A Era Fitzgerald

“Inimitável e imparodiável”, disse na revista Bravo! o ensaísta Sérgio Augusto, “Scott Fitzgerald legou dois clássicos ao século 20, O Grande Gatsby e Suave é a Noite, e um acervo de contos antológicos (...)”. E fica nisto. No mais, a maioria dos textos (aquele inclusive) sobre o gênio de Scott não consegue ultrapassar a barreira da mais pura fofoca.

Não que não seja esta a maldição de Fitzgerald, alçado desde seu precoce primeiro livro (Este Lado do Paraíso) a uma condição digna de popstar da era do roquenrol. Vendeu milhares de livros, tornou-se milionário, ícone e guru de uma geração; freqüentou as colunas sociais (e policiais) e desceu rápido como subiu, impulsionado (“up” and “down”) muito mais pelo gosto popular que pela apreciação da crítica – um caso típico mito que se sobrepôs ao artista.

Depois de amargar anos de ostracismo no melancólico final de sua vida, F. Scott Fitzgerald paulatinamente recuperou seu statuis perante a crítica, foi redescobertopelo público e hoje em dia é considerado um dos maiores escritores americanos do século vinte. Não somente pelas obras-primas citadas, inquestionáveis, mas também (talvez principalmente) por sua contribuição personalíssima ao gênero conto. Cultor que foi da tradição começada por Poe, Scott inflenciou seguidores tão díspares como o crítico Edmund Wilson em seu passeio pela ficção (Memoirs of Hecate County), toda a geração beatnik, os arautos do New Journalism e mesmo escritores contemporâneos como Paul Auster e Philip Roth. Recentemente seus ecos podem ser encontrados em The Rule of Four, bela mistura de mistério, erudição e elegia a Princeton que se tornou um best-seller mundial. Em seus contos brilha toda a melodia da Era do Jazz, expressa no ritmo único de suas vozes regionais (como pode ser percebido nas versões originais em inglês publicadas pela University of South Carolina no site de seu centenário, http://www.sc.edu/fitzgerald/ ), colorida por um estilo gracioso, lúcido e altamente evocativo. A verossimilhança de seus personagens - dotados de personalidade e charme, frescor e vivacidade - afirma um ponto de vista moral sadio, baseado num sentido de decência fundamental contraposto a uma moralidade ainda vigente no senso comum dos países capitalistas, baseada unicamente no poder e na posição social. Como atestou o crítico e biógrafo Kenneth Eble, “Apesar do pessimismo e determinismo que perpassam sua obra, Fitzgerald ainda vê o homem como um ser capaz não apenas de escolha, mas de uma visão superior daquilo que pode chegar a ser”.

O problema com seus contos é separar-se o joio do trigo. No entanto, à parte a carreira popularesca nos jornais (em que produziu muito e com qualidade irregular) e as tendências etílico-dissipativas (onde desperdiçou boa parte do tempo, dos lucros e finalmente a própria vida), o artista que existia nele sobreviveu e está presente, inteiro e íntegro, nas narrativas curtas selecionadas para a coletânea traduzida recentemente por Ruy Castro - o crème de la crème de sua produção.

Se o mito sobrepôs-se ao escritor, é preciso lembrar que mesmo longe da fama e vida glamourosa, Scott jamais deixou de produzir com qualidade. Se Suave é a Noite vendeu pouco e foi depreciado durante a sua vida foi muito menos por supostos erros de estrutura (corrigidos por Scott para uma edição definitiva, só publicada postumamente) que por tratar-se de algo muito diferente do que se esperava do livro que sucederia o Gatsby. O romance começa leve e solar, com sua descrição da vida na recém-descoberta Cote D’Azur, mas logo o árido tema principal (a doença mental) e as incômodas intersecções autobiográficas nos levam a uma metade final que encerra a juventude dos personagens junto com a Era do Jazz, antecipando a consciência crítica com que descreveria a própria decadência durante os anos da Grande Depressão em artigos na Esquire (reunidos depois sob o título A Derrocada).

Sérgio Augusto, no mesmo artigo da Bravo! citado inicialmente, nos diz que “Com admiradores poderosos, nenhum escritor escapa da glória póstuma”, citando mais adiante Edmund Wilson como requentador póstumo da fama de Scott, desconhecendo a verdadeira guerra de egos que foi o relacionamento dos dois. Se Edmund Wilson foi essencial para o reconhecimento crírico da obra de Fitzgerald, principalmente no pós-guerra (como relatado por biógrafos de ambos), foi muito mais por um pesado sentimento de culpa pela forma fria e distante que a antiga amizade tomou, que o impediu de elogiar em vida a qualidade do texto de Scott, que sempre e apesar das brigas constantes, considerava-o seu “primeiro e maior leitor”, aquele a quem seus originais eram enviados em primeiro lugar. Com o amigo morto, o grande ensaísta e crítico que certa vez afirmou que “gostaria de escrever como Scott” pode deixar de lado a vaidade e a inveja e realmente usar de sua condição de mais respeitado crítico literário dos EUA de então para fazer justiça ao amigo. Junto com ele, seguiu-se a multidão de críticos, professores de literatura e leitores comuns da obra do artista - que hoje se contam aos milhões.

Francis Scott Fitzgerald teve uma vida trágica e grandiosa a um só tempo, morreu solitário e vítima do alcoolismo, num quartinho paupérrimo, esquecido por todos e absolutamente desconhecido da geração seguinte à que ajudou a moldar e construir, perdido como tantas outras vítimas da Grande Depressão entre a pobreza e a decepção. Seus ensaios tardios, alocados postumamente por E.W. em A Derrocada, constituem talvez seu maior legado: ao instruir-nos tanto ou mais sobre os tristes anos trinta quanto seus romances da juventude descrevem a alegria e dissipação dos loucos anos vinte, Fitzgerald reafirma que foi um homem de seu tempo como poucos, detentor de um poder de observação e síntese que torna sua leitura obrigatória a todos que se interessam pela época, pela vida nos EUA de modo geral, pelo processo honesto e tranparente de amadurecimento de um homem e escritor.

Renato van Wilpe Bach
Enviado por Renato van Wilpe Bach em 09/12/2005
Código do texto: T83221