EU E O TEMPO

Tinha acabado de sair do banho, ainda estava enrolada na toalha quando ouvi batidas na porta da frente:

- Quem é? - Perguntei um pouco desconfiada, pois não esperava visita tão cedo.

-Sou eu, o Tempo!

Senti um súbito frio na barriga e um leve arrepio.

-Entra, você sempre tem a chave!

Como somos íntimos desde sempre, não me importei em continuar de toalha, ele me conhece inteira! Entrou, acomodou-se na cadeira do jogo de mesa da cozinha.

-Eu já ia me servir de um bom vinho, acompanha?

-Tão cedo? - Inclinou um pouco a cabeça e me fitou com aqueles olhos castanhos, quase café.

-É bom para o coração! - Sorri.

-Então, não é bom pra mim. Não tenho coração! - Respondeu sério e com um olhar fixo.

Fiquei quieta, pois não havia o que falar. De fato, o Tempo pode ser tanto um organizador como um destruidor, mas ele não sofre, pois não tem coração. Ele é apenas, ele!

- Você está cada vez mais linda! - Fitou-me por inteira. Eu estava com os cabelos presos e algumas mechas da franja solta, envolta por uma toalha azul com detalhes pontuais em amarelo. - Está bebendo por que está amando ou sofrendo? - perguntou-me com um tom de deboche.

Bebi todo o vinho que havia colocado na taça, procurando argumentos no fundo dela. Fiquei sem jeito e calada, ele riu. Zombou do quanto eu chorei, pois ele conhece bem o meu histórico de altos picos e extremas baixas decadências.

-Sabe, o mais interessante é que eu sei passar numa boa e você não sabe. Você não muda! Por que será? - Riu da minha cara com um ar de superioridade, não teve dó de pisar em mim.

Coloquei mais um pouco de vinho. Virei de costas e fiquei de frente para a janela que ficava acima da pia. Olhei aquele céu azul de verão contrastando com os prédios da cidade de São Paulo. O vento veio como uma brisa leve, fez os fios soltos dos meus cabelos dançarem, senti as folhas que estavam caídas dentro do meu coração se movimentarem, elas são histórias que guardo com carinho. Senti o Tempo passear por dentro de mim. Tomei um gole do vinho e algumas lágrimas caíram.

- Eu perdi um amor que tinha tudo para ser lindo e extraordinário, mas eu tive que ir embora ontem. Não pude ficar. Sofro por fazer sofrer. Mas, não foi culpa minha, não me deixaram crescer!

-Como você é cruel, minha linda! - Franziu a testa e deu um meio sorriso.

-Mas, não foi culpa minha! Lhe disse que não me deixaram crescer! - respondi com um nó na garganta.

- Mas, você nasceu, deu esperança e foi embora! - (Xeque!).

Ele riu.

-Nós somos iguais, notou? Eu não sei ficar, mas você também não. Você dá esperança e você também tira! Somos feitos da mesma energia. Ambos, implacáveis e capazes de mudar tudo! (Xeque!)

Levantou-se, girou em volta de mim como se fosse um pequeno e 'lento' tornado. Parou ao meu lado e sussurrou no meu ouvido: - Eu apago os caminhos, pois os "amores terminam no escuro, sozinhos." (Xeque!)

Respirei fundo, virei o rosto pra ele , sequei minhas lágrimas e lhe respondi com brandura e firmeza na voz:

-Você aprisiona, eu liberto. Você adormece as paixões, eu desperto! - (Xeque!).

Engoliu seco as minhas poucas palavras. Olhou-me com um certo despeito, se roendo de inveja querendo aprender "como eu morro de amor pra tentar reviver".

-Está sofrendo? - lhe perguntei.

- Eu não sei o que é sofrimento, eu não sinto nada, esqueceu? - respondeu-me friamente.

-Por um momento eu quase achei que poderia sentir algo, depois de ficar sem resposta para as minhas palavras.

-Eu também achei.

-Eu vou estar presente sempre e vai ter que conviver comigo enquanto você existir. Talvez, você tenha algum sentimento. E acho que você pode estar certo, somos feitos da mesma energia. Mas, você também liberta e você também desperta! Sabe? No fundo você é apenas uma eterna criança que nunca soube amadurecer. Mas, eu posso e você nunca "vai poder me esquecer!" - (Xeque-mate!)

***Texto escrito baseado na canção "Resposta ao Tempo", de Aldir Blanc e Cristovão Bastos, interpretado lindamente pela maravilhosa Nana Caymmi. Sempre fui apaixonada por essa canção. Cada vez que a escuto, ela invade todo o meu ser e toma conta de mim. Hoje, resolvi escrever um diálogo no breve cenário que se desenhou pra mim enquanto eu a escutava e olhava pela janela. Enxergo o "Eu" como sendo uma pessoa, o Amor ou a Vida, mas textos tem suas interpretações livres, assim como tudo na arte. Acho que estou momentâneamente satisfeita.