O que rodas-punk, Pichon-Ravière e Georges Lapassade têm a ver em comum?

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata-se de uma atividade avaliativa referente ao componente de Fundamentos Para Intervenção Grupal, que tem por objetivo fazer a observação de uma situação do cotidiano e relacioná-la com os conteúdos aprendidos e discutidos em sala de aula. A cena que guiará o trabalho trata-se de uma experiência vivida no dia 27 de julho de 2022, durante o Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), durante o show da banda de death metal, Sepultura. A ideia para o trabalho surgiu como uma provocação bem-humorada: “por que não fazer o trabalho de Intervenção sobre rodas-punk?” que logo desembocou na pergunta que dá título ao texto em questão: afinal “o que rodas-punk, Pichon-Ravière e Georges Lapassade têm a ver em comum?”

2 RELATO DE OBSERVAÇÃO

A organização do festival de inverno delimitou o dia 27 como sendo o “dia do rock”. Três bandas do gênero tocariam neste dia: a banda Crush, Dead Fish e Sepultura. Somando as três bandas, conheço apenas uma única música delas. Quem já foi para um show de rock sabe: não é apenas a afinidade com o gênero que torna o show atraente, mas o ambiente, o afeto compartilhado, o agenciamento coletivo de enunciação, como diriam Deleuze e Guattari (2000). Calcei meu coturno, pintei as unhas de preto, pus um batom escuro e pincelei meu rosto com sombra preta, desci com meus amigos rumo à Praça Dominguinhos, ansioso para o show. Assistimos à Dead Fish e Sepultura, pulando e gritando, ficamos em 2 lugares diferentes: primeiro beiramos o palco e depois ficamos mais para o meio, nos dois lugares (e em vários outros) houveram rodas-punk. Uma roda-punk, também conhecida como mosh ou mosh-pit, trata-se de uma forma de dançar músicas de rock ou metal “pesado”. Ela se inicia ao anunciar-se a intenção de fazer o mosh (alguém grita “vamos fazer uma roda!”), aos poucos as pessoas ao redor vão dando espaço enquanto outras começam a caminhar em círculos na cadência da música, quase como uma ciranda. Se a música estiver em seu momento mais estridente, as pessoas dentro da roda começam a se colidir umas contra as outras, dando empurrões, chutes e cotoveladas, quem está de fora empurra as pessoas que tentam sair da roda para dentro. Uma roda-punk não tem duração delimitada (as de Dead Fish duraram o show inteiro). Ao total participei de 2 rodas-punk durante 13 músicas das duas bandas, o saldo foi um soco na cara, uma gengiva cortada e muita diversão.

3 DISCUSSÃO

Em seu livro icônico, “Grupos, Organizações e Instituições”, Georges Lapassade investiga como se dá a formação dos grupos, no capítulo 5, mais especificamente, ele trata da dialética dos grupos. Um grupo, para Lapassade (1977), tem seu início apenas como uma série de pessoas distintas que, a partir de um objetivo comum, unem-se através de um “juramento” e passam a se entender enquanto grupo. Uma roda-punk está entre a série e o grupo, ela obedece aos fenômenos de formação grupal sem ser um grupo propriamente dito, inicia-se como uma série de pessoas que, a partir de um porta-voz (CASTANHO, 2012) passam a se entender como integrantes dessa roda, existe um objetivo comum: fazer a roda. O juramento está assinado a partir do momento em que as pessoas começam a andar em círculos. Uma roda-punk tem regras implícitas: a) a violência dirigida e intencional é proibida; b) socos, pisoteio, chutes, empurrões e cotoveladas muito bruscas são proibidos; c) se alguém cair no chão os outros devem levantá-lo para que não se machuque; d) se alguém quiser/precisar sair basta levantar a mão e não será almejado; e) pessoas de porte físico menor/mais “delicado” são almejados de maneira mais branda, dentre outras regras. Uma roda-punk, muito claramente, não é um grupo ou um grupo operativo, mas seu funcionamento e formação se dá de maneira mais ou menos análoga a essas categorias grupais. Ela possui um processo dialético contínuo, e configurações diversas (muda de membros, de cadência e intensidade conforme o decorrer do show, não se mantém estática), pode possuir porta-vozes (alguém que inicie a roda ou que a finalize, alguém que começa a se movimentar com mais intensidade ou com menos, alguém que atenta para um membro que caiu no chão). Uma roda-punk possui tarefas explícitas (a própria criação e manutenção da roda é seu objetivo-guia) e implícitas (não deixar que ninguém se machuque e garantir a diversão de todos dentro da roda). Em suma: rodas-punk não são grupos ao modo que Lapassade e Pichon-Ravière delimitam mas são fenômenos grupais e podem ser observadas e investigadas de maneira análoga aos mesmos.

4 REFERÊNCIAS

CASTANHO, P. Uma introdução aos grupos operativos: teoria e técnica. Vínculo – Revista do NESME, 2012, v. 9, n. 1, p. 47-60.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.

LAPASSADE, G. (1977). Grupos, organizações e instituições. (H. A. A. Mesquita, Trad.) (3ª ed.). Rio de Janeiro, RJ: Livraria Francisco Alves.