Desafios cotidianos

Ler uma nova partitura é algo que considero complicado, mas gratificante;sinto como se estivesse fazendo um caminho na mata enquanto tenho que passar por ela. É como se estivesse de facão em punho cortando, tirando espinhos, galhos secos, mato alto, sob o sol escaldante, abrindo um estreito vão à minha frente para poder dar o próximo passo.

Contudo, à medida que avanço, vou sentindo o cheiro bom do mato que se deixa explorar. Vez ou outra encontro obstáculos que já aprendi a remover ou superar e sigo adiante. Aos poucos percebo clareiras onde repousar e vou tomando gosto pelos sons que ouço. Na volta, ou seja, na segunda vez, novas nuances ou cores chamam minha atenção e tenho consciência de quão recente e precário é ainda o processo da descoberta.

É assim que me sinto quando tomo uma nova partitura. Posso já ter ouvido a música, ela pode me soar bem conhecida até, mas não havia tentado decifrar sua escrita e é disso que falo aqui. Tomo o papel que me é dado, olho e tento ver o que tem aquilo tudo com o instrumento que está à frente, no caso, o piano.

Ajeito-me, olho a escrita, olho as teclas,tomo água, respiro fundo, ajeito-me de novo no banco, endireito as costas e começo. Som estranho, nada familiar às vezes;tento prosseguir, devagar, pequeníssimos trechos, meio compasso, um compasso, dois; retorno.

No outro dia, quando volto à peça, não é raro acontecer de ter a sensação de que tudo está ainda por fazer, e recomeço. Ao cabo de alguns dias, porém, o gosto bom: é a música começando a acontecer! A partitura em sol, busco o fá sustenido e grave lá embaixo, a melodia parece já percorrer o corpo junto com o sangue... ah, é boa demais a sensação!

Levo ao professor os meus estudos, ele vê o esforço e as conquistas e mostra, a cada encontro, o percurso a ser feito até a próxima aula.

Então, por que estudar piano, se é árdua para mim a tarefa? Porque, como disse, é também gratificante. Ademais, ocupo e não passo ou gasto o meu tempo, exercito os dois lados do cérebro, lido melhor com minhas angústias, ansiedade, minhas carências, meus medos, demônios e saudades. Quando saio dali tenho mais ânimo para fazer coisas inadiáveis, enfadonhas e necessárias, de que não gosto, mas fazem parte do rol de atividades de qualquer preparo ou organização.

Quando encontro pessoas, as conversas podem ser menos graves, mais leves porque deixei no instrumento boa parte das tensões cotidianas.

Assim é que também me deparo __ como o escaravelho em cuja cabeça passaram um pouco de manteiga, e ele vai sempre à procura dela __ com as minhas utopias de instrumentista, com uma diferença: sei os meus limites, procuro superá-los, mas não penso tornar-me uma pianista de renome, uma concertista. Quero tocar para os meus amigos, para as crianças, para a família, para mim, e o som pode quase sempre animar um transeunte, um trabalhador braçal lá fora; isso eu posso fazer.

Estudar música, eis um processo que pode acompanhar toda uma existência: é assim que vejo os meus desafios musicais.

Neusa Storti Guerra Jacintho
Enviado por Neusa Storti Guerra Jacintho em 20/01/2008
Reeditado em 28/11/2009
Código do texto: T825307
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