com que o sentido que damos à vida seja uno conosco. Somos a bexiga, seja inflada ou não. Concordamos com isso? Vejo então a vida como um processo de inflar a bexiga e o ar que entra tem que ser forçado, o desenvolvimento interno é de tal forma tão difícil quanto, e poucos são os que conseguem amarrar a forma feita e inflada. Nesse processo a arte, através da beleza, faz com que suportemos mais pressão. Ela faz com que nós ampliemos nossa consciência, inflar nossa mente, e através desses momentos sejamos mais humanos, mais próximos de nosso conceito de nós mesmos. Mesmo que isso seja nos desagregar de nosso ego. Nosso ego é a nossa parte que nos deixa intrinsecamente ligados às nossas origens. E quanto mais nos ligamos a elas, mais impotentes ficamos em nos permitir fruir demais formas, conteúdos, experiências etc. O ego é a força que o ar faz para sair da bexiga. O conceito kantiano de mente expandida já dizia isso muito bem. E, novamente cito de cabeça sem muita precisão, Einstein já dizia: Uma vez que a mente dá uma passo rumo à expansão, é impossível voltar atrás. Ao inflarmos a bexiga ela se deforma, e a deformidade é permanente. Não adianta queremos voltar à condição antiga.

Não é o que se vive, mas como se vive. A beleza, aliada ao conceito de expansão da mente, é de tal forma um combustível para a vida, sabendo-nos nunca capazes de alcançar o nível do sábio que vive imerso no todo sem sofrimento, nem do nirvana budista, tampouco da ataraxia de Epicuro.

A beleza é o estado em que ficamos quando, por qualquer meio, conseguimos, ao mesmo tempo, sentir uma completude em relação a nós mesmos e em relação ao todo. Nesse ponto a noção de conceito social subjetivo se une inegavelmente ao todo e essa ponte é a classificação da beleza em âmbito único, pessoal, mas com respaldo em tudo que vivemos. Um filho é belo para o pai, mais belo que as demais crianças, porque como criança ela é bela, e como fruto de geração pessoal ela é mais bela ainda, subjetivamente falando. Uma obra de arte plástica é bela, pois apesar de ter sido feita por um outro ela consegue comunicar essa parte dele que fica à mostra em relação ao todo. O fruir de uma obra de arte é ver o filho dos outros como se fosse seu. Um romance é a visão subjetiva do escritor em relação ao que escreve, mas que por uma integração de humanidade respalda em nós de maneira a nos dar esse tom único de beleza em relação ao todo. Um lampejo secreto que o autor teve, uma portinhola para apreciar nós e o todo ao mesmo tempo integrados.

***

Muitos falaram da beleza e enquanto se fala sobre ela, geralmente, a dividem em categorias, das mais sublimes às mais grotescas, essa divisão, contudo, parte de um principio que unifica as divisões num conceito só, elas bebem da mesma fonte. E é muito complicado falar dessa essência da beleza. Pois é algo tão obscuro quanto à mente de um ser humano.

O sublime, o belo, o risível, o humor, o grotesco, o drama, a tragédia, todas elas são manifestações e divisões do que chamamos de belo, mas parte-se do pressuposto de que a noção nasceu da natureza. Seriam os nossos ancestrais capazes de, introspectivamente, apreciar uma paisagem bela, um belo exemplar do ser? Acho que sim, essa noção é a mais antiga de todas, mas foi se desenvolvendo na medida que o ser humano foi-se desenvolvendo e se hoje em dia temos estratagemas para subdividir a beleza, não passa de mero formalismo acadêmico para tentar entender a confusão em que nos metemos.

Indiscutivelmente nosso amostral e nosso ambiente nos influenciam a montar nosso conceito de beleza. Na África há tribos que apreciam mulheres obesas como símbolo do belo. Vemos tribos na Indonésia que declamam sua admiração por mulheres com maior numero de ornamentos, esses que deformam o corpo e o rosto das mulheres. Podemos suscitar muitas diferenças entre os conceitos de beleza que existem, mas se por um lado objetivamente a beleza se manifesta em diferentes objetos e seres, o sentimento experimentado é parecido, senão igual. Esse sentimento é o que caracteriza a beleza. No fundo, hão de discordar de mim (ainda bem!), não há objeto belo, há somente sentimento de beleza. Porque não é bela antes e por isso eu a aprecio, mas só porque eu a aprecio que ela se mostra como bela para mim. Spinoza já pormenorizava em seu conceito de valor na Ética.

Há contudo algumas manifestações universais que tendem a serem apreciadas por muitas culturas, e diferentes culturas conseguem compartilhar de um sentimento de beleza. Há de ter alguma coisa intrínseca nisso que dê a oportunidade do pensador a apontar algo que seja desse fator integrante.

Que seria então algo que todas as culturas compartilham?

Não creio que possamos nos distanciar muito de uma rápida resposta que vêm à mente. Somos todos humanos. O ser humano compartilha dessa mesma essência, que já disse anteriormente, de ser aessencial. Mas nessa qualidade há a razão, a consciência, os atributos de qualquer ser humano têm para poder seguir qualquer caminho que lhe for mostrado. Nos criamos e recriamos na educação. Assim há inerente em nós a pré-disposição para a qualificação de algo como belo. E não como alguma coisa forçada. Ninguém ensina a ninguém o que é belo. Posso mostrar inúmeros quadros ao meu amigo, e nem por isso ele vai achá-los belos. Posso apresentar O Pensador de Rodin a tantas pessoas e a tantas delas vai passar como algo sem importância. Teríamos nós como dizer que um objeto é belo independentemente do observador? Creio que não. Mas podemos dizer que todos os observadores apreciam o belo como lhe convém, mesmo que universalmente. Há nisso um profundo problema de probabilidade. Poderia milhões de seres de culturas distintas aleatoriamente se interessarem e acharem belo um objeto concomitantemente?

Essa redundância toda que pratico é para rodear o problema, que é por si só vicioso em seu círculo. Ele empurra o pensador a sempre cair em uma armadilha que leva a outra. E por isso, ao circular o problema, pretendo mostrar que ele não pode ser resolvido se não saindo de seu âmbito. O sentido da beleza não está na beleza, mas sim em quem a elabora.

Pego aqui a noção de Jung do inconsciente coletivo para tentar aproximar essa noção universal de beleza do ser humano, que passa de gerações para gerações sem nunca deixar de ser experimentada como sensação do belo. Por mais que os conceitos mudem de gerações para gerações o que se sente continua sendo praticamente o mesmo.

Espanta algumas pessoas olharem para trás e dizerem, “nossa olha Mozart, olha Baudelaire, olha Shakespeare, como podem achar essa banda de hoje boa? Como podem achar esse poeta recente bom? Como acha-se perdida a dramaturgia atual.”

O conceito de beleza é variável e muda constantemente, principalmente nas gerações que se sucedem. Se não mudassem não poderia haver a história da beleza. Ela tem seus momentos culminantes e tem seus abismos, dependendo de quem a veja, de quem a retrate. Disse Victor Hugo em seu prefácio a Cromwell; no começo dos tempos a poesia era lírica, a ode, depois se transformou na epopéia, Homero como maior virtuoso, para depois transpor-se no drama, que perdura até hoje. Os conceitos de beleza vão se modificando. E não se tem como dizer que eles partem de uma mesma origem, não existe perfeito absoluto do conceito de beleza de qual decorrem todas as outras noções.

Assim como a representação da arte foi migrando para dentro do ser humano assim também foi a filosofia. Que no século passado ficou transparente quanto se empenhou em desconstruir o ser humano, em esmiuçar e destrinchar cada detalhezinho, dando rumo ao estado atual da ciência, principalmente aos estudos sobre a dualidade mente-cérebro. Nessa redução, creio que o conceito de beleza já não possa ser atribuído a alguma externalidade, mas sim a paradoxal conjunção dentro do sujeito que sente a beleza de forma absoluta e transcendental. Afinal o ser sensível se mistura com o ser espiritual.

(Não tenho como discutir essa idéia da separação do ente físico com o ente espiritual, no meu conceito particular eles são inseparáveis e porque o corpo funciona existe o espírito, igual à uma máquina que quando funciona cria um campo magnético ao seu redor. A dualidade partícula-onda da física quântica embasa o pensamento que tudo é uma coisa só.)

Aceitando-se essa interiorização no ser dos conceitos, não tenho como dizer que o conceito de beleza é fundamentalmente criado pelo objeto que é belo, mas sim pelo observador que cria, mesmo que seja de forma transcendental, a noção de beleza dentro de si.

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“Quando se fala de belo, somos levados a procurar uma essência, uma definição, um critério. Enquanto beleza, sendo uma qualidade sensível, pode ser objeto de uma experiência direta e até unânime.” (Vocabulaire d’esthétique, Étienne Souriau)

leandroDiniz
Enviado por leandroDiniz em 20/09/2007
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