Rastros dos restos

Há fagulhas de esperança. Sim. Mas há também o vazio. A sensação que se esvaiu, e para muitos, de fato, se esvairá. Tombam os corpos, mortos, milhares ao dia. Mas tombam também os desempregados, os sem-teto, os professores e os estudantes, os poetas, os liberais e anarquistas, os pretos e os brancos, os homens e as mulheres. Tombam todos. Penso na Tropicália. As músicas de Caetano penetram a pele feito fogo que corrói, ácida, a aniquilar os fantasmas que povoam a alma. Me abraço à Caetano todos os dias. Morrem mil ao dia. Mas a morte que mais mata é a do medo do que há por vir. Sofrem aqueles que gostam de gente. Sofrem os mais atentos, sensíveis, críticos e reflexivos. Os solidários. Sofrem feito ratos a rastejar no chão sujo, a revirar o lixo, a gritar feito aqueles que de fato gritam. Jorge Ben Jor inventou o Brasil. Um país tropical. Criou outro samba. Sonoro demais. Lindo demais. Jorge Ben construiu tão bem um lugar que não existe. Morrem mais de mil. O cinema de Glauber Rocha e de Jorge Furtado. O Teatro do Oprimido. A poesia de Leminski. Augusto Boal. A arte existe porque a vida não basta. E a vida não tem nos bastado. Um caminhão passa vendendo ovos. Outro faz propaganda do shopping. Um terceiro grita para que não saiamos de casa. Maria Bethânia e Fernanda Montenegro. Alice Braga. Passaram-se noventa dias das nossas vidas. Causa-me espanto aqueles que dizem que tudo está bem, mesmo que seja na medida do impossível. Não está tudo bem! Os coturnos saíram do armário, e vivemos nossas vidas medíocres como se não houvesse amanhã. E não há amanhã! Ainda não há. Os generais estão no comando e nós estamos dormindo. Ocupamos as redes tecnológicas para substituir a vida vivível, essa que estamos afogando no vaso. É a era digital. Falta elegância e cultura. Falta Torquato Neto e Aldil Blanc. Falta mexer na ferida. Há esperança! A Amazônia arde em chama. Os povos indígenas. O povo negro. As universidades e as escolas vazias. O genocídio. Os músicos mudos e reclusos. E o Rio de Janeiro continua lindo. Os pobres arrancam a vida com as próprias mãos. E os poderes decepam a estética múltipla da vida diversa. As igrejas estão cheias. Os cemitérios também. Segue vazia apenas a conta bancária do pobre. A mesa do pobre. Falta sabonete e pasta de dente. A Bossa Nova de Tom Jobim é esperançosa, e Vinícius nos vive para nos fazer reviver. Rezo à Iemanjá. Odoyá minha mãe. Rezo na beira do mar. E ela me atende pacienciosamente. Passou outro caminhão. Eram homens, todos negros, a limpar as ruas imundas do desprezo. Recolhem nosso lixo. Cadê Tereza? Lembro das favelas. Tristes e tão felizes. Escrevo e escrevo para tirar de mim esse pranto e o drama da vida dos outros. Carrego o drama do mundo. Carrego a dor da infâmia. Frase por frase vou fazendo coro e do desgosto faço o esgoto do que restou. Ferreira Gullar morreu. Manoel de Barros também. O mundo está à direita, e estou à esquerda de tudo. Ajudo os desvalidos e invento histórias para digerir o pouco que restou da minha coragem. Já pensou se você estivesse no presídio? Ou se dormisse na rua? No asilo? Num hospício? É engraçado que a noite insiste em cair, e Chico Buarque carrega os olhos mais lindos que um homem pôde possuir. As prostitutas do Leblon e da Farrapos. As putas e as donzelas. As travestis. Os pais e as mães dos filhos da overdose. Minha avó não aguenta mais. A sobra dos restos dá de comer aos famintos. Penso na fome dos outros. Na fome da comida e da mesa vazia. Os afetos estão vencidos. Mas ainda há afetos. Inumeráveis. Não há mais sorriso. Estamos mascarados. Ainda há esperança. Sempre há.