Wannah - Parte IV

Índio, absorto em sua mesa, levou um pequeno susto quando percebeu Cristina a sua frente.

Oi! Vou dar uma pequena festa amanhã em minha casa e gostaria que você fosse. Não é nada especial. É apenas para a gente se divertir um pouco. Se você não estiver de plantão, gostaria que fosse.

Índio ficou olhando-a nos olhos para perceber se o convite era apenas por educação e que, de fato, não gostaria que ele fosse. Ela parecia sincera.

Estou livre amanhã. Provavelmente irei, disse Índio, surpreendendo-se com suas próprias palavras.

Isso é bom. Os homens levam as bebidas, tá bem?, falou Cristina, indo em direção a outro policial.

Índio acompanhou-a na visão. Cristina era o tipo de mulher que os homens gostariam de ter em sua cama toda noite. Sorriso fácil, conversa divertida e carismática, corpo farto sem excessos, produzia uma atração natural em qualquer um, até nele, Índio, que tinha uma certa ojeriza por mulheres brancas. É que ele sabia o que se escondia atrás de daqueles olhos brilhantes e sobrancelhas finas e arqueadas. O visual de fragilidade contrastava profundamente com seu espírito de guerreira. Talvez fosse a melhor de todos dentro daquela delegacia. Já dera tantas provas de coragem subindo morros e invadindo antros que já estava se tornando lendária.

Quando a via, Índio, automaticamente, acompanhava-a, discreto, com os olhos. Tinha uma certa atração escondida por ele. Muitas vezes, a imagem dela vagava pelos seus pensamentos. Quando percebia os devaneios tentava limpa-los do pensamento mas eles sempre retornavam, independente de sua vontade.

Deveria ter sido mais esperto e recusado o convite. Ele não sabia como agir ou proceder nessas reuniões aonde as pessoas buscavam divertimento e descontração. Nas poucas vezes que se deixara ficar em uma mesa de bar, junto com alguns colegas de trabalho, permanecera mudo e intangível. Definitivamente essa não era sua praia.

No entanto, talvez fosse uma oportunidade para se aproximar de Cristina, de tentar mostrar a ela uma parte de si que não fosse aquela que ela conhecia. Talvez fosse uma oportunidade de se mostrar um tanto e, quem sabe, dela se interessar um pouco por ele. É que, às vezes e poucas vezes, sentia-se solitário demais. Gostava da solidão mas em alguns momentos ela pesava demais. Nesses instantes gostaria de ter alguém com quer conversar, de se exprimir, de se revelar, e, talvez, tocar e sentir o calor de uma pele humana que não fosse a própria. Ele sabia que eram sonhos loucos de um índio doido perdido e distante de sua casa mas talvez valesse a tentativa.

Ficou a pensar com qual roupa ir e gelou. As que tinha eram as de trabalho ou então estavam tão gastas e fora de moda que lembravam as que os brancos davam de graça para os índios na tentativa de esconder uma nudez que eles deploravam. Imaginar-se comprando roupas era fora de questão. Não tinha a mínima idéia da qual escolher.

Juntando uns trapos de coragem foi até Rogério para pedir que o acompanhasse em alguma loja. Maior ar de surpresa não encontraria no resto de sua vida. Rogério sorriu algo parecido com benevolência e superioridade.

Nosso super-homem tem um problema que não consegue resolver? Disse Rogério.

Se ele não fosse tão alto, com certeza, Índio o ergueria do chão pelo pescoço. Por ora preferiu agüentar a gozação. Rogério era um dos poucos que não o irritava com frases e chacotas.

Vamos tentar manter isso dentro de um certo limite, retrucou Índio. Preciso de ajuda. Geralmente vocês têm bom gosto.

Ele estava referindo-se a fama ambivalente de Rogério. Ele pareceu não se importar: merecera isso.

Depois do expediente saíram e foram até um shopping. Índio nunca tivera a intenção de entrar em um deles e estava perdido no meio de corredores e lojas. Volta e meia, Rogério pegava-o pelo braço e mostrava algo nas vitrines. Índio comprimia seus lábios e balançava a cabeça num ríctus de negação.

Quando já estavam quase sem opções, Rogério resolveu assumir o comando e praticamente o empurrou para dentro de uma loja. Foi pegando algumas roupas e fazendo uma pilha em cima do balcão, sem dar crédito às negativas de Índio. Enfiou-o dentro do provador e ficou aguardando lá fora. A cada uma que Índio vestia, ele fazia-o desfilar um pouco diante de si. Rogério olhava, reprovando ou aprovando. Das que restaram, fê-lo vesti-las novamente. Por fim, escolheu duas que foram do agrado dos dois.

Agradeceu Rogério e foi para seu apartamento. Lá, vestiu-as novamente, sentindo-se até bonito, coisa que não era.

Quase não conseguiu dormir naquela noite imaginando situações que poderiam ocorrer e suas alternativas. Devaneou diálogos que lhes pareceram inteligentes, expressões e posições que o fizessem destacar-se. Rodeou e mirou-se no espelho uma infinidade de vezes. Até alguns sorrisos ensaiou mas chegou a conclusão que eles nunca seriam naturais. Não, sorrisos estavam fora de questão. Não combinavam com seu rosto quase sem expressão.

Acordou tarde e as horas pareciam teimar em não se aproximar do momento ideal no qual sairia para ir para a uma festa, onde, talvez, pudesse ter uma chance de se aproximar de Cristina.

Muitas horas depois daquelas que os relógios marcavam chegou aquela em que poderia sair.

Estacionou o carro o mais próximo que pôde da casa dela. Havia muitos outros. Parecia que todos os amigos dela estavam lá. Seu sangue esfriou só de pensar naquela quase multidão. Não estava acostumado com aquele tipo de reunião. Teria que fazer o melhor de si, se quisesse um pouco da atenção dela.

A casa parecia estar plantada no meio de um terreno grande. Ela era de uma família rica e a casa parecia demonstrar isso. Embora tivesse uma aparência simples, era grande para os padrões normais, tinha gramados e jardins a sua volta e o formato de uma construção que deveria estar no campo. Uma varanda ao redor dela lhe dava um certo ar campesino.

Retirou um pacote de cerveja do carro. Ela tinha pedido bebidas e ele não esquecera, embora nunca tivesse colocado uma gota de álcool em seu organismo. Lentamente, como se sondasse o terreno, foi até a entrada e bateu na porta. Ela veio atender com um sorriso tão doce que esqueceu as frases feitas ensaiadas durante a noite. À um beijo no rosto dele conseguiu retribuir com um “oi” gutural que saíra como o rosnado de um animal selvagem.

Ela o conduziu até o meio da festa e apresentou-o àqueles que não conhecia. Em todos aqueles brancos, exceto Rogério, percebeu o olhar daqueles que vêem algo como curiosidade ou aversão. Algo lhe bateu no peito impelindo-o para algum canto aonde não pudesse atrapalhar o vai e vem das pessoas. Rogério, por uns momentos, sentindo seu deslocamento dentro do ambiente, tentou puxar alguns assuntos forçados. Ele respondia monossilabicamente até Rogério fartar-se dele e ir procurar um pouco de diversão junto às outras pessoas.

No seu canto, enrijecido pela pressão que os demais pareciam exercer sobre ele, ficou a acompanhar com os olhos os movimentos de Cristina, como fazia no trabalho. Ela era linda! Ela era alguém para se apaixonar profundamente!

Em algum momento, ela veio lhe fazer as honras de anfitriã, conversando com ele por imensos minutos. Apesar de quase não lhe responder, seu coração teve a alegria de um curumim espadanando água em um rio. Quando ela foi circular entre os demais convidados, ele a acompanhou com os olhos por onde ela passava.

Quase todos estavam ali: Pedro Santos e seu sarcasmo, Rogério e sua desenvoltura nessas situações, Adilson e suas tatuagens pelos braços, Keyla e sua antipatia, Japonês e sua solicitude, Cachorro Louco e sua insanidade, José Carlos e suas corrupções, Kande e suas gargalhadas, outros e alguns estranhos.

Em outro lado da sala, pareceu a Índio que um rosto conhecido se mostrara. Um rosto suave e um sorriso, que por vez ou outra o olhava. Índio vacilou um pouco. Seria ela? Seria Wannah? Se fosse, o que estaria fazendo ali? Não havia, ali, o cheiro de medo ou terror. As pessoas pareciam estar felizes ou, talvez, um pouco aborrecidas, mas nada alem disso.

Ao tentar sair de seu canto para ir em direção a ela, alguém se interpôs e derrubou um copo de bebida em sua camisa. Algumas desculpas e tentativas de limpa-lo, fizeram-no perder a visão da morena de rosto suave. Com mais calma, dirigiu-se para fora da casa, até a varanda. A noite quente parecia estar mais agradável ali, com o burburinho das pessoas chegando vagamente até seus ouvidos.

Índio estendeu a visão para os jardins, procurando o que lhe era familiar. Atrás de uma pequena árvore, uma neblina parecia ter se formado. Índio caminhou até lá. A neblina se condensou e ganhou os contornos de uma índia de rosto suave e sorriso agradável. Era ela! Wannah estava ali!

Índio estendeu a mão até seu rosto, como se quisesse toca-lo. Ela sorriu e entortou levemente a cabeça até sua mão. Índio sentiu no tato a leveza daquela pele que não parecia ser a de uma predadora. Aos poucos, ela foi se desfazendo em uma névoa e desapareceu devagar por entre o gramado.

Índio sentiu seus pensamentos, o que ela queria lhe dizer. Um amor que não fosse o dela lhe traria medo de perder alguém querido. Qualquer possibilidade de estar desarmado e frágil diante de uma outra pessoa, como requer qualquer amor, poderia ser funesto. Ele não tinha sido feito para isso e ela não queria que assim fosse. Ela o escolhera por ele ser, também, um predador e isso implicava em aceitar a solidão como algo inerente a ele. Não estava em sua natureza conviver com outros que não fossem seus iguais.

Nada abalado, talvez mais forte pela revelação, retornou à casa, despediu-se de todos como um cavalheiro, rumou e chegou até seu apartamento, dormindo com o sono dos predadores que nada tem a temer.

ccaiusc
Enviado por ccaiusc em 13/05/2022
Código do texto: T7515361
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