O eu e o todo

A ampliação do conceito de eu faz parte do processo civilizatório. Crescer, no sentido do desenvolvimento humano, significa reconhecer que o mundo é mais do que o eu. Amadurecer significa transcender os limites do seu ego. Realmente em quase todas as religiões, desde a antiguidade, encontramos a ética da reciprocidade cuja idéia fundamental é considerar o outro nas nossas ações . Confúcio, por exemplo, diz, "não façais aos outros o que não quereis que vos façam" e com maiores ou menores variações encontramos afirmações semelhantes no budismo, hinduísmo, islamismo, zoroastrismo, etc. . Implícito neste preceito está a visão de longo prazo, em que o outro é o eu amanhã ou em outra situação. Ou seja, eu não quero que façam ao outro alguma coisa má porque amanhã eu poderei estar na mesma situação. O fato de o outro ser o eu amanhã ou em outra situação, indica uma extensão do eu em direção ao outro, isto é, trata-se de uma ampliação do conceito de eu. Esta extensão do conceito de eu, é o que, no limite, leva ao conceito de todo.

Interessante é notar que, nesta fase, a formulação da ética da reciprocidade ainda é eminentemente restritiva, ou seja, o foco é no não fazer e não no fazer. Outra observação importante é que apesar de se incluir o outro, a referência ainda é o eu, ou seja, não se deve fazer ao outro aquilo que não se quer que seja feito ao eu. Leva-se em consideração o outro, mas a perspectiva ainda é a do eu. Isto é perfeitamente compreensível porque a ampliação de horizontes é um processo lento e gradual. Na natureza a perspectiva é eminentemente individual, cada planta cuida exclusivamente de si mesma. São as leis e as regras que fazem a conexão entre as diversas individualidades inserindo-as em um todo. Numa fase relativamente primitiva do desenvolvimento humano em que ainda se conserva a proximidade da natureza é, portanto, perfeitamente compreensível que a perspectiva com a qual se olhe o mundo seja a perspectiva individual.

Uma nítida evolução da ética da reciprocidade é dada no Judaísmo quando Deus diz a Moisés "não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo com a ti mesmo" (Levítico 19; 18) . Este preceito ganha ainda mais importância no cristianismo quando Jesus reduz todos os mandamentos a dois (veja Mateus 22: 37, 38, 39 e 40). É interessante ressaltar a síntese que o cristianismo faz da intrincada e complexa moral judaica ao reduzir todos os mandamentos a: "Amarás a Deus e Amarás a teu próximo como a ti mesmo". Ambos os mandamentos falam de amor, ou seja, de união. O primeiro fala do amor a uma entidade metafísica (Deus) e o segundo fala do amor a uma entidade física (o homem). Na medida em que o metafísico passa a ser a soma de todo o físico, ou seja, que em vez de Deus, usamos um todo que a tudo engloba, uma maior simplificação é possível, reduzindo-se os dois mandamentos a um só.

Dentro da moral judaico-cristão a norma "amarás o próximo como a ti mesmo" não tem mais um caráter restritivo (negativo), mas sim, passa a ser propositiva (afirmativa), ganhando maior amplitude. Ou seja, ao invés de restringir-se ao não fazer, o foco agora é no fazer. A referência, no entanto, continua sendo o eu, isto é, o eu continua fornecendo a perspectiva do que deve ser feito.

A referência ao eu vai desaparecer com o imperativo categórico de Kant que estabelece que um comportamento válido para um indivíduo é aquele que pode ser estendido para os demais. Ou seja, a idéia é escolher para norma de orientação de vida somente aqueles princípios que podem ser estendidos para toda a sociedade, passiveis, portanto, de generalização.

Ao trocar a referência do eu por uma referência mais ampla como a comunidade, a sociedade ou, até mesmo, toda a humanidade, troca-se o concreto, o real, por algo abstrato e vago. O que é a comunidade? O que é que ela quer? Por exemplo, se vivo em uma comunidade de ladrões na qual roubar é algo esperado e normal, se todos roubam de todos, todo o tempo, então, provavelmente, ser honesto é algo inaceitável. Vejamos um exemplo mais realista. Suponhamos uma sociedade em que a mentira e a hipocrisia façam parte do cotidiano. Neste caso, o preceito de mentir funciona perfeitamente dentro da ótica do imperativo categórico. Vale, portanto, a crítica de Hegel de que o imperativo categórico só produz tautologias, ou seja, é circular. Para uma sociedade de ladrões, vale o roubo, para uma sociedade hipócrita, vale a hipocrisia. Em uma sociedade de lobos, há que ser lobo e em uma sociedade de carneiros, há que ser carneiro. Se há dúvida sobre a sociedade que se quer, então, o imperativo categórico é de pouca ajuda. Vemos aqui que o puro racionalismo, do qual Kant certamente é um dos expoentes, não consegue produzir conteúdos. Ou seja, o racionalismo, enquanto formalismo, é vazio. A consistência, pura e simples, que está por trás do imperativo categórico, não é suficiente para produzir conteúdo.

É aqui que entra a idéia do todo. Permanece a idéia da generalização implícita no imperativo categórico de Kant só que a ela se acrescenta um conteúdo. Este conteúdo, na verdade, está implícito na idéia da generalização, pois se o particular deve-se submeter ao geral então é porque o geral precede ao particular. O todo surge como extensão da idéia do geral, ou seja, o todo é aquilo que tudo engloba e tudo contém. E é no sentido da consolidação deste todo que há que trabalhar. Isto nada mais é do que a ideia da união levada às suas últimas consequências.

Evidentemente pode ser questionado o que significa concretamente "trabalhar no sentido da consolidação do todo". Se, de fato, é complicado responder a esta pergunta, parece bem mais fácil substituí-la pela afirmação "trabalhar no sentido da consolidação da sociedade". Cabe lembrar que, dentro da dimensão espaço/tempo, consolidando a sociedade estamos também trabalhando para consolidar o mundo e, consequentemente, o todo .