A DIGNIDADE HUMANA

A Dignidade Humana

A consagração do princípio da dignidade humana, como valor maior do texto constitucional brasileiro de 1988, não tem sido acompanhada por uma concomitante reflexão sobre seus fundamentos ético-filosóficos. Essa falta de reflexão crítica sobre um tema tão importante tem implicado no uso indiscriminado do princípio para tudo abranger e justificar.

Segundo Barreto (2010, p.57), “essa pouca elaboração teórica tem a ver com o fato de que a palavra não é um conceito propriamente jurídico. Para que se torne um conceito jurídico, a idéia de dignidade humana, como escreve Edelman, necessita uma história que irá lhe definir o seu próprio espaço”.

A idéia de que a pessoa possui uma dignidade que lhe é inerente remota suas origens na história da filosofia Ocidental. Para Barretto (2010, p.58), mesmo antes do texto clássico de Picco de La Mirandola, Discurso sobre a dignidade do homem (1486), a questão já era vista nas obras de Aristóteles, Santo Agostinho, Boécio, Alcuino e Santo Tomás, indicando como através dos tempos agregaram-se valores à idéia de pessoa, que culminaram na objetivação da idéia de dignidade humana.

No que tange aos antecedentes históricos da idéia de dignidade humana, Sarlet (2008, p. 32) esclarece que “para a afirmação da idéia de dignidade humana, foi especialmente preciosa a contribuição do espanhol Francisco de Vitoria, quando no século XVI, no limiar da colonização espanhola, sustentou, relativamente ao processo de aniquilação, exploração e escravização dos habitantes dos índios e baseado no pensamento estóico e cristão, que os indígenas, em função do direito natural e de sua natureza humana – e não pelo fato de serem cristãos, católicos ou protestantes – eram, em princípio livres e iguais, devendo ser respeitados como sujeitos de direito, proprietários e na condição de signatários dos contratos firmados com a coroa espanhola.”

Todavia, a dignidade humana no espaço da teoria do direito é um conceito novo, que se encontra presente em diversos textos internacionais[2], mas que não figurou na declaração da independência dos Estados Unidos, nem na declaração revolucionária francesa de 1789 e tampouco nos texto que as seguiram, durante praticamente dois séculos, embora estivesse presente como princípio, como referência moral obrigatória (BARRETO, 2010, p. 58).

Contudo, mesmo que a dignidade preexista ao direito, o seu reconhecimento e a sua proteção pela ordem jurídica é o que lhe reveste de legitimidade. E no reconhecimento da dignidade da pessoa humana pelo ordenamento brasileiro, a Constituição de 1988 apresentou uma relevante inovação ao reconhece – lá como fundamento do Estado. Ocorre que a nova Carta Constitucional, para cumprir também um novo papel, precisava passar de um mero Estatuto de Estado, para ser sobretudo, Estatuto de uma nova cidadania (GONÇALVES, 2006, p. 167).

O Estado Democrático de Direito é reconhecido como principal agente de transformação, a dar realce ao conceito material da igualdade, evidenciando-se, cada vez mais, a busca por uma interação expansionista dos valores da liberdade e da igualdade, centrados no postulado da dignidade humana.

Conforme refere Häberle (2005, p. 128), o respeito e a proteção da dignidade humana como dever (jurídico) fundamental do estado democrático constitui a premissa para todas as questões jurídico-dogmáticas particulares. A dignidade humana ultrapassa os fundamentos do Estado, ela é acima de tudo, fundamento para a sociedade constituída e, para a sociedade que irá se constituir.

No entanto, para que se possa estabelecer o conceito jurídico de dignidade humana é necessário distingui-lo de outros conceitos comuns da teoria do direito. Tencionando distinguir a dignidade dos direitos humanos, Barreto (2010, p. 60) afirma que “a dignidade humana designaria não o ser homem, o indivíduo, mas a humanidade que se encontra em todos os seres humanos. Enquanto os direitos humanos representaram a defesa da liberdade diante do despotismo, a dignidade humana significou a marca da humanidade diante da barbárie”.

O conceito de dignidade humana situa-se em um plano epistemológico diverso do conceito de direitos humanos, pois não assinala nem mais nem menos a essência do homem, como ocorre nos direitos humanos, mas atribui um significado diverso a essa essência. “A dignidade humana situa-se no cerne da luta contra o risco da desumanização, conseqüência do desenvolvimento desmesurado da tecnologia e do mercado. O inimigo não é mais unicamente e exclusivamente o poder do Estado, mas também o próprio produto do conhecimento humano e do sistema produtivo” (BARRETO, 2010, p. 61).

Vê-se assim, que a dignidade humana se refere não ao indivíduo, mas à humanidade. O homem, dos direitos humanos representa, juridicamente, o individuo universal, no exercício de sua liberdade também universal. A humanidade, entretanto, é o conjunto simbólico de todos os homens enquanto seres humanos.

À dignidade humana podem ser atribuídas três diferentes acepções: social, honorífica e moral. As duas primeiras definições fazem referência a forma como a qual a dignidade humana é atribuída pela sociedade a um indivíduo. Já a acepção moral da dignidade, que fundamenta seu o conceito jurídico, advém de um longo processo de sedimentação teórica, fruto da obra de diversos autores, em diversas épocas.

Na sua significação moral, a dignidade vincula-se ao respeito a si mesmo, à auto-estima. O indivíduo não pode se considerar um ser desqualificado, envergonhado de si próprio. Essa acepção de dignidade possui mais uma conotação psicológica do que propriamente moral. A acepção moral implica em reconhecer no indivíduo uma pessoa, distinta das coisas ou dos animais. Essa acepção fornece os alicerces para a conceituação jurídica da dignidade humana, pois toda a pessoa é dotada de qualidades que impedem que ela seja tratada como um meio, tendo um valor em si mesmo.

Em similar sentido, Alfredo Culleton (2009, p. 81), para quem a dignidade pode ser distinguida em dignidade como mérito, como estrutura moral, como identidade e como totalidade, afirma que as três primeiras destas noções, embora bastante distintas, possuem duas características importantes em comum. Primeiro, que as pessoas podem ter esses tipos de dignidade em vários graus e segundo, que todas elas podem ir e vir, todas podem variar de uma posição sobre uma escala para outra.

Há, contudo, uma espécie de dignidade que é completamente diferente. Um tipo de dignidade que todos os seres humanos têm, ou se presume que tenham, pelo simples fato de serem humanos. Essa dignidade, denominada de Menschenwürde, refere-se ao valor humano e, implica no reconhecimento de que todos possuímos o mesmo valor. E é justamente pela nossa Menschenwürde igual, que ninguém pode ser tratado com menos respeito do que qualquer outra pessoa no que concerne aos direitos humanos básicos (KANT, 1980, pp. 134/135).

Para chegarmos até essa concepção atual de dignidade humana, muitos autores foram decisivos, conforme já referimos, mas a construção do conceito de dignidade humana na cultura contemporânea deita suas raízes, principalmente no pensamento de Immanuel Kant.

Kant atribuiu o fundamento da dignidade não ao fato do ser humano ser a imagem e semelhança de Deus, mas sim pela sua capacidade de submeter-se às leis por ele mesmo elaborada e de formar um projeto de vida consciente. Surge aí, a concepção de indivíduo e de sujeito de direito. Kant estabelece a esfera inviolável da consciência humana, essencial à noção de autonomia, que é característica exclusiva do ser racional. Para Kant, o homem existe como um fim em si mesmo, não como um meio para o uso da sua vontade ou de outrem. Para ele, o homem não possui valor, está acima de qualquer preço, porque possui dignidade.

Com base nesta premissa, Kant sustenta que “o Homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. (…) Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativos como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito) (1980, pp. 134/135).

A concepção Kantiana de valor afasta qualquer coisificação e instrumentalização do ser humano. Porém, não basta que a ação não contradiga a humanidade da pessoa, o próprio homem deve concordar com ela. Deve haver um esforço de cada individuo para o alcance dos fins de seus semelhantes (GOSDAL, 2007.pg. 54)

Ainda segundo Kant, “no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra coisa equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade… Esta apreciação dá, pois a conhecer como dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-se infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade” (1980, p. 140).

Para Kant, a dignidade é um traço distintivo entre a pessoa e os demais seres vivos. Para ele, o homem é um ser dotado de autonomia, capaz de criar, aperfeiçoar-se ou então degradar-se, sujeitando-se à lei da heteronomia, externa à consciência da pessoa.

De acordo com Barreto, o núcleo da idéia Kantiana da dignidade humana se expressa através de sete conceitos interligados por uma cadeia argumentativa: ser racional, homo noumenon, personalidade, fim em si mesmo, moralidade, autonomia e liberdade (2010, pg. 69).

Para Kant, a dignidade é o resultado de uma sequência que tem início no reconhecimento da pessoa como ser racional para poder defini-la como ser dotado de autonomia na liberdade. Em cada pessoa reside a humanidade que exige o respeito de todas as demais pessoas. Mas, a dignidade se encontra no respeito que, antes de mais nada, cada pessoa tem consigo mesma, como pessoa em geral e como ser humano. Nas palavras de Barreto, “essa valoração de si mesmo representa o caráter sublime da constituição moral do ser humano, sendo que a dignidade humana reside em última análise na preservação pelo homem da dignidade da humanidade” (2010, pg. 69).

A contribuição Kantiana foi determinante para a definição do princípio da dignidade humana. É a concepção filosófica sustentada por Kant que garante a transição lógico-conceitual entre o patamar da reflexão racional e o espaço da empiria jurídico-constitucional, processo esse essencial para a própria leitura do texto constitucional (BARRETO, 2010, pg.70)

Vem da filosofia a idéia do homem como ser dotado de vontade, de capacidade de agir com autonomia. Surge na filosofia a idéia do ser humano autoconsciente. O homem possui consciência de sua subjetividade, é capaz de enxergar-se como sujeito no mundo, e estas premissas é que irão nortear a concepção jurídica de dignidade (GOSDAL, 2007. pg. 76).

Portanto, o conteúdo do princípio da dignidade humana pode ser desdobrado em duas máximas: não tratar a pessoa humana como simples meio e assegurar suas necessidades vitais. Pode-se verificar que a primeira destas máximas deita suas raízes no imperativo categórico de Kant, que estabelece que a pessoa jamais poderá ser utilizada como meio de vontade de outra pessoa, mas sempre, e concomitantemente, como tendo um fim e si mesma.

Nesse sentido, Barreto destaca que as condições de trabalho de trabalho muitas vezes provocam um tratamento indigno da pessoa, razão pela qual o princípio da dignidade humana é tão comumente citado nas declarações internacionais sobre o direito do trabalho. O autor destaca ainda, o caráter ambivalente do trabalho que, tanto pode ser fator de aviltamento da condição humana, como condição de realização do ser humano como pessoa (2010, pg. 70).

Já a segunda máxima nos alça a um conceito mais abrangente de dignidade humana, pois dela se extrai que o ser humano não é um espírito puro. A pessoa é um ser corpóreo que possui necessidades que devem ser atingidas para livrá-la da sujeição e da degradação. Neste contexto, a dignidade da pessoa exige para sua preservação o acesso a um trabalho decente, à moradia e aos cuidados relativos à saúde. Ainda, o princípio da dignidade humana exige também o acesso aos bens espirituais, como a educação e a cultura, e a proteção da integridade física e mental da pessoa, com vistas a coibir a tortura mental, que pode assumir diversas formas (BARRETO, 2010, pg. 71).

Neste sentido, Airton Pereira Pinto, afirma que sem a dignidade, o ser humano perece como ser autônomo, sujeito da ação política, jurídica, cultural, social e econômica. Para o autor, a dignidade é um valor supremo e evidente no humano. “É ao mesmo tempo algo que é e que se impõe como necessário na realidade existente” (2006, pg. 87).

Em verdade, a dignidade da pessoa humana, apenas faz sentido no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade, razão pela qual é que se impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, que deve zelar para que todos recebam igual (já que todos são iguais em dignidade) consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade (SARLET, 2008, pg. 57).

A tarefa da manutenção e promoção da dignidade humana é imensa e não deve demandar excessiva razão ao direito. Senão, deve ser uma razão do próprio Estado em suas diversas maneiras de criar e gerir as políticas públicas e incentivar outras de natureza privada. A dignidade não se realiza sem um conjunto de outras exigências, como uma espécie de sistema integrado, comunicante e que não funciona somente em partes estanques e separadas.

No ideário de que a dignidade humana está implícita no conceito de que “todos são iguais”, a proclamação da indistinção deve iluminar todos os campos da vida humana. O todo é igual perante o Estado, que é lei, mas a dignidade humana é mais que a lei estatal. Ela surge como é direito e está no campo do justo (PINTO, 2006, pg. 90).

O Estado não é um espaço simplesmente para o exercício de direito individual e seus interesses, mas deve ser fim coletivo e social, na medida em que o todo coletivo e o interesse público estão se realizando, ou na proposta de efetiva possibilidade de sua realização. Assim é que o todo da dignidade humana se realiza no todo Estado e as dignidades particulares devem ser realizadas no todo particular.

Marcio Sotelo Felippe, em análise á generalização da dignidade humana, como referida ao Estado que é norma e, valendo-se dos pensamentos de Kant, Rousseau e Kelsen, afirma que

“a abstração das diferenças pessoais é a idéia de que todo indivíduo vale em si mesmo, tem um valor de dignidade independentemente de sua condição particular étnica, de classe, origem social, etc. A abstração dos fins particulares significa a superação dos interesses específicos, como os de classe, por exemplo. Um reino dos fins que atingisse a absoluta abstração das diferenças pessoais e dos fins particulares seria a comunidade humana perfeita: cada homem como fim em si mesmo. Se essa comunidade humana perfeita fosse uma imensa praia, a idéia dos direitos humanos seria um grão de areia, e é somente isso que temos na mão. Direito à vida, igualdade de oportunidades, trabalho, educação, saúde, bens culturais, enfim, o mínimo de dignidade material e espiritual”. (1996, pg. 75).

A dignidade humana que se coloca como fim da juridicidade da norma, reclama a aplicabilidade da totalidade das normas em seu sentido mais libertário. O sentido da reclamação é a justiça, como valor e conteúdo dos instrumentos – norma e direito – disponíveis na comunidade humana. Num sentido Kantiano, a dignidade humana, produto da razão que legisla sobre si, apresenta claro fator de igualdade com a realização dos direitos humanos totais, para então ser valor maior, ser princípio que ilumina as várias atividades humanas (PINTO, 2006, pg. 91).

Essas e outras reflexões induzem ao reconhecimento manifesto de que a sociedade contemporânea, dirigida pelos ideólogos do neoliberalismo e pelos efeitos da globalização econômica, requer grandes transformações do legado do passado e exige o fortalecimento do Direito em uma rede de vínculos, para reconectá-lo com outras áreas do saber científico. É nesse contexto que se vem ressaltando a necessidade de se introduzir mecanismos de eficácia e efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, como princípio unificador dos direitos fundamentais e uma das bases do Estado Democrático.

Enfim, o princípio da dignidade da pessoa humana, ao qual se reporta como um dos fundamentos do Estado Democrático, torna-se o elemento referencial para a interpretação e aplicação das normas jurídicas. Exige uma concepção diferenciada do que seja segurança, igualdade, justiça e liberdade, para impedir que o ser humano seja tratado como mero objeto, principalmente na condição de trabalhador, muitas vezes assim reconhecido, a serviço da economia, como uma simples peça da engrenagem.(GOMES, 2005, pg. 28).

Entende-se assim, que na esfera das relações de trabalho o direito deve atuar de forma mais dinâmica, inovando e transformando, porque o trabalho torna o homem mais homem, ao possibilitar-lhe o pleno desenvolvimento de sua personalidade, de onde resulta sua valorização como pessoa humana.

Nesta senda, nos cabe, por conseguinte, analisarmos a intrínseca relação entre a dignidade da pessoa humana e o trabalho humano.

CRISTINA BENEDITTIE
Enviado por ALMA GRANDE em 18/07/2021
Reeditado em 18/07/2021
Código do texto: T7302050
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