• DISCURSO DAS TRÊS TRANSFORMAÇÕES
 
Zaratustra buscou em suas memórias um dos seus discursos feitos ao povo na praça da cidade chamada Vaca Malhada. Falara ele das três transformações que o homem sofre em seu espírito até ficar preparado para receber o super-homem. Essas transformações eram como uma iniciação necessária, sem a qual o espírito jamais conseguiria ultrapassar esse portal que somente os ousados e os fortes conseguem ultrapassar.
Zaratustra havia falado ao povo como o homem se transforma em camelo, depois se torna leão e por fim, se transmuta em criança. Essa era uma metáfora que mostrava como o espírito humano coloca sobre seus ombros a carga da tradição e da cultura dos seus ancestrais, e com ela tenta atravessar o deserto da vida. Essa carga está expressa na religião, nos valores, nas crenças e nos costumes da civilização que molda o seu caráter, fazendo dele um ser mesquinho, covarde, portador de uma falsa humildade e de uma conformidade lastimosa.
“Sim”, pensou Zaratustra, “pois este é o homem do Livro. O livro que ensina a modelagem do herói crucificado e do apologista do sofrimento. Dos que pregam o sacrifício do corpo como moeda de compra para a salvação do espírito; dos que se refugiam na esperança da vinda de um herói que os livre da tirania, porque não têm, eles mesmos a coragem de lutar pelos seus direitos.”
“E é assim que o homem se transforma em camelo, carregando pelo deserto da sua vida lastimosa o fardo inútil de valores superados e limitantes. É assim que ele se conforma ao espírito do Dever. O eu devo se sobrepõe ao eu quero. E a sua vontade, que é o que justifica o fato de ele ter nascido é mitigada por um peso que lhe foi colocado nas costas por quem o utiliza como besta de carga para carregar para eles os bens necessários ao prazer deles.”
“E o camelo não sabe que é camelo até o dia em que, meditando na solidão da sua própria conformidade, ele descobre que não precisa, para sempre, sucumbir ao poder do Dever. E nesse dia ele se rebela contra o seu Senhor e se transforma em leão. É a luta entre o querer e o dever. Dele nasce a vontade do Ser. Os valores impostos pela tradição, obrigações milenares que se incrustaram como corcovas nas costas dos homens, ensinamentos antigos e crenças incontestadas que aprisionaram o seu espírito por milênios, são desafiadas pelo urro que liberta o espírito do leão. É o urro do “eu quero.”
“ O leão se revolta e urra na sua caverna solitária, mas não consegue se livrar do fardo do camelo porque ainda não tem novos valores. Contudo, esse é o primeiro passo na estrada que leva ao homem novo. É o primeiro grito para a liberdade, o seu primeiro “não” dito à conformidade lastimosa que a cultura do “Livro” lhes aderiu às costas.’
“Para se libertar dos velhos valores é preciso criar novos. É preciso livrar-se das roupas do “eu devo” e vestir as roupas do “eu quero”. E isso só ocorre quando se compreende que a vida só tem como objetivo a busca do prazer e a eliminação da dor. Isso significa contestar todos os valores antigos que pregam a necessidade da dor na vida para se obter o prazer na morte. Porque só a vitória na vida e o prazer de ter vivido podem mitigar a dor da morte. O contrário é só sofrimento e conformidade lastimosa.”
“ O homem é uma ponte sobre um rio que precisa ser atravessado. Esse rio é a vida e o que chamamos de humanidade. Um rio nunca caminha para trás nem se detém em sua viagem para o mar. É uma jornada de superação que jamais termina nem se presta a estagnação.”
“Mas, para se adquirir novos valores”, disse Zaratustra para si mesmo”, é preciso se libertar dos antigos. “Estão certos aqueles que dizem que só num vaso vazio se consegue plantar novas sementes. Um novo mundo só pode ser criado sobre os escombros do velho. Uma cidade nova nunca deve ser erguida sobre os alicerces da antiga. Pois é o alicerce que dá conformidade ao edifício. Pode-se até usar material retirado do velho para ajudar a construir o novo, mas nunca se deve utilizar a raiz de um tronco apodrecido para gerar uma árvore nova.”
“ Quando se compreende a necessidade de desafiar os valores antigos para aprender algo novo, então o leão se transforma em criança. Na criança está a “tábula rasa” em que tudo ainda está para escrever.”
E foi então que Zaratustra escreveu o poema das sete virtudes do coração aprendiz.
      

"Meu coração aprende com o trabalho da árvore
O ofício que lhe ensinou o Sublime Mestre Artesão.
De dia capturo a luz e dela tiro meu combustível.

Como abelha, fabrico maciços blocos de energia,

Contribuinte que sou do inconcebível universo.
No tempo e no espaço essa função é que me guia.
 
Meu coração aprende com a imobilidade enganosa
Da pedra imóvel na sua lenta e segura transformação.
Em seu íntimo, o ígneo espírito do universo trabalha,
Presidindo o processo pelo qual a matéria bruta
Ganha mérito para se tornar matéria orgânica.
E nessa fórmula se consagra a gênese do universo.
 
Meu coração aprende com a efemeridade das mariposas,
E a quase eternalidade do majestoso rei carvalho.
Daquelas aprendo prudência, este me ensina paciência,
As pilastras onde a vida arma a rede do equilibrio.
E com a humildade suntuosa dos que cavalgam a luz
Meu coração amadurece e faz a travessia do espelho.
 
Meu coração grávido, aprende parindo a luz,
Num exercício simples de potência adquirida.
Nele, a natureza nua, diáfana, donzela mineral,
Observa, de longe, um pássaro chocar o ovo,
E de perto o buraco negro cuspindo uma estrela.
O segredo da mônada se revela aos meus sentidos.

 
Meu coração aprende subindo os degraus da evolução,
Desvendando a fórmula das coincidências cósmicas
E nelas acrescentando o valor da continuidade.

Feito Demiurgo, conjuga o Verbo Fundamental
E a montanha discreta lhe revela seus mistérios.
Tudo o que não tinha nome adquire identidade.
 
Meu coração aprende espionando a Natureza,
Em seu momento de mais total intimidade.
Como um menino pelo buraco da fechadura,
Espia a própria Mãe se despindo para o Amor.
Meu coração se torna prisioneiro da fascinação,
O pecado fundamental que libertou nossa razão.


Meu coração aprende esvaziando o copo da tradição.
Como as serpentes, para crescer, trocam de pele,
Eu também me dispo do velho que há em mim,
E me torno limpo e puro para cruzar esse portal.
Nú como veio ao mundo, meu espírito se entrega
Ás mãos da natureza para este ritual de iniciação.