LIVRO O ARCANJO, CAP. 2

De repente, como num espanto, novamente, acordo com uma forte luz que se põe a incendiar meus olhos.

Estaria eu no céu? No inferno? Reencarnado num ser humano ou numa barata? Ou será que estava tão somente dentro de mim mesmo, de minha consciência? A ignorância me desagradava, mas não me causava nenhum espanto - já estou demasiadamente habituado ao desconhecer.

Naquele local desconhecido, as gotas d'água caíam lentamente e, quando tocavam o chão, faziam um som muito bonito. Havia também um forte cheiro de umidez.

Pairava no ar uma fetidez típica dos cemitérios, acompanhada do aroma do terror e incerteza. Era um cheiro como que marcado pelo desespero. As luzes que pouco iluminavam, marcavam um ambiente profundamente turvo. Era como se pudesse mergulhar na neblina. O profundo silêncio era a marca do local, como que num sono profundo, que ninguém pudesse me despertar. Ao longe, bem distante, podia ouvir gritos de desespero, que divagavam lentamente ao se aproximar.

Próximo a mim, havia também um lago. Este possuía águas calmas, com um lento vai e vem. Suas águas eram claras, com tom levemente esverdeado tendendo ao azul. Estas, por sua vez, refletiam algo que não sabia dizer. Era como o sol se pondo ao horizonte sob o céu azul.

Eu estava estranho, vazio, sem reação.

Em meio àquela turva neblina, começa a aparecer lentamente, quase que de forma imperceptível, um rosto avermelhado de aparência jovial. Novamente, começo a duvidar de minha sanidade.

Aos poucos pude vê-lo. Era um homem jovem, porém de aparência envelhecida. Havia poucos cabelos e sua cabeça que tinha um formato esquisito, profundamente assimétrico e esquizoide. Seus olhos eram negros, como a escuridão que o circulava, desviados para a esquerda e disformes. Ele esbanjava um leve sorriso corroído pela ferrugem. Exalava de sua boca um forte cheiro de umidez. Seu olhar era profundo, inspirava medo, com pálpebras manchadas pelo negro, como se há anos não dormisse. Aos poucos fora aparecendo seu corpo corcunda e igualmente disforme, extremamente magro - dava para contar suas costelas que pareciam saltar de seu peito. Havia um forte cansaço em seus ombros, que passavam a impressão de que a qualquer momento poderiam se quebrar.

- Quem és tu? Perguntei ao desconhecido.

- Sou Miguel, O Arcanjo. Respondeu.

Ele não se parecia com Miguel, O Arcanjo.

- Ora, tu te pareces com Mefistófeles, disse ao Arcanjo.

- Diga-me, viajante, tu nunca ouviste falar no Arcanjo? No Ungido? Cordeiro de Deus? Rei dos Reis? Redentor? Libertador? Tu nunca ouviste, oh viajante?

O arcanjo falava pausadamente e sem forças. Parecia que a qualquer momento fosse sucumbir. Sua voz era de baixo tom e enrouquecida, tal qual um som demasiadamente empoeirado e sujo.

Por um momento, deixei de me concentrar nas falas do Arcanjo, que pouco a pouco iam se tornando mais e mais distantes, tocando cada vez mais baixo em meus ouvidos.

Na verdade, toda minha atenção focava num espelho que estava fixado numa das partes musgas do local. Mesmo naquele ambiente sujo, inóspito e úmido o espelho era a única coisa que resguardara sua ternura - limpo, singelo, pleno. O Arcanjo não tinha importância alguma diante daquele espelho. Toda existência que se fizesse presente naquele instante, era de menor valia que o meu reflexo no espelho.

O reflexo tinha em seu seio uma beleza divina, que se conservara plena. Meus lindos longos cabelos castanhos cacheados pareciam reluzir no espelho. Meu rosto esbanjava o que há de mais bonito naquele espelho. Minha pele escura, banhada pelo sol, demonstrava que ainda havia muita vivacidade presente ali, naquele retrato que me refletia. Como Narciso, queria mergulhar profundamente naquele reflexo.

Em meio ao devaneio, desperto com a voz do Arcanjo questionando-me.

- Quem és tu, nobre viajante? Preciso saber quem és para que possa levar-te ao teu caminho, te acompanharei no teu percurso. O Arcanjo Insistia em saber minha identidade.

- Ora, nobre Arcanjo, essa é uma pergunta que nenhum dos filósofos respondeu. Respondi de maneira fria e concisa.

Fiquei entristecido com a ideia do Arcanjo em acompanhar-me pelo caminho, pois estar só é que me causa prazer.

Venha, siga-me, te mostrarei qual caminho deves seguir. Disse o Arcanjo.

Acreditando estar no tártaro, foi assim que iniciei minha jornada pelo céu.

Douglas Rocha
Enviado por Douglas Rocha em 30/05/2020
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