Testemunhas de Jeová e a Terra

Se entendi bem o que pensam as Testemunhas de Jeová, há um número limitado de pessoas (144 mil) que, após a vinda de Jesus, serão alçadas ao “céu”. Esta não é a quantidade total de salvos, mas uma pequena parte deles. Os demais irão permanecer na própria Terra, recebendo um novo corpo e vivendo em mundo paradisíaco semelhante ao Éden. É vital para a crença das Testemunhas de Jeová que o paraíso seja nesta própria Terra que aqui habitamos.

Embora nos últimos tempos essa religião tenha publicado alguns textos dando a entender que a sua crença não contradiz certos pontos que são sustentados pela ciência, a existência de uma eternidade a ser vivida neste mesmo planeta rompe frontalmente com o que já se pode antever a respeito do futuro da Terra.

A fim de que seja possível abrigar vida eterna na Terra, Deus terá que resolver o problema do Sol, que dentro de alguns bilhões de anos já terá crescido o suficiente para impedir a vida terrestre. Terá, ainda, que continuamente impedir que as periódicas quedas de asteroides venham a ter um grande impacto sobre o planeta, sem que se saiba, nesse caso, por que os criou. E como essas há uma série de outras ameaças à existência de uma vida material como a nossa sobre a Terra, sendo que o passar dos anos só as torna mais perigosas e prováveis.

Há de se falar ainda sobre o fim do próprio Universo, que parece tender a morrer de frio e se apagar completamente depois de bilhões ou trilhões de anos (um período, portanto, abrangido pela eternidade).

Essas dificuldades existem apenas porque se acredita na realidade física e material da vida eterna. Se a crença fosse em uma realidade espiritual, não havia o que se questionar a respeito, já que então os salvos viveriam em um universo paralelo que não segue as mesmas regras que este em que habitamos. Mas, uma vez que se defende que a vida eterna se dará de forma material na própria Terra, Deus terá que suspender as suas leis físicas para garantir que nada de grave aconteça com o nosso planeta.

As estimativas feitas a partir do método científico são frequentemente rechaçadas no que se refere ao fim do mundo, desprezadas como se fossem meras especulações humanas, mas elas são feitas a partir do estudo das leis que teriam sido criadas pelo mesmo Deus. É preciso que se diga que a capacidade humana de apreender a realidade é exaltada por essas mesmas pessoas quando o resultado da pesquisa científica endossa o conteúdo bíblico.

O trabalho de Deus para anular aspectos da realidade física deve ser ainda maior se considerarmos que não há previsão de que exista qualquer tipo de dor no paraíso terrestre. Uma vez que se chegou a essa conclusão, foi preciso prever que os próprios animais carnívoros irão se tornar dóceis, o que só se consegue se forem transformados em outra coisa que não o que eles são hoje. Também eles receberiam nova natureza, e não se sabe em que consistiria a cadeia alimentar, e sequer se haveria reprodução (ainda que a Terra eventualmente seja “aumentada”, a eternidade é suficiente para acabar com todos os espaços disponíveis). Se não houver reprodução, haverá algum critério para escolher quais são os animais "salvos”?

Chama-me a atenção que aqueles 144 mil que irão para o céu estão destinados a “governar” a Terra, onde vivem todos os outros salvos, em condições paradisíacas. A dúvida que eu tenho é a qual a necessidade de governo em um mundo que se pinta como perfeito. Se não há guerra, se não há dor, se não há nem sombra de tristeza, significa também que não há injustiça. E, se não há injustiça, para que um governo?

É também interessante que não se faça menção ao destino de nada mais no Universo além da Terra. Quando surgiram as testemunhas de Jeová, na década de 1870, não se conhecia nada além do Sistema Solar (Plutão ainda era desconhecido). Era mais fácil acreditar que, apesar de girar ao redor do sol, a Terra era a razão de ser de todo o Universo, embora não se fizesse a menor ideia da razão de ser dos outros planetas. O avanço tecnológico revelou a nossa posição no Universo, que é das mais escondidas, na periferia de uma galáxia que só uma no meio de bilhões, trilhões de outras, todas com uma enormidade de sistemas solares. Descobriu-se, ainda, que a grandiosidade que se observa no Universo é apenas uma parte de tudo aquilo que existe nele, que há coisas que nunca poderão ser vistas do ponto em que nós estamos.

O que será feito de tudo isso depois do retorno de Jesus? Ou melhor, se a Terra tem toda essa centralidade dada por essa e por várias outras religiões, então o que Deus pretendia com todo o resto do Cosmos? Mera “extravagância”, como já vi ser cogitado?

As teologias de nossos tempos não podem mais ignorar essa realidade cósmica, tanto mais se acreditam que a realidade física é consequência da criação do mesmo Deus. Conhecer o Universo e as suas leis seria, então, conhecer mais a fundo o próprio Deus, com uma autoridade – aqui vai talvez uma heresia – superior à palavra escrita por homens, posto que exata e não sujeita a interpretações. A menos que esse Deus se contradiga, o futuro do planeta Terra não é nada animador.

Frederico Milkau
Enviado por Frederico Milkau em 24/05/2019
Reeditado em 24/05/2019
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