Capítulo 1
 
  

Nasce uma estrela


O crepúsculo chega trazendo consigo uma noite escura. É hora de garimpar estrelas à procura de luz. Tocar   a ponta do arco-íris, no ponto em que  fica o pote de ouro, recriar mundos palpáveis e reviver cenas que vão da captura de uma índia escondida no silêncio da mata, à inquietação de pessoas viajando como formigas à procura de forragens.  
 E assim foi feito.
 No entardecer da aurora de sua existência, o caçador de estrelas debruçou-se sobre uma pilha de livros,  decifrou páginas e páginas como quem procura uma nesga de  lua na franja de uma nuvem. Era preciso recontar histórias que antes estiveram  apenas na oralidade, sem ter que passar pela  experiência dolorosa de muitos escritores que pagaram pela edição de seus primeiros títulos. Raquel pagou;  Queirós também, e Coralina gastou seus Vinténs de Cobre na feitura de suas obras.
Relutou.
As primeiras escritas eram apenas  rascunho daquilo que haveria de ser o livro. Pouca coisa. Muito pouco! Nada mais que parágrafos desordenados e um emaranhado de ideias que precisavam das mãos de uma fada para por a casa em ordem. Não podia fazer mágica. Precisava de transpiração mais do que de inspiração. Isso posto, ordenou a sua mente que alinhavasse  a grande colcha de retalhos, ajustasse os cortes e recortes da história, tecendo a ficção com fios da realidade, de modo a tornar-se um corpo único, sólido e indivisível.  Nela, minúsculas  partículas da realidade surgem diluídas nas cenas e cenários que se dão no campo, na cidade e numa ilha. Seus personagens empreendem viagens ao desconhecido.  Aportam ilhas desertas e vivem experiências de náufrago, que não quer ser resgatado.
 Em primeiro momento, apresenta episódios  na fazenda Campo Grande, baseados em histórias que Corina contava, e,  apesar da robustez das provas,  o garimpeiro das letras temeu atropelar o aspecto temporal, ao tratar das modas de viola na fazenda Campo Grande. Achava que ainda  não era hora de apresentar  “Guaiano em Oitava”, porque Zé Coco do Riachão só gravara aquela música no final dos anos oitenta. Tunico Oliveira, no entanto,  assegurou-lhe que, muito antes de gravar, o músico do Riachão tocava seu guaiano nas fazendas por onde passava, construindo cancelas, e  carros-de-boi, por encomenda de fazendeiros.
Finalmente, dobrou-se na barriga da mãe, como  se fosse “Mozart da poesia”, caçou luas, viveu sóis que queimam estradas de Rhoden, e de tantos outros talentos da Literatura brasileira. Analisou  a opinião do leitor sobre seus textos publicados na Internet e decidiu. “É agora ou nunca!”  E, como nos contos de fada, deu o pontapé inicial.
 
Era uma vez...
 
Ravenala tinha sete anos, e  se lembrava de quase todas as estórias que sua avó  Corina contava. A avó passava a mão na cabeça da netinha e dizia: ‘Durma, Princesa, durma... Vou retirar os monstros dos teus olhos. Pode dormir agora. Eles já se foram!’  Dormia, não sem antes reclamar: “Eles estão voltando, vovó! Os monstros estão em meus olhos e não me deixam dormir. Conte uma estória!”
— Posso contar outra vez A Lagoa Encantada?
— Não, aquela não! Tenho medo da carimbamba.
— Já contei todas  que sabia!
— Pode ser inventada, vovó!  Pode ser inventada.
— Todas as estórias são inventadas, minha filha!
— Então invente uma!
 
E Corina contou.
 
A fada da sabedoria foi convidada para um congresso que deveria acontecer, nos primeiros dias de vida de uma pequena formiga albina. A formiga seria um fardo para o formigueiro, por isso, deveria ter sido arrancada e jogada fora, quando ainda ovo.
 O destino da pequena formiga estava prestes a transformar-se num exílio de vida ou numa pena de morte, mas, por sorte, a fada madrinha postou-se no meio da assembleia e vaticinou: ‘Esta menina será frondosa como uma palmeira, e quando soprar o vento Norte, navegará os sete mares e será muito aplaudida. O som de seu trompete será um acalento para a alma de quem dela se aproxima, e toda a Terra conhecerá seus feitos. ’   Houve profundo silêncio, no mundo encantado das formigas, em seguida, a rainha decretou:  ‘A partir de agora, a formiga albina se chamará Beethoven. Providenciem a orquestra, organizem o espetáculo, quero ouvir o último momento da quinta sinfonia. ’
— Beethoven existiu de verdade, vovó?
— A formiga Beethoven, só existiu na imaginação de seu criador, mas o compositor existiu. A nova sinfonia de Beethoven, por exemplo, faz um bem enorme a minha alma. Por certo, minha filha, gerações futuras, haverão de usar a boa  música para estimular o cérebro humano a se reorganizar.
Teve vontade de dizer que o menino Davi tocava harpa quando, o rei Saul se sentia perturbado por maus espíritos, e logo que Davi tomava a harpa, Saul acalmava-se, sentia-se aliviado e o espírito mau o deixava.  
Pareceu que Corina falava de um menino sem parte do cérebro, que  aprendera a ler e a escrever, ouvindo músicas. Mas... como poderia ela saber de Herman, se ele ainda  não nasceu? Como saber se não será abortado?  Muitos morrem antes de nascer!...
Como morre  uma pessoa antes de nascer, a boneca de Ravenala  não compreendia. Talvez Corina falasse de seu filho Ludovico que tinha  um buraco no cérebro, viveu sete anos e aprendeu a tocar cavaquinho. Ou falasse mesmo de Beethoven! Não necessariamente da formiga, mas do alemão filho de dona Magdalena.
— Beethoven tinha um buraco no cérebro?
— Não! Ele tinha um cérebro privilegiado.
— Não entendi.
— Desculpe-me, Maria Emília! Esqueço que tua cabeça é de pano.
— Branquela!
— Cuidado com o preconceito racial. Isso pode ser considerado crime.  Em algum país do mundo,  é crime quebrar um ovo de tartaruga, mas é permitido matar um feto humano no útero materno.
O diálogo interrompeu-se.  Passos arrastados aproximam-se do quarto.
— É vovó! Finja que dorme!...
— Já estou fingindo.
O trinco deu um estalo e a porta do quarto se abriu. Corina vê a boneca embrulhada em panos de dormir.
— Vovó! Emília está aborrecida comigo.
— Por que sua boneca está brava contigo?
— Dei uma palmada no bumbum dela.
Corina fez uma retrospectiva do que ocorrera naquele dia, e se recorda  de que, ainda cedo da manhã, “acariciara” o traseirinho de Ravenala, com uma palmada, por  causa de uma travessura.
— Durma, minha filha! Assim que o sol nascer,  você pedirá desculpas a Emília!
— E se o sol não nascer de novo? Tenho medo! Não deveria haver noite! Vultos vagueiam. Vampiros e lobisomem passeiam na escuridão.
— Isso é lenda!
— A carimbamba também é lenda? Tenho medo da carimbamba.
— Às vezes,  a ficção avança os muros da realidade ou a realidade penetra o labirinto da ficção. O que hoje é ficção, amanhã pode ser realidade, mas monstros não existem. Eles são obras criadas por mentes doentias.
Ravenala insiste.
— A carimbamba existe?
 — Quando se acredita numa coisa, ela passa a existir de verdade. Mas a carimbamba só existe em teus medos. E agora que ela se casou com a mocinha camponesa, o encanto foi quebrado.
— E a velhinha?
— Bem, a velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor, para que a história nunca acabe, continue viva e passe de geração para geração. A ficção mostra-se  tão real, que  personagens dos contos de fadas saem dos livros e vão morar em mundos reais, como a tua  boneca. Sabes de onde ela  veio?
— Emília  me falou que seu pai era  um homem bom, e foi preso, porque escrevia livros. Se eu escrever um livro, também serei presa?
— Não dê crédito a tudo  que diz uma boneca. Agora, durma, Princesinha.
Corina retirou-se.
 Seus passos lentamente se afastavam, até desparecerem do alcance auditivo da neta.
— Pode acordar,  Emília, a vovó já foi.
— Ufa! Já estava cansada de fingir...
 ***
Capítulo de abertura do livro "Estrela que o vento soprou". Lançamento previsto para o primeiro semestre de 2020.
IMAGEM: INTERNET