O Mistério contido na Palavra

 

Assim falava o Mestre das Almas:

 

“Infeliz é o homem que vê na interpretação da lei apenas uma simples narrativa, que a linguagem do homem traduz em palavras de uso comum. Se fosse apenas isso, não haveria nenhuma dificuldade na interpretação do Livro da Lei e fazer dele uma leitura atraente. Mas as palavras que usamos para representar a verdadeira realidade são apenas uma roupagem exterior. Porque por detrás de cada palavra oculta-se um mistério sublime que só com o espírito podemos penetrar. Aqueles que veem apenas o traje exterior jamais encontrarão a verdadeira essência da realidade que ele encerra, assim como os que julgam o homem pela sua aparência estão fadados à desilusão, porque não veem o verdadeiro homem, mas apenas a sua imagem exterior. No Livro da Lei (que é a Torá) temos uma vestimenta, que são as palavras, e dentro dela temos um corpo, que são os Mandamentos. E dentro dele encontraremos a Alma do Mundo, que é o verdadeiro mistério oculto. É esse mistério que faz a Lei dada por Deus ser superior a todas as leis feitas pelo homem, ainda que estas possam parecer mais lógicas e aceitáveis. Pois em toda lei há que haver uma alma, que com ela respira e lhe dá vida.”

“Eis que vos revelo os mistérios que estão ocultos desde a Criação do mundo. O traidor revela segredos, mas aquele que tem um coração fiel guarda a palavra que lhe foi confiada. É um traidor aquele que não tem fé na palavra que lhe foi confiada, e quem não tem fé não tem o espírito necessário para entender o significado dos mistérios que a palavra encerra. Assim o que ele revela não é a verdade da palavra, mas apenas a confusão do seu cérebro que a frivolidade da língua libera. A sorte do mundo depende dos mistérios secretos. Lança fora tudo que venha a perturbar o vosso espírito. Que a ligeireza da nossa língua não nos faça pecar saindo do caminho da verdade por revelar falsos conceitos e falsas notícias sobre a verdade contida nesses Mistérios.”

Shimon bar Yochay- O ZHOAR -Passagens selecionadas pelo rabino Ariel Benson

 

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O mundo real pode não ser como pensamos que é porque o que os nossos sentidos captam dele é uma ínfima parcela do que existe na sua totalidade. Além do significado que as palavras que o nosso sistema de linguagem consegue definir existe um mundo que somente com as ferramentas que o nosso espírito possui podemos penetrar. É um mundo onde só o extraordinário, o maravilhoso e o fantástico tem a probabilidade de serem verdadeiros, como dizia Teilhard de Chardin. Esse mundo não pode ser descrito em palavras, nem exposto em imagens de formatação lógica. Porque é um mundo onde o todo é maior que suas partes e cada combinação entre os elementos que o formam resultam em algo novo que, no entanto, conservam as propriedades dos elementos que o formaram.  

Nesse mundo não há o Saber. Tudo gira em torno do Sentir e do Crer. Não se procura a lógica contida nos termos das proposições, mas sim a Alma que elas contém. Por isso as imagens que se formam dessa Sabedoria parecem caóticas, contraditórias, confusas, ininteligíveis. Mas elas são assim apenas porque queremos colocá-las na única forma que o nosso cérebro consegue conceber, que é a forma da consciência organizada.

Mas a nossa consciência, como sabemos, é formatada através de “programas” neurológicos que são implantados em nosso cérebro pela cultura em que somos criados. Assim, contos de fadas são estórias infantis, criadas apenas como exercícios de imaginação. Antecipações, premonições, presságios e outros exercícios que uma mente desconectada da realidade executa também são frutos de uma excentricidade que não pode ser levada a sério. Só quando elas acontecem no mundo em que vivemos e afetam a nossa vida diária é que nos damos conta de que o fantástico é uma realidade cotidiana, que somente nos é revelada quando os nossos sentidos ultrapassam o limite que nós lhes colocamos, limites esses demarcados pela linguagem.

Os sábios orientais sempre sustentaram que é preciso deixar que a nossa sabedoria se organize naturalmente, sem deixar que preconceitos e idiossincrasias pessoais a deturpem. Por isso as religiões orientais recomendam uma atitude de fascinação perante a vida, encarando todos os acontecimentos como se fossem oportunidades de aprendizagem.  Os budistas até criaram uma fórmula linguística própria para designar essa atitude: o koan. Uma pessoa em atitude koan posta-se perante a natureza com a mente vazia, esperando surpreendê-la em pleno processo de criação. Eles não querem explicar nem entender os acontecimentos, mas apenas senti-los como se fizessem parte deles. Entendem que não é na consciência que se hospeda o verdadeiro conhecimento, mas sim no inconsciente, porque ele é uma porta aberta para o mundo das origens. O que nos vem da consciência é sempre uma interpretação incompleta da realidade, mutilada pela necessidade que a mente tem de conformá-la aos nossos valores, crenças e necessidades. [1]

Esse é o mundo da Cabalá. Como diz o Mestre das Almas, a palavra é necessária porque ela é o veículo do pensamento. Ela é a vestimenta sob a qual o pensamento vem ao mundo. E como somos muito impressionados pelas visões que temos das coisas, temos a tendência de tomar o sentido da palavra pela imagem que ela projeta. Mas nem sempre a palavra corresponde ao conteúdo significativo que ela encerra. É sobre isso que o Mestre das Almas nos adverte. Não devemos tomar as palavras pela aparência que ela sugere. Por trás delas há um mundo a ser descortinado, e só com os olhos do espírito pode ser contemplado.

O Mestre das Almas se refere à Bíblia Hebraica quando fala dos enganos que o homem comete quando toma as palavras sagradas apenas em seu conteúdo formal. Porque na Torá, o Livro da Lei, há um corpo e uma alma. O corpo são as palavras, os Mandamentos, que são expostos de uma forma inteligível para a mente consciente: mas a alma, essa só pode ser desvendada pelos olhos do espírito, pois ela vem envolta pelo mistério. Esse é o mistério contido no ensinamento da Cabalá.  

 

(Do livro "O Mestre das Almas"- no prelo para ser publicado


[1] Um koan é uma metáfora, ou um conto, que aparentemente não tem sentido lógico. É uma mensagem dirigida mais ao inconsciente do que à consciência do ouvinte. Eis um exemplo de koan. “ Um discípulo chamado Esshin levava sempre sua vaca consigo quando ia ouvir os ensinamentos do mestre. Uma noite, ao voltarem de uma palestra ( que o discípulo estava se esforçando para entender), a vaca, com o casco, escreveu na areia as seguintes palavras: “Esta noite, ouvi dizer que até as ervas e os bosques podem ter o espírito do Buda. Estou muito feliz, pois sei que também eu tenho um espírito”.